Os mistérios da superação

*Texto por Ricardo Kotscho fotos Hélio Campos Mello

Um morador de rua na calçada da Avenida Cásper Líbero, em frente ao Shelton Inn Hotel, no centro de São Paulo. A gerente do restaurante Graal em Queluz, bem na divisa de São Paulo com o Rio de Janeiro, na via Dutra. O segurança do Hotel Formule 1, no Largo da Carioca, coração do Rio.

O que esses três personagens têm em comum? São todos fãs apaixonados por um pianista de música clássica, que choram quando encontram este senhor sempre elétrico, de longos cabelos grisalhos e gestos largos. O ídolo deles tornou-se maestro depois de velho, por não conseguir mais executar a obra completa de Bach ao piano, o trabalho que o consagrou nas maiores salas de concertos do mundo.

Aos 68 anos, depois de passar por nove cirurgias para voltar a tocar e incontáveis tragédias na sua vida pessoal, o paulistano João Carlos Martins ressuscitou de novo e agora é festejado, abraçado e beijado por onde passa. Parece um Rolling Stone, um Roberto Carlos da música clássica. Virou um pop star.

Agora regente das duas Orquestras Filarmônicas Bachianas, uma profissional e outra formada por jovens, que ele mesmo criou quando perdeu a força nos braços e nas mãos, até ele anda assustado com o assédio dos fãs nas ruas, restaurantes, hotéis, aeroportos e salas de espetáculos por onde tem passado em sua frenética agenda dos últimos meses.

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Às 8 da manhã daquela quarta-feira, 25 de março, quando o encontramos na calçada da Cásper Líbero, em frente ao hotel, para pegar o ônibus que nos levaria junto com a orquestra ao Rio de Janeiro, ele ficou com os olhos marejados pela primeira vez no dia, ao ser abraçado por um catador de papel, que não acreditava ser o próprio.

“O senhor é o maestro? É o senhor mesmo?” A cena se repetiria várias vezes durante o dia. Desde que assumiu o novo papel de maestro e começou a aparecer em programas de televisão, contando a sua saga de superação de variados obstáculos, tem sido assim.

Mais do que a obra é a figura de Martins que emociona as pessoas de todas as idades e categorias sociais. “O senhor mudou a minha vida”, costuma ouvir desses fãs que vêm pedir autógrafos e tirar fotos, e sempre lhe contam alguma história da própria vida ou de um parente, para quem ele serviu de exemplo por nunca desanimar na vida, qualquer que seja o desafio.

A algazarra em torno dele, enquanto os músicos vão se reunindo para subir no ônibus 5075 da empresa Corcovado, lembra mais a excursão de um time de colégio. Pela primeira vez, a Filarmônica Bachiana vai se apresentar com um time misto, formado por profissionais e jovens que ainda estão estudando.

Eles tinham chegado na véspera, à meia-noite, de Valinhos, no interior paulista, e vão subir daqui a 12 horas no palco do Teatro Odylo Costa, filho, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em festa de comemoração de dez anos do Instituto Brasileiro de Defesa dos Direitos das Pessoas Deficientes (IBDD). Vão voltar no mesmo ônibus logo após o concerto e no dia seguinte, às 5 da tarde, já tinham apresentação marcada no auditório do Tribunal Regional do Trabalho, na Barra Funda, em São Paulo.

O maestro faz questão de me apresentar os músicos um a um. Chama Josué Marcos Ferreira Campos, 32 anos, que recentemente deixou o violino para vender Enciclopédia Britânica. “Conta para o repórter quantas você vendeu…”, zomba o maestro. “Em quatro meses, não consegui vender nenhuma, voltei…”. Aponta para Diego Araújo Mesquita, 24 anos, que está na calçada: “Aquele ali é de Teresina, no Piauí, toca violoncelo. Na primeira apresentação no Municipal, pisou na bola. Um ano depois, estava bom para tocar na orquestra.”

Quando a trupe chega tarde de viagem, todos dormem no Shelton, que também é onde a orquestra faz os seus ensaios e se reúne sempre que tem apresentações marcadas. Desta vez, viajam com Martins 31 músicos, mais seis auxiliares entre assistentes e produtores. Oito e meia, está na hora de partir. Sozinho no banco da frente, à direita do motorista, o nosso personagem já está a mil por hora, embora tenha dormido apenas quatro horas esta noite.

Acordou às 5, para a sua rotina diária de exercícios. Começa subindo e descendo 50 vezes os 16 degraus da escada do seu apartamento duplex, na Rua Ministro Rocha Azevedo, nos Jardins, uma caminhada de 28 minutos cronometrados. Depois vai fazer a fisioterapia prescrita pelo médico Rames Mattar para os braços e para as mãos e termina a maratona com 300 abdominais.

“Você não sabe o que aconteceu ontem…”, começa ele a falar, antes mesmo que possa fazer a primeira pergunta da nossa entrevista. Muitas vezes ele mesmo pergunta e responde. “O que aconteceu? Tomei anestesia no Sírio-Libanês para fazer uma nova aplicação de botox nas mãos. Acordei às 12h30 para fazer uma palestra às 4 da tarde no Blue Tree para o pessoal do Grupo Porto Belo. Cheguei lá tão sonado que devem ter achado que estava bêbado. Mas quando abriu a cortina, deu aquela adrenalina, aí eu já era um leão de novo…”

Pela rapidez das palavras e riqueza dos detalhes, achei melhor deixar de fazer anotações e ligar logo o gravador, coisa que não gosto de fazer, para não perder nada. Durante duas das sete horas de viagem até o Rio, João Carlos Martins contou para a Brasileiros os mistérios da sua superação e o exato momento da virada de pianista para maestro. Foi em 2003, quando parecia tudo acabado, que um sonho lhe deu uma nova vida. A vida de um pop star.

Brasileiros – João, vamos começar a gravar. Você estava falando que virou um leão de novo. Depois de tudo que aconteceu na sua vida, em que momento você ressuscitou para a música?
João Carlos Martins – O momento exato foi quando os dois médicos no Sírio-Libanês vieram me falar… Depois de tantas vindas e voltas, no momento em que eu fiz uma última operação, tentando juntar os nervos, e não deu mais certo, aí eles falaram pra mim:
– João, acabou!

Brasileiros – Quando foi isso?
J.C.M. – Foi em maio de 2003. Maio de 2003, no hospital Sírio-Libanês. Aí quando os médicos falaram isso, eu olhei pra eles e pra enfermeira, vi que tinham lágrimas nos olhos, e eu falei:
– A música vai vencer um dia!
E fui embora. Perdi o céu durante uns 20 dias. Aí fui pra casa, jantei. No dia seguinte, eu comecei a andar por São Paulo. Eu saía andando, ia até Capão Redondo, passava pelo Jockey Clube, caminhava 20 quilômetros, e eu pensava:
– O que eu vou fazer da vida?
Uma noite eu cheguei cansadérrimo e fui dormir cedo. Como a minha mão é toda defeituosa, eu sonhei que estava tocando tudo errado. Aí o grande maestro Eleazar de Carvalho, que já tinha morrido, falou para mim:
– João, vem estudar regência.
Umas 4 horas da madrugada, eu acordei do sonho e às 7 já estava telefonando para o Júlio Medaglia pra tomar a primeira aula. Tomei a primeira aula, tomei mais umas dez aulas com o Abel Rocha, regente maravilhoso, e aí eu telefono para o meu empresário nos Estados Unidos, o Jay Hoffman, que está comigo há 49 anos, e falei pra ele:
– Pode marcar Londres e Paris que eu vou reger daqui a seis meses. Daqui a seis meses eu quero reger em Paris e Londres. O que aconteceu? Foi nesse dia que eu virei um leão de novo. Eu chego para o primeiro ensaio, com a English Chamber Orchestra, e quando vou levantar a mão… Logo o primeiro gesto foi um gesto errado.

