Os mistérios de Clarice

“Pensar é dar voz – ainda que sussurrada – à alma. Escrever é materializar o pensamento. Interpretar é transformar o pensamento em ação, oração.”

Em Simplesmente Eu, Clarice Lispector, o cenário branco, reluzente, nos remete imediatamente a uma folha de papel virgem e que será preenchida pelas palavras de Clarice Lispector.
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Ao emitir o seu primeiro som, Beth Goulart apresenta ao público uma Clarice com um sotaque pesado de estrangeira. Antes que se tenha tempo de estranhar o fato, a atriz, na voz da própria Clarice, explica que, apesar de todos pensarem que ela fosse russa – na verdade, nasceu na Ucrânia e logo se naturalizou brasileira -, faz questão de afirmar que é brasileira e que os “erres” guturais são apenas um pequeno defeito de nascença. Mais uma vez, mantém a plateia apreensiva na espera das próximas ações da mulher que marcou a literatura brasileira com suas frases insuperáveis sobre os mistérios da alma humana. Basta apenas um minuto, ou menos, para que tenhamos a certeza de que percorreremos esse caminho como se estivéssemos dentro de um carrinho de montanha russa, por vezes subindo com muita tranquilidade, porém nos fazendo refletir que muito em breve estaremos despencando com a respiração ofegante e os batimentos cardíacos alterados.

Beth Goulart mais uma vez mostra que não fez uma opção fácil. Isso é uma marca da sua carreira nos palcos. Os caminhos fáceis não fazem parte de sua história. A vocação, o talento e o empenho caminham paralelamente. Como disse Clarice Lispector: “Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir”. Beth Goulart tem todos esses atributos.

Durante muito tempo, eu pensei que a literatura de Clarice só dizia respeito às mulheres e confesso que só fui conhecê-la bem mais tarde, já maduro. Só então pude apreciar toda a sua sabedoria, todos os tons de sua voz: doce e materna, passando para a mais aguda, chegando à mais grave.

Ao falar de Clarice, impossível não se lembrar de grandes mulheres que aos poucos e, em rápidas passagens, são projetadas em meus pensamentos: Cacilda Becker, Adélia Prado, Maria Della Costa, Maria Bethânia, Cleyde Yáconis. Ela contém todas essas mulheres em seus escritos. Sua maneira de amar a vida e a arte e o desvendar dos mistérios de ambas me ajudam a entender esse universo feminino com mais clareza.

A magia do espetáculo segue com suas insuperáveis frases sobre a vida, o amor, Deus, a morte – na voz dura e ao mesmo tempo bem-humorada da própria autora. O roteiro assinado pela atriz apresenta também trechos de parte da literatura de Clarice e a atuação diferencia com muita delicadeza o dia a dia da autora e o de suas personagens. O apoio fundamental para as mudanças necessárias vem em parte dos eficientes figurinos assinados por Beth Filipecki.

A direção assinada pela própria Beth Goulart, com supervisão de Amir Haddad, colabora e muito para que o texto de Clarice chegue ao público de maneira clara e emocionante.

A produção impecável traz as assinaturas imprescindíveis de Maneco Quinderé, na luz, e Westerley Dornellas, na maquiagem. A lista de profissionais envolvidos é bastante extensa, o que deixa claro, mais uma vez, que um monólogo é o espetáculo que tem em cena apenas um ator, mas deve ser apoiado por outros criadores adjuntos.


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