Brasileiros – A mão estava doendo ainda?
J.C.M. – Não, de nervoso mesmo. Eu olhei para os músicos e notei um sorriso irônico neles. Pedi licença e fui ao banheiro. Estava tão nervoso que eu fui fazer xixi. Estava ali fazendo xixi, lavando as mãos, olhei no espelho e comecei a chorar. Falei pra mim mesmo:
– O quê? Eles deram um sorriso irônico?… Eles vão ver…
Acabei de lavar a mão e fui me recompondo, voltei lá, olhei para os músicos e falei:
– Vocês agora vão ver o trabalho de um maestro brasileiro que respeita a tradição, mas que tem as suas idéias, e matei a pau. Eu nunca contei essa história na minha vida.

Brasileiros – E parece que deu certo…
J.C.M. – Deu certo. Quando acabou, os músicos falaram pra mim:
– Mesmo que venha outro regente, nós vamos levantar as suas idéias.
O pior é que eu não tinha tido orquestra pra ensaiar. Eu só imaginava uma orquestra dentro do espelho… Estudei tudo diante de um espelho, como se criasse uma orquestra imaginária e aí eu fiquei seis meses o dia inteiro ensaiando no espelho.

Brasileiros – E você não tinha medo de enlouquecer regendo no espelho?
J.C.M. – Eu regia no espelho, ficava ouvindo a música. De Londres, eu fui para Paris reger a quinta de Beethoven, que eu nunca tinha regido na vida, com a mais antiga orquestra de Paris, a Pasdeloup. O primeiro gesto da quinta é um dos mais difíceis da regência, aquele pan-pan-pan-pan, pan-pan-pan-pan (solfeja e tecla nas pernas). Então, quando cheguei a Paris, eu já me sentia o rei, já era um leão de novo…

Brasileiros – Me diga uma coisa João: em que maestro você se inspirou? Teve algum modelo, aquele que você gostaria de ser igual a ele?
J.C.M. – Não teve um modelo. Eu comecei a assistir a vídeos de vários maestros. Mas sabe qual é o maestro que eu acho que é o símbolo de tudo? É realmente o alemão Von Karajan. Assisti também a DVDs do Zubin Mehta e do Leopold Stokovsky. Esses três eu ficava assistindo.

Brasileiros – E como foi a tua volta do exterior? Aqui você não tinha uma orquestra para reger…
J.C.M. – Quando cheguei de volta ao Brasil tive que formar a minha orquestra. Estreei a Orquestra Filarmônica Bachiana no dia 27 de outubro de 2004, na Sala São Paulo. O Hélio (Campos Mello, diretor da Brasileiros) estava lá.

Brasileiros – Como você montou uma orquestra a partir do zero?
J.C.M. – Foi uma loucura. Quando eu cheguei, reuni os músicos em casa…

Brasileiros – Que músicos, de onde eles vieram? Quer dizer, primeiro você virou maestro e depois foi montar uma orquestra para reger?
J.C.M. – Tive que procurar os músicos com a ajuda do Laércio Diniz, que é o meu primeiro violino, o nosso spalla (maestro assistente). Ele está vindo para o Rio de avião. Falei para ele:
– Laércio, me descobre músicos porque eu não conheço músicos brasileiros. Juntei os músicos em casa e comecei a ensaiar lá na sala. Aí o que aconteceu? Era um grupo de 18, 20 músicos, e eles só podiam ensaiar praticamente na madrugada das sextas-feiras.

Brasileiros – Mas e os vizinhos?
J.C.M. – Aí é que está. Como eles iam lá tipo 11 horas da noite, todo mundo me falou: os vizinhos vão começar a reclamar. E sabe o que aconteceu? Abriram as janelas dos apartamentos para ouvir melhor… Tirava todos os móveis da sala, tirava tudo, deixava só o piano, e ali ficávamos ensaiando. Assim nós formamos aquele núcleo central da orquestra. O Laércio ia me apresentando os músicos:
– Olha, os de qualidade são esses. Você vai ter um time aqui de primeira.
E aí o que aconteceu? Criou-se um ambiente bárbaro, começamos todos juntos a orquestra a partir do zero. Eu perguntava:
– Será que esse gesto está legal? Eu acho que esse gesto…
Aí os próprios músicos falavam:
– Não, maestro, tenta desse outro jeito que vai dar certo.
E era um relacionamento que foi crescendo na base da humildade, mas aos poucos eu fui tomando cada vez mais controle da situação. Falei para os músicos:
– Eu realmente não posso segurar a batuta e nem virar a página.
Então, só no primeiro ano eu tive que decorar dez mil páginas de partituras. Decorei inteira a Eroica, (de Beethoven) que você viu lá na Sala São Paulo na abertura da temporada deste ano. Você que estava lá na frente pôde perceber que não tem um músico que vai entrar que não estou ao lado dele. Entra e eu estou do lado. Eles começaram a gostar das minhas idéias musicais. Foi criando esse ambiente bom… Ensaiamos durante meses, mas não tinha concerto marcado porque o pessoal não me reconhecia como regente. Conseguimos fazer o primeiro concerto lá em Jaú, no interior de São Paulo.

Brasileiros – E como foi esta primeira apresentação da orquestra? Deu tudo certo de cara?
J.C.M. – Chegamos em Jaú e, já no meio do concerto, toca um celular. Eu pedi um pouco mais de volume para a orquestra. Quando acabou, o Laércio, já atrás do palco, me falou:
– Olha, maestro, mais uma dica, é uma convenção mundial. Quando toca um celular na platéia, em qualquer país, o regente para o concerto para educar o público. Pede, educadamente, para a pessoa desligar o celular, e recomeça o concerto. Isso já está acontecendo no mundo inteiro.
Aí eu falei:
– Vou seguir teu conselho para o resto da vida…
Aí aconteceu de novo. O celular que estava tocando era o meu…
Um dia eu estava reunido com os músicos e comentei com eles:
– No fundo, essas coisas ruins que aconteceram na minha vida… – eu digo sempre que a pior coisa que aconteceu na minha vida foi perder as mãos para o piano – foi também a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Virei maestro e comecei a ver a vida de outro jeito.

Brasileiros – Esse outro jeito, que jeito que é?
J.C.M. – Aconteceu uma história com um garoto que toca bem violino. Chegou pra mim e falou:
– Maestro, arruma R$ 10?
Eu perguntei pra quê.
– Porque eu estou com fome.
Aí eu falei:
– Pega R$ 50, e vou te dizer uma coisa. Se Deus quiser, nunca mais na vida você vai precisar de R$ 10. Eu vou montar um esquema para criar condições de você continuar estudando e tocando. Dois anos depois, esse cara estava na minha orquestra tocando… O nome dele é Wagner de Souza. O que aconteceu? Quando vi esta cena, eu falei: vou fazer uma orquestra jovem. O primeiro patrocínio que eu tive foi do meu amigo Antônio Ermírio de Moraes.

Brasileiros – A orquestra formada por profissionais sobrevivia como?
J.C.M. – Eu arriscava bilheteria. O que eu dizia? Que meus concertos tinham quatro movimentos: alegro, adaggio, presto e movimento de bilheteria… Se não tivesse o quarto movimento, eu estava fodido. A gente ia para o Cultura Artística e o teatro lotava. Aí o Jorge Gerdau entrou como segundo patrocinador da orquestra jovem. Mais tarde, o HSBC me pediu turnês nacionais da orquestra adulta e tornou-se seu primeiro patrocinador. O antigo Bank Boston e a Suzano começaram a ajudar também. Isso foi ainda em 2005.

Brasileiros – A esta altura você já tinha desistido de tocar piano, estava conformado com a vida de maestro?
J.C.M. – Já. Já tinha desistido de tocar piano. Aí no final de 2005 eu vou no programa do Jô Soares. O Jô me fala assim:
– E você nunca mais vai tocar?
Eu falei:
– Esquece, não tem mais jeito.
E ele me respondeu:
– Do jeito que eu te conheço, com um ou dois dedos, você vai tocar. Você vai tocar, vai fazer música e vai descobrir um jeito.

Brasileiros – O que aconteceu depois disso?
J.C.M. – Eu me sentei no piano em casa e tentei compor umas coisas. Pensei: pô, até que isso fica bonito… Tocava só com o polegar. Ainda podia usar um pouco o mindinho, mas muito mal. Hoje, eu só uso o polegar e esse, o indicador. Fiz uma operação pra poder continuar usando esses dois. Se não nem esses dois dava pra usar. Fiz um testezinho dentro de um estúdio. Em janeiro de 2007, eu consegui patrocínio da Nokia para ir a Nova York com a orquestra. Chego em Nova York, acaba o concerto, a casa lotada, fui muito aplaudido e tal, aí eu mando puxar o piano e toco com o polegar. A partir daí não posso mais fazer um concerto sem dar uma canja no piano.
Na segunda vez em que eu voltei para o piano, já fiquei metido a besta. Consigo tocar no máximo 15 minutos. Mas começou a ficar bonito, o próprio New York Times falou que o som continuava o mesmo. Até o título é assim: Despite the velocity, keeping music alive (Apesar da velocidade, mantendo a música viva).

Brasileiros – Você falou que a música ia vencer e parece que venceu mais uma vez…
J.C.M. – A origem de tudo foi a hora em que fui fazer xixi em Londres… Depois, a orquestra jovem foi criada por causa desse garoto dos R$ 10. São meninos que hoje estão estudando em faculdades. Reuni uns amigos, inclusive estava gente do Estadão e da Folha, eles resolveram criar uma fundação para cuidar das duas orquestras. Eu sou contratado desta fundação porque hoje meu negócio não é ganhar dinheiro. Tenho um salário de R$ 10 mil na fundação e mais uma verba de R$ 3 mil. Podia estar ganhando fortuna em apresentações, mas com esse salário da fundação, mais uma renda da minha mulher, em torno de R$ 8 mil, eu vivo bem e estou feliz. Tenho uma vida tranquila, não preciso de nada mais. Meu carro é de seis anos atrás… Eu podia estar ganhando 20, 30 paus por concerto, 40 paus, sei lá. Todo meu trabalho está revertendo para a fundação.

Brasileiros – Entre jovens e profissionais quantos músicos tem a Fundação Filarmônica Bachiana?
J.C.M. – Quarenta e um. Às vezes contrato uns extras, chegamos a 50. Temos uma preocupação grande com a qualidade de vida dos músicos. É a única orquestra brasileira, tanto a jovem como a profissional, em que oferecemos refeições em qualquer ensaio. O coffee break é um puta coffee break. Nenhuma orquestra pensa nisso. É a única orquestra em que se voltamos à meia-noite de viagem os músicos recebem dinheiro para o táxi ou vão dormir em hotel. Então nós partimos de um princípio que é garantir a qualidade de vida. Só que manter a orquestra jovem é uma coisa relativamente cara. Cada um dos jovens recebe quase R$ 1 mil fixos por mês, mais outras ajudas, além das despesas que temos com transporte, alimentação, tudo. É coisa de um milhão por ano. Duas semanas atrás, recebi a boa notícia de que a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) vai adotar a orquestra jovem. Isso pra nós foi como ouro. Mas eu falei pra eles: faço questão que cada jovem possa ver o contrato. Vocês adotaram a jovem, então eu rejo quantos concertos a Fiesp pedir e não vão ter que pagar nada pra mim. Eu falei pro Paulo Skaf (presidente da Fiesp): o meu trabalho é voluntário. Os músicos da orquestra profissional ganham por apresentação mais do que qualquer outra orquestra brasileira paga.

Brasileiros – Na abertura da temporada deste ano na Sala São Paulo você apresentou alguns números da Filarmônica e diz que seu orçamento é de apenas 7% do que custa a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp)…
J.C.M. – Nós já alcançamos um público de mais de 300 mil pessoas em recinto fechado e mais de um milhão em concertos ao ar livre. Por todos os lugares em que a gente chega, já é mais ou menos como se fosse um pop star, entende? É como se chegasse o ônibus do Corinthians. Cheguei quinta-feira passada em Votuporanga, tinha três mil pessoas dentro da igreja e mais mil do lado de fora que não conseguiram entrar. Aí chega em uma cidade como Belmiro Braga, cem quilômetros de Juiz de Fora, com 3.500 habitantes…

Brasileiros – Neste caso, quem contrata, quem convida? Como vocês foram parar lá?
J.C.M. – Por exemplo. Eu vou dar um concerto em Juiz de Fora pra Votorantim. Eu peço: veja se tem uma cidade pequena por perto pra gente levar música. E eles me falaram: tem Belmiro Braga. Então vamos a Belmiro Braga na faixa. Chega em Belmiro Braga, aparecem três mil pessoas na praça da cidade, quer dizer, quase a cidade inteira… Sempre fazemos isso: vamos a uma cidade maior e depois seguimos para a pequena para tocar de graça.

Brasileiros – Conta uma história de uma cidade pequena dessas que te marcaram muito nessa tua volta.
J.C.M. – Pois é, tem Cantagalo, lá no Rio, que é uma cidade pequena também… Vou te contar duas lindas histórias. A minha vida hoje é igual à do Zezé Di Camargo e Luciano no começo da vida deles. Quando estou na Sala São Paulo, é como eles estão hoje. Chegamos em Cantagalo na hora marcada, três da tarde, não tinha ninguém na igreja porque o espetáculo não foi anunciado na cidade. Eu pedi para colocar uma kombi na rua, avisando o povo. Meia hora depois, a cidade estava na igreja. Quando acabou o concerto, eu vou lá pro lugar onde o padre troca de roupa, chegou uma senhora linda, com uns 55, 60 anos, já com cabelos brancos. Quando eu vou ver, ela está ajoelhada, beija minha mão e fala:
– Maestro, há 20 anos que não vem uma orquestra em Cantagalo.
E começou a chorar… Aí eu me ajoelhei e beijei a mão dela. Tem a outra história. Eu fui fazer um concerto no meio da rua em Sobradinho, perto de Brasília, num parquinho que montaram lá… Botaram umas cadeiras, o pessoal foi juntando… Um menino de oito anos estava sentado com o público, eu explicando a música que iríamos apresentar, e ele faz assim pra mim, me chamando. Pergunto o que ele quer, aí ele pegou e puxou a cadeirinha dele, botou bem perto do palco e falou:
– É tão bonito, posso assistir daqui?
Eu tenho essa foto.

Brasileiros – Explica para quem não conhece a tua história a que você atribui essa tua força para dar a volta por cima em tantos e tantos episódios. De onde vem essa força para virar leão de novo? Como é que foi possível? Porque parece tudo meio inverossímel…
J.C.M. – A melhor mentira do mundo é a verdade. O cara fala: pô, não pode ser que esse cara está contando a verdade. A melhor mentira do mundo é a verdade. Quando eu acordo de manhã, fico pensando: meu Deus, subir e descer 50 vezes a escada, depois fazer fisioterapia nos braços e nas mãos, decorar isso, decorar aquilo. Faço o jogo do contente. Eu falo pra mim mesmo:
– Nessa mesma hora, tem um cara que é tetraplégico, um que é cego, um que é surdo, um que é isso… João, vai pra puta que pariu, e vai fazer tudo o que você tem que fazer. Aí eu vou com uma garra do caralho.

Brasileiros – É sobre isso que você fala nas tuas palestras?
J.C.M. – Eu falo muito sobre isso nas palestras. Meu problema é muito menor do que o de milhares e milhares de pessoas. Mas, pela exposição que eu tive, eu sei que hoje eu sirvo de exemplo pra milhares e milhares de pessoas. Eu tenho essa consciência. Qualquer aeroporto que eu chego, eu dou dez passos e vem uma pessoa falar comigo. De cada dez pessoas que vem falar, uma chega e diz assim:
– Por sua causa, eu voltei a acreditar na vida.
Então quando nós vemos estas coisas, eu fico brincando com os músicos:
– Vocês viram que eu agora sou um pop star?…
Mas logo pergunto para eles:
– Eu estou exagerando alguma coisa?

Brasileiros – Nas viagens também devem acontecer algumas coisas engraçadas, vocês brincam muito um com o outro. Você já deu alguma mancada nesta vida de pop star?
J.C.M. – Entre nós, ninguém pode perguntar para o outro quem é tal pessoa, a gente pega o cara na sacanagem. Quando entra um novato na orquestra, eu falo: a Samara mandou um abração pra você. O cara pergunta: que Samara? E aí eu mostro pra ele: a Samaravilha aqui… Então a orquestra inteira, se o cara fala o nome de uma pessoa, pergunta do Armando, do Alfredo, o cara fica esperto. Tem tanta história engraçada, que a gente não se lembra de nenhuma, mas eu vou me concentrar pra lembrar de uma bem legal porque nós temos muito tempo de viagem ainda.

Brasileiros – Com tudo isso que já te aconteceu, qual o sonho que falta virar realidade nesta orquestra?
J.C.M. – O meu sonho é o seguinte: a orquestra jovem apresentar a primeira, a terceira, a quinta, a sétima e a nona sinfonia de Beethoven. Ela tem que fazer isso pra se estabelecer como a melhor orquestra jovem do Brasil, mas disparado, sem discussão. Uma orquestra que todo mundo vai falar: pô, essa orquestra é profissional. E fazer já este ano a primeira turnê sul-americana. Este é o meu sonho. Quando eu reuni os jovens, eu falei: nós vamos começar uma jornada. Pode demorar um, dois, três anos, mas a gente vai se impor de uma tal forma que daqui a três anos não seremos nós que vamos estar pagando, vai aparecer um patrocínio para essa orquestra. E três anos depois apareceu.

Dave Brubeck, Faustão, índios, Pau Brasil…
Acabou o primeiro lado da fita e peço pro Hélio virar a dita cuja. Nem isso eu sei fazer. Fico com medo de cometer alguma bobagem e perder o que está gravado. Morro de medo. Sabendo disso, o Hélio vai conferir a gravação e faz uma cara de quem não está ouvindo nada. Fiquei tão nervoso que me deu dor de barriga, e corri para o banheiro pensando na tragédia que seria se o gravador não tivesse funcionado. Na volta, estão os dois dando risada da minha cara. Fora o barulho do motor do ônibus, estava tudo certo com o gravador. João Carlos aproveitou o breve intervalo para falar com seu empresário, Jay Hoffman. O maestro queria saber como estava a sua agenda em julho para poder marcar um concerto entre os dias 10 e 15.

Brasileiros – Vamos começar a segunda parte deste concerto da tua vida no ônibus. Conta como você se tornou amigo do grande Dave Brubeck, com quem já tem um concerto marcado para outubro em Nova York.
J.C.M. – O encontro com o Dave Brubeck foi uma história muito engraçada. Eu estava dando um concerto de verão em Ancorage, no Alasca. Eu não conhecia pessoalmente o Dave, que estava indo com a família de Nova York para Tóquio. Deu uma pane no avião, não sei o que foi, e ele teve que parar em Ancorage com a família toda. Aí ele viu um cartaz do nosso espetáculo e resolveu ir ao concerto. Eu tinha 20 e poucos anos. Fiquei sabendo que ele estava na plateia e então resolvi tocar em sua homenagem a única música não clássica que eu sabia. Era uma música chamada “Obrigado”, que o Dick Farney me ensinou, composta pelo Dave em homenagem a Chopin quando foi visitar o túmulo dele. O Dave tinha acabado de sair na Time Magazine, foi o primeiro músico de jazz a sair na capa da revista, e onde ele chegava era uma loucura. Quando me avisaram que ele estava assistindo ao meu concerto não acreditei. Aqui no Alasca? Não, não pode ser. Sim, está ele com a família toda, me falaram. Na hora do bis, o teatro lotado, olhei para onde ele estava e anunciei: Mister Dave, em sua homenagem eu vou tocar “Thank you”. E toquei. Aí foi ele que não acreditou… Depois ele veio atrás do palco conversar comigo e nos tornamos amigos. Agora vamos tocar juntos.

Brasileiros – Como surgiu esta idéia de juntar a tua música clássica com o jazz dele no mesmo palco?
J.C.M. – Vai ser no Lincoln Center, a sede da New York Philharmonic, na Avery Fisher Hall, um auditório para cerca de três mil pessoas. O Dave está com 89 anos de idade. A ideia foi minha e ele aceitou de cara. Na primeira parte, eu vou reger Villa-Lobos. Na segunda, perguntei se ele topava tocar aquela música que fez em homenagem a Chopin. Topou na hora. Na hora em que ele entrar no palco, o Lincoln Center inteiro se levanta e fica cinco minutos aplaudindo de pé, antes de começar a tocar. Quando ele acabar, a produção encosta o segundo piano e eu toco junto com ele “Brandenburgo Gate.” Vai ser no dia 2 de outubro, não percam…

Brasileiros – Aproveitando que você está falando de planos para o futuro, como é esta história de que a Vale do Rio Doce te convidou para montar uma orquestra de índios?
J.C.M. – Esta ideia foi do Mário Teixeira, que é do conselho do Bradesco e faz a ligação do banco com a Vale. O Bradesco hoje está sendo um dos principais patrocinadores da fundação, junto com a Oi. O Mário Teixeira botou até o Roger Agnelli, presidente da Vale, comigo no telefone pra falar: vamos fazer uma coisa que o Brasil pode exportar pro mundo. “Você faz uma orquestra de índios pra gente exportar pro mundo?” Eu falei: “Pô, era tudo que eu queria…”

Brasileiros – Mas você já tinha pensado nisso antes?
J.C.M. – Não, mas o que eu mais quero na vida é popularizar a música clássica. É como isso que estou fazendo agora no programa do Faustão. De dois em dois meses, quero mostrar lá os temas mais famosos da história da música clássica. Já pensou entrar com a nona de Beethoven, no final do programa, antes do Fantástico? Agora eu estou indo lá no Alto do Xingu levando 200 garrafas com água. Cada garrafa tem um som e eu quero ver se em três horas eu tenho 200 índios tocando a nona de Beethoven. Aquela garrafa tem o si, a outra tem o sol, o ré, o mi, o dó, pan, pan, pan, pan, então são cinco sons de garrafa. Eu vi um cara chamado Guilherme Santiago fazer isso em um auditório. Eu ensino o cara a assoprar na garrafa e faço ele ficar musical. Você vai assustando o índio pro índio tocar… Eles não sabem o que estão tocando, mas você aponta a garrafa assim, depois você começa a ensinar e eles vão tocar. Isso eu quero fazer no Faustão. São duas coisas diferentes. Isso das garrafas é no Alto Xingu. Eu vou lá e desço no meio da selva com uma equipe lá da Funai. Agora, para o projeto da Vale eu tenho que selecionar 40 em uma colônia que tenha uns 400, 500 jovens. O dom é fácil perceber.

Brasileiros – Fácil para você… Como é que se descobre o dom musical de uma pessoa?
J.C.M. – Agora mesmo teu tenho ido aos CEUs da Prefeitura de São Paulo. Vou no CEU lá de Capão Redondo, Cidade Dutra… Tem lá uma pequena orquestra tocando, você chega e chama um garoto pra reger. Você ensina o primeiro movimento e ele faz e você vai percebendo quem tem musicalidade e quem não tem. Isso é fácil.

Brasileiros – O que é reger uma orquestra? O que um maestro faz na orquestra?
J.C.M. – A orquestra tem o som do maestro. O pessoal às vezes acha que os músicos da orquestra nem olham pro maestro. A orquestra tem que ter a energia do maestro, o som do maestro, a interpretação do maestro. Eu sempre conto uma historinha de quando eu era pianista e tirava um puta sarro de maestro. Tinha um maestro famoso que não se conformava com o fato de o pianista fazer mais sucesso do que ele. O maestro era todo egocêntrico. Acabou o concerto e o público ali ainda presente, o maestro dava um copinho de vodca para o pianista. “Agora toque a cadência do concerto tal.” O pianista tomou e tocou perfeito. Aí o maestro ficou mais puto ainda. Deu outro copinho de vodca e mandou tocar uma cadência do concerto mais difícil de Beethoven. O cara tocou, e tocou perfeito. O maestro não aguentava mais ver aquilo e deu logo uma garrafa de vodca pro pianista, e ele tomou toda. “Agora toca aí.” O pianista respondeu: “Pra tocar piano vai ser difícil… Mas, se você deixar eu reger a orquestra, eu consigo…”

Brasileiros – Existem muitos casos como o teu em que o maestro se apresenta também como pianista no mesmo concerto?
J.C.M. – Tem poucos que regem e tocam, mas tem. Mas o que é reger um concerto? No fundo, o gesto no concerto é uma coisa mais automatizada. Concerto é tudo aquilo que se combinou no ensaio, com exceção das coisas que dão erradas. Mas é isso, isso é um concerto. Quando eu venho com o braço para cá, então o pessoal já não precisa olhar pra mim, eles já sabem o que é, porque aquilo tudo no ensaio é automatizado. No ensaio é que são estabelecidas todas as regras de gestos e tudo. No concerto você não pode mudar. Se você muda um gesto, você vai atrapalhar a orquestra inteira. Você combinou a entrada da quinta de Beethoven assim, agora se você chegar lá e fizer diferente vai fazer todo mundo errar.

Brasileiros – Já aconteceu isso na sua vida de maestro?
J.C.M. – Aconteceu já… Como eu tenho que reger tudo de cor, por causa do problema das mãos… Cada músico só tem a partitura dele, não tem a do maestro. Está lá escrito 45, por exemplo. Ele fica contando 45 compassos para voltar a entrar. No 43 ele se prepara pra aquecer, mas ele pode ter errado a contagem dele. O que o maestro faz? O maestro está lá regendo, passa pelo 42, olha para o músico e vê que ele já se armou, então passa por ele e continua fazendo a interpretação. Se você olha para o músico no compasso 41 e vê que ele está preocupado com a contagem dele, tem que fazer um gesto pra valer que é pra ele saber que é ali que deve entrar. O que aconteceu uma vez comigo? Eu estava regendo um concerto de Bach lá no teatro Alfa, o pianista tocando. No final da parte do pianista, ele dá um trinado, depois tem o plim dos violinos e aí entra a flauta. Me esqueci do plim para a entrada da flauta. Como eu não uso a partitura, tenho que decorar tudo. E aí eu não me lembrava que tinha esse plim. Eu só olho para os violinistas, estou lá parado, o pianista tocando lá, sabe o que me veio na cabeça? Eu sou ultraconcentrado, perco dois quilos quando eu faço concerto, mas na hora lembrei de uma piada. Sabe aquela do português dirigindo na Marginal, que ouviu no rádio a notícia de um motorista na contramão? “Só um?”, ele perguntou, e foi em frente… Pois é, foi mais ou menos isso… O pianista lá já devia estar até com tendinite, fazendo teatro, esperando eu dar o sinal pros violinos…

Brasileiros – O que é possível fazer para popularizar a música clássica, que ainda é para poucos no Brasil?
J.C.M. – É o que eu estou tentado fazer. Você tem o exemplo da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), por exemplo, que tem aquela temporada para dez mil assinantes e custa uma fortuna. Mas o que são dez mil em um universo de 15 milhões de pessoas em São Paulo? Nada, nada. Você pode continuar fazendo música pra esses dez mil porque é um público que incentiva o próprio músico. É aquele público que entende de música clássica. Mas, ao mesmo tempo, você precisa procurar outros segmentos para levar a música clássica. Por exemplo, dia 9 de maio eu vou fazer uma loucura…

Brasileiros – Mais uma?
J.C.M. – Mais uma. Na primeira parte, eu rejo a quinta de Beethoven na Sala São Paulo. Na segunda, rejo Mozart, Bach, Villa-Lobos e Tchaikovsky. Só que enquanto eu estiver regendo a Filarmônica, vai ter um DJ fazendo a intervenção da música eletrônica antes. E quando acabar… Isso vai ser segredo para o público na hora. Vou tocar um prelúdio de Bach de 1722. Um século depois, em cima deste prelúdio, o Gounod fez a “Ave Maria.” Quando acabar o concerto, eu vou tocar o prelúdio e o DJ vai mostrar uma “Ave Maria” do século XXI da música eletrônica (ver matéria na página 66). Vai ter polêmica, vai ter gente criticando e tudo mais. No dia 7 de junho, eu repito isso no Anhembi para 40 mil jovens. Vou atrair 40 mil jovens para a música clássica.

Brasileiros – Falando em jovens, lá no hotel, antes da gente sair pra viajar, você estava acertando com teu filho Carlos Eduardo, que administra a fundação, um trabalho nos bairros junto a crianças nas escolas. Como que é selecionado o pessoal? Você falou também de uma espécie de bolsa-música…
J.C.M. – Nós estamos correndo as escolas dos bairros e em cada uma chamamos cem crianças que queiram estudar música. Começamos o ano passado, mas se você perguntar pra mim qual é o meu método, a minha filosofia, vou te dizer que ainda estou encontrando aos poucos. A prefeitura só cede o espaço e os alunos. Quem banca tudo é a iniciativa privada, a Gerdau e agora também a Arcelor Mittal. Não tem nenhum tostão público. Desses cem que chamamos em cada escola, talvez 60 no futuro vão fazer parte de um público que não tem talento para a música, só acha bonito. Uns 30, quem sabe, vão ser músicos amadores. Uns 10 vão ter chance de se tornaram músicos profissionais – e entre eles, de repente, sai um diamante. Esse diamante a gente puxa para a orquestra jovem e vai lapidar. Se você faz isso com vários grupos de cem, vai ter mais chances de encontrar diamantes.

Brasileiros – Isso funciona mais ou menos como uma peneira de futebol. Quantos já passaram nessa tua peneira?
J.C.M. – Nós já entrevistamos algumas centenas. No primeiro ano, eu fui tentando encontrar a filosofia. Às vezes eu tive desilusões. Por exemplo, peguei um jovem com talento que era muito agressivo e já tinha tentado matar o irmão. Esse eu selecionei porque ele tinha talento, mas não consegui dominá-lo, ele voltou pra rua. Tinha talento para o violino e para a flauta, mas depois nós vimos que ele já começou com agressividade com os outros. Começamos a informatizar este trabalho no ano passado, mantendo uma ficha de acompanhamento para cada um. Como funciona o sistema? Escolhemos cem jovens e depois montamos aquela tabela que você viu no computador. Perguntamos quanto tempo a criança pode estudar música por dia. Um vai falar 20 minutos. Outro, 40, tudo bem. Criamos uma caderneta que chamamos de diário de bordo em que o próprio jovem vai marcando suas atividades. Começa a aprender um negócio chamado disciplina, isso ajuda formar o cidadão, criar responsabilidade. Quando ele vai mostrar o que aprendeu, o professor sabe se ele mentiu ou não, saca na hora. Tendo talento mesmo, já pode levar o violino pra casa. Aí entra a segunda parte: o pai recebe a bolsa, quer dizer, uma cesta básica no final do mês, que é pra não vender o violino… Por isso que eu brinquei quando eu fiz a primeira exposição desse projeto: “Esta história de bolsa deu certo pro Lula, tem que dar certo pra música também”.

Brasileiros – Uma das razões sempre apontadas para não levar a música clássica à televisão é que ela não dá audiência. Mas, se não levar, como popularizá-la?
J.C.M. – Foi isso que falei para o Faustão. Experimenta colocar no teu programa, de dois em dois meses, as obras dos compositores mais famosos da música clássica. Mas me dá os 15 minutos finais do programa, antes do Fantástico. A direção da Globo não queria…

Brasileiros – Ia derrubar a audiência…
J.C.M. – É, mas deu pico de audiência. Saiu em todos os jornais. A própria direção da Globo falou que não acreditava, e a audiência subiu três pontos. Agora eu vou repetir isso no dia 12 de abril, mas vou fazer diferente. Vou pegar uma música popular que é o “We Are the Champion” e fazer uma introdução com Bach, e aí entra o coro. É uma introdução só de 40, 50 segundos. Basta isso na televisão.

Brasileiros – Por que dá essa audiência na Globo domingo a noite e não dá na TV Cultura, que há anos apresenta música clássica em sua programação?
J.C.M. – Bem ou mal, aí eu acho que vem a palavra carisma. O Isaac Karabtchevsky é um cara com carisma, o Arthur Moreira Lima é um cara com carisma. O público precisa de pessoas carismáticas. Por que o Pavarotti fez essa revolução na ópera com os três tenores para plateias de 400, 500 mil pessoas? Carisma. Agora, quando você pega um daqueles quadradinhos, são aquelas dez mil pessoas de sempre que falam: “Oh, como ele é bom”.

Brasileiros – Além de todos os teus acidentes, separações, assaltos e cirurgias (veja a via crucis de Martins na página 64), você teve uma experiência traumática na política que quase acabou com a tua carreira. Como você, foi parar na política?
J.C.M. – Em 1985, com a síndrome dos movimentos repetitivos, eu tive que parar pela segunda vez com o piano. Eu morava na Granja Viana, tinha uma vida muito legal, um campo de futebol na minha casa. Meu vizinho, que jogava futebol comigo, chegou num sábado, no final da tarde, chorando. “Eu pedi concordata, eu quebrei”, ele me contou. Falei para ele: “Olha, eu não vou poder mais tocar piano porque estou com LER. Eu vou entrar de sócio e vou levantar tua firma”. Coisa de louco mesmo. Era uma pequena empresa de manutenção, chamada Pau Brasil, que tinha apenas seis funcionários. Um ano depois, já estava com 600. A gente fazia todo serviço de manutenção nas grandes empresas de Cubatão, na Baixada Santista. Na parte tributária, eu nunca neguei isso, a firma era uma bagunça porque eu nunca fui empresário. Eu só tinha aquele livrinho do português do armazém, o dinheiro que entrou e o dinheiro que saiu…

Brasileiros – Como entra o Paulo Maluf nesta história?
J.C.M. – Em 1980, eu não o conhecia. Arthur Moreira Lima me telefona de Israel e fala:
– João, eu me separei agora e vou continuar minha carreira no exterior. Mas eu preciso ter um emprego fixo. Dizem que o cara que assumiu o governo aí, o Maluf, toca piano, João. Será que você arrumava pra mim…
Eu perguntei de quanto ele precisava por mês. Quatro mil dólares, ele me disse. O Arthur falou que poderia fazer programas para a TV Cultura e apresentar-se em cidades do interior para justificar o salário. Eu respondi pra ele que ia procurar o cara. Telefonei e avisei que eu queria falar com o Paulo Maluf. Meia hora depois, me telefona a secretária: “Doutor Paulo mandou marcar hora com o senhor”. E lá fui eu.
– Governador, eu estou aqui numa missão por causa de um amigo meu. Quero lhe avisar de antemão que esse meu amigo é esquerda brava.
Contei a história do Arthur e ele falou para o assessor: “Conheço muito este Arthur. Pode contratá-lo”. Eu falei: “Em nome do Arthur eu agradeço”. Aí eu fui saindo e, quando cheguei na porta, arrisquei: “Governador, não dá pra arrumar essa boca pra mim também?”. E eu fiquei os quatro anos do governo dele na TV Cultura.

Brasileiros – Você e o Arthur…
J.C.M. – Eu e o Arthur. Começamos a fazer os concertos pra cobrir os tais quatro mil dólares. Mas aí vem a segunda parte da história: o concerto a seis pianos com o Nelson Freire, Antonio Guedes Barbosa, Jacques Klein, Arthur Moreira Lima, eu e o Paulo Maluf.

Brasileiros – Quem teve essa ideia ou foi ele mesmo que pediu?
J.C.M. – Foi assim. Eu chego em Nova York e encontro o Isaac Karabtchevsky, que estava num hospital com a mulher cuidando da filha de nove anos em tratamento de câncer, gastando uma fortuna. Eu perguntei como é que ele estava aguentando pagar isso. Aí eu tive a idéia. Voltei pra São Paulo, telefono pro Paulo Maluf e falo:
– Governador, tem um concerto a seis pianos do Chopin. Uma parte é bem fácil. Eu acho que convenço todos os maiores pianistas brasileiros a tocarem com você. Você toca aquela e nós fazemos um concerto a seis pianos.
Na hora ele respondeu que vinha para a minha casa estudar. Eu nem tinha falado com os outros. Aí telefonei pro Nelson, Jacques, Arthur, e todo mundo topou. Só depois eu falei para ele:
– Paulo, eu preciso de uma coisa para fazer isso. Você precisa trazer a Orques-
tra Sinfônica Brasileira para São Paulo, vai ser importante e assim o Isaac (regente da orquestra sediada no Rio) passa a ter uma renda extra.Deu tudo certo, aí fizemos o concerto a seis pianos.

Brasileiros – Que nota você dá para aquela apresentação do pianista Maluf?
J.C.M. – Antes de entrar no palco todos os pianistas têm seu tique. Eu tenho o meu, o Nelson o dele… Aí, o Arthur fala pra mim: “Treino é treino e jogo é jogo. O homem está nervoso”. O Jacques também falou: “Olha como o homem está tenso”. Eu falei: “Deixa que eu vou conversar com ele”.
– Governador, não se preocupe. Se você mancar, o Arthur está te cobrindo, ninguém vai perceber.
Ele me respondeu bravo:
– Nunca mais repita isso. E quero te dizer outra coisa: quando acabar o concerto, quanto mais tempo vocês ficarem agachados agradecendo, melhor. Assim vou ser mais aplaudido. Então esta foi a origem do relacionamento com o Paulo.

Brasileiros – E onde entra a Pau Brasil?
J.C.M. – Na campanha para governador de 1990, eu estava com a firma e o Paulo Maluf me telefona:
– Você está com muito prestígio lá na Baixada e tudo mais, tem a tua firma, você já viu várias campanhas políticas, então eu acho que você podia me ajudar na arrecadação de recursos.
Eu respondi: “Claro que sim”. Aí veio o Plano Collor. E o que acontece? Por isso que eu digo que eu faço parte da história do Brasil. Quando veio o Plano Collor acabou o título ao portador. Não tinha mais dinheiro na praça. Todas as campanhas políticas eram feitas com título ao portador porque ninguém se identificava. Só que, desde Pedro Álvares Cabral até 1992, não teve um prefeito, um governador, um presidente da República que não tenha sido eleito com o dinheiro das empresas privadas, dos bancos…

Brasileiros – O famoso caixa dois…
J.C.M. – Pela Constituição brasileira, pessoa jurídica não podia contribuir com campanhas políticas. Muito bem, veio o Plano Collor, não podia fazer com nota fiscal. E eu fui o único brasileiro que assinei todas as notas fiscais da campanha, só que não eram de serviços da Pau Brasil, claro Por isso eu que fui o cara que pegaram.

Brasileiros – Foi o único que passou recibo, é isso?
J.C.M. – Eu passei recibo… Só que eu seria preso se não tivesse a minha secretária guardado todos os documentos. O Calim Eid, que era o chefe da campanha, falou para eu rasgar tudo, mas a minha secretária, ao invés de rasgar, ela guardou. O meu irmão Yves (Gandra Martins), que é um grande advogado tributarista, me falou:
– Você agora só tem uma salvação. Contar toda a verdade.
Todo mundo foi contra e tudo mais, mas eu contei a verdade. Salvei as empresas que deram o dinheiro, salvei o Paulo Maluf, mas eu me fodi, minha empresa quebrou.

Brasileiros – Do que você foi acusado?
J.C.M. – Por contribuição de empresa para campanha política, que naquela época era proibido. A minha empresa fazia serviços de manutenção de limpeza, como é que podia receber dinheiro, dar uma nota fiscal de um serviço que não tinha prestado para campanha política? Só que eu paguei as gráficas também com nota fiscal. Por isso que depois eu ganhei de nove a zero no Supremo Tribunal Federal. O único cara que se ferrou fui eu nesta história, o resto todo mundo puxou o carro. O único cara que teve coragem de dar uma entrevista de página inteira no Estadão me defendendo foi o Orestes Quércia, que falou: nós todos fizemos igual. Foi o único cara que chegou e falou:
– O que estão fazendo com o pianista é uma injustiça porque nós todos fizemos doação. Nós todos fizemos a campanha igual e é muita hipocrisia quem falar que não fez igual ao pianista.
Mas pra você ver o que é sofrimento. Dezenove anos depois, me aparece agora outro processo. O Calim Eid, que morreu em 1998, tinha uma firma pequenininha, que precisava de duas assinaturas e eu assinava com ele. Um mês atrás fui condenado por causa dessa firma. Claro que eu vou ganhar no Supremo de novo. Pra você ver o que é marcação. Isto aconteceu um dia antes da abertura da minha temporada, no começo de março. Eu poderia ficar totalmente desestabilizado. Por isso que eu te falei que sofri todas as adversidades que me atingiram as mãos e esta outra que me atingiu a alma…

Brasileiros – E qual delas foi pior?
J.C.M. – Ah, esta história de campanha política foi muito pior para a minha alma do que todos os problemas físicos. Então eu digo pra você. Em 1975, eu era um cara bem de vida. Esse meu apartamento onde moro foi comprado em 1973, hoje eu tenho uma vida muito mais modesta. O Yves olhou pra mim e me perguntou:
– Você meteu a mão na campanha?
– Não meti a mão em dinheiro de campanha.
– Então você vai ganhar no Supremo. Eu não sou seu advogado, mas vou dar uns conselhos certos.
O Yves é um cara muito firme em relação a isso. Mas meus sofrimentos não ficaram só nisso. Cancelaram todos os contratos da Pau Brasil. No começo de 1993, desço pra Cubatão, reúno todos os 300 empregados e falo para eles:
– Acabou a firma.

“Por isso que sou este chorão”
Acabou também o segundo lado da fita, mas as histórias ainda não. O ônibus dá uma parada para o almoço em Queluz. Mal Martins entra no restaurante, é descoberto pela gerente Márcia Regina Pereira, 36 anos, que vem correndo para lhe dar um forte abraço. Depois explica o motivo, com lágrimas nos olhos:

“Meus três filhos estão estudando música por causa do senhor. Um toca clarinete, outro violão e o terceiro está aprendendo bateria. Estou muito emocionada… Vi o senhor no Faustão… Não só meus filhos, o Brasil todo tem que se inspirar no senhor…”

Na fila do bandejão, o maestro conversa com outros fregueses, para para tirar fotos, zomba com os músicos que enchem os pratos. Dali a pouco aparece o maestro da cidade, o Vinícius, chamado pela gerente Márcia Regina. “Ele é o professor dos meus meninos…”.

Como não trouxe outra fita, o jeito é voltar ao velho esquema do bloquinho e caneta porque ainda faltam umas duas horas para chegarmos ao Rio. O problema é que meu amigo maestro fala muito rápido, mistura vários assuntos ao mesmo tempo, e o ônibus chacoalha um bocado neste trecho da estrada.

João Carlos Martins emociona ao interpretar a trilha do filme “Cinema Paradiso”:

“Esta foi a pior parte da história da Pau Brasil. Estes funcionários todos eu tinha uma relação com eles igual à que tenho hoje com os músicos da orquestra. Todo sábado descia para Cubatão e ia fazer a feira com eles por conta da firma. Quando tudo acabou, reuni todo mundo num auditório e falei para eles que eu ia me virar e, em 30 dias, todos teriam o dinheiro da rescisão trabalhista, com todos os direitos pagos, nem que eu precisasse pegar dinheiro em banco. Parecia aquele filme da Lista de Schindler, todo mundo chorando.”

Em seguida, depois de pagar todo mundo, Martins viajou para os Estados Unidos, onde sofreu um assalto e foi parar no hospital. Lá ele ficou sabendo que, mesmo depois de fazer um acordo e acertar tudo com os empregados, 50 deles recorreram à Justiça do Trabalho, levados por um advogado do sindicato. Julgado e condenado à revelia, o pianista que virou maestro conta que não tem renda nem patrimônio para pagar essa dívida. “Posso fazer trabalho voluntário até o fim da minha vida, mas não vou pagar duas vezes a mesma conta. Nem sei de quanto é esta dívida. Há milhares de empresários brasileiros na mesma situação que eu”.

No ônibus, ao nosso lado, segue um ex-funcionário da Pau Brasil que pode testemunhar a favor de Martins. É Wilson Carlos Viveiro, 45 anos, chefe da produção da orquestra, um dos integrantes da turma dos “barrados no baile”, como são chamados os assistentes dele que tiveram problemas em suas vidas e foram resgatados pelo maestro.

Wilson trabalhava na filial da Pau Brasil em Curitiba, que chegou a ter 150 funcionários. Ali aconteceu a mesma coisa: todos fizeram acordo, receberam o que haviam acertado e, depois, 30 deles recorreram à Justiça do Trabalho. “Eu tenho ódio destes caras. O sujeito tem que ter caráter. Com o dinheiro que recebi da Pau Brasil, fui trabalhar com uma madeireira no Mato Grosso, quebrei a cara, mas jamais faria uma coisa dessas com ninguém.”

Martins presta atenção nas palavras de Wilson, mas logo vira a página e proclama, abrindo os braços: “Meu nome foi achincalhado na imprensa, esqueceram tudo o que eu fiz na vida pela música brasileira. Mas o que importa é que agora estou feliz, mais agora do que quando podia ter tudo que queria. Só faço o que gosto”.

Fora dos palcos, a rotina é espartana. O maestro pouco sai de casa. Uma vez por semana vai jantar fora, com a mulher, a advogada Carmem, funcionária da Assembléia Legislativa, com quem está casado faz 12 anos. Eles costumam ir ao restaurante Quattrino, perto da sua casa, às vezes acompanhados dos quatro filhos de Martins que moram no Brasil (ele tem também um filho americano que mora em Nova York).

Compromisso sagrado é ir uma vez por semana ao Canindé para ver jogos da sua Portuguesa de Desportos e comer no restaurante do clube – sempre um peixe grelhado com legumes e purê de batata. Qual o segredo desta felicidade tardia? “Não fui eu que fabriquei a minha história. A vida foi contando a minha história.”

Na chegada ao hotel no Rio, às três e meia da tarde, antes de poder fazer o check-in, Martins é abordado pelo portentoso segurança Eli Campos, carioca de 48 anos que, depois de se certificar de que é ele mesmo, dá-lhe um forte abraço e um tapa na cabeça. A cena se repete. “O maestro é uma lição de vida para todos nós. Nos dias de hoje é muito bom poder se espelhar nele, não importa a idade que nos separa. Vi ele contar sua história no Jô Soares. Para mim, ficou maior ainda”.

Enquanto Martins vai descansar, aproveito para conversar com o segundo homem mais importante da orquestra, o spalla e primeiro violino Laércio Diniz, carioca de 46 anos, que veio de avião e estava à espera da orquestra no hotel. No ônibus veio sua mulher, Ana Maria Chamorro, 47 anos, primeiro violoncelo da Filarmônica.

Os dois se casaram na Alemanha quando ganharam uma bolsa para estudar em Colônia, faz 22 anos. Ajudaram Martins a formar a orquestra quando ele era diretor de arte das faculdades FMU-Fiam e, Laércio, professor de violino. O casal ainda toca também na Orquestra Engenho Barroco, que também ajudou a criar. Como foi ajudar a montar uma filarmônica para Martins reger depois que virou maestro? Para Laércio a receita é muito simples: “Tem que ter bom humor, bom caráter e ser bom músico, nesta ordem…”

De fato, parece que todos ali se divertem trabalhando. Às seis da tarde, como de costume, Martins é o primeiro a descer, antes do horário previsto para pegar o ônibus que os levará ao concerto. Na rodinha que se forma à sua volta, o maestro não para de contar histórias. “Vocês precisavam ver. Na sexta-feira passada, fiz uma palestra para mil pessoas a convite do Bradesco na posse do novo presidente. Passaram um filme de três minutos sobre a minha vida que foi uma beleza. Quando vi, me deu uma crise de choro. Foi uma loucura…”

Para espanto dos ouvintes, ele conta que nunca abriu um computador na vida e já não consegue escrever no papel por falta de força nas mãos. Mas Martins não fala só dele mesmo, conta-me histórias de cada músico que vai aparecendo no saguão – cada um desses personagens dá uma reportagem à parte, mas não vai caber neste espaço.

Já no ônibus a caminho da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, perto do Maracanã, o maestro ensaia o que vai tocar e exercita os dedos em cima do celular, e de repente lembra de outro grande concerto que está marcando mais para o final do ano, junto com Zezé Di Camargo e Luciano. Está preparando arranjos clássicos para seis músicas sertanejas da dupla.

Sete da noite. Uma hora antes do início do concerto previsto no programa, Martins e orquestra sobem ao palco para o ensaio final. “Cadê o piano?”, cobra ele. “Estão terminando de afinar”, explica o faz-tudo Wilson. Como um goleiro ao fazer defesas difíceis, o maestro toca com a mão invertida. “A mão esquerda ainda está totalmente adormecida por causa do botox, está difícil de tocar…”.

Wilson distribui as partituras e, em cinco minutos, já estão todos a postos para começar o ensaio. O único problema é que esqueceram de acender as luzes do palco. Acontece. O filho Carlos Eduardo, o Adinho, vem avisá-lo que só têm mais cinco minutos para terminar o ensaio. A esta altura, só meia dúzia de pessoas ocupa cadeiras na plateia de 1.100 lugares. No camarim, o maestro fica sabendo que o espetáculo vai atrasar um pouco porque o elevador para deficientes, instalado naquele mesmo dia, está com defeito.

Os músicos se espalham para afinar seus instrumentos e beliscar os bolos e sanduíches do lanche servido atrás do palco. Entre eles, está Liliana Chiriac, de 38 anos, que veio de bem longe: da Moldávia, antiga Bessarábia, onde foi selecionada há dez anos para vir ao Brasil tocar violino na Orquestra Sinfônica de Ribeirão Preto. Veio com a filha Lama, que tinha 9 anos, e já está na faculdade. A cada três anos, as duas vão visitar a família em Chrishinau. “Eles estão felizes porque eu e a Lama estamos felizes aqui.”

“Põe a orquestra no lugar. Já ficou tarde. Vamos começar!”, ordena o maestro. Com uma hora e meia de atraso, às 9h30, após vários discursos, em que o maestro aproveitou para dar um breve cochilo, Martins e seus músicos sobem ao palco. Encontram uma plateia minúscula pois se trata de um espetáculo fechado, patrocinado pela Petróleo Ipiranga para a entidade que defende os direitos dos deficientes físicos. Com salas sempre lotadas e multidões ao ar livre, eles já estão ficando mal acostumados, mas apresentam todos os números ensaiados para o concerto desta noite.

Na coxia, o maestro Mateus Araújo, paulista de 38 anos, que veio de Belém, onde é o regente da Orquestra Sinfônica do Theatro da Paz, não vê a hora de tomar o posto do primeiro violino, Laércio, quando Martins vai para o piano e o spalla Laércio Diniz assume o comando da orquestra. Ao me apresentá-lo, antes de entrar no palco, Martins decretou com seu jeitão sempre efusivo: “Este é o nosso novo Villa-Lobos, o maior talento da música clássica brasileira hoje”.

São de Araújo alguns dos mais aplaudidos arranjos da Filarmônica Bachiana, incluindo a do Hino Nacional brasileiro que a orquestra executa no final dos espetáculos nos diferentes ritmos da nossa música. Do Rio, o jovem gênio irá seguir no ônibus com Martins para ficar alguns dias na casa dele preparando o arranjo de “We Are The Champion” (de Fred Mercury, do Queen), que irão apresentar no programa do Faustão.

De pé, a plateia aplaude o esforço de João Carlos Martins, que conseguiu executar três peças ao piano, na segunda parte do concerto: a “Ária na 4ª Corda”, de Bach,”Adios Nonino”, de Piazolla, e “Cine Paradiso”, o grande hit do novo pop star. “Para encerrar, já que vocês estão de pé, vamos executar o Hino Nacional em todos os ritmos brasileiros.” Dá os primeiros acordes no piano e volta ao seu papel de maestro.

Ao sair do palco, às dez e meia da noite, depois de ouvir os agradecimentos dos organizadores e antes de subir no ônibus de novo, João Carlos Martins vem me dar um abraço e confidencia baixinho:

“Nestas horas eu agradeço a Deus de estar conseguindo fazer música… Por isso que eu sou esse velho chorão…”.

Valeu, maestro!


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