Os mosqueteiros da família Lacerda

O escritor Rodrigo Lacerda. Foto: Luiza Sigulem
O escritor Rodrigo Lacerda. Foto: Luiza Sigulem

Talvez o maior orador de nossa história recente, figura controversa, sanguínea, que começou na esquerda e passou para a direita, Carlos Lacerda (1914-1977) continue discursando de seu túmulo. A sete palmos do chão, ele “sente” o que se passa lá fora e reflete sobre seu passado e o de seu pai, tios e avô, figuras conturbadas como ele, que nunca se deram bem entre si e apenas “se relacionavam na arena política”.

Esse é o ponto de partida de Rodrigo Lacerda, 44, em seu novo livro, o romance histórico A República das Abelhas, primeira experiência no formato longo – são 500 páginas de aventuras e desventuras de uma família que sempre esteve, como ele diz, “no olho do furacão”. É também um retrato do Brasil, dada a complexidade da atuação dos protagonistas, que envolvia um sem-número de outros personagens e situações históricos.

Capa do livro
Capa do livro

Autor com dois prêmios Jabuti (para O Mistério do Leão Rampante, Ateliê Editorial,  o primeiro livro, de 1995, e para o juvenil O Fazedor de Velhos, Cosac Naify, de 2006, maior sucesso de sua carreira), Rodrigo tem outros prêmios importantes na bagagem e uma inquietude que o leva a experimentar vários gêneros e formatos, desde poemas que ele mesmo edita a contos, seu próximo desafio.

Na entrevista a seguir, feita na redação da Brasileiros, ele dá detalhes do novo livro, revela o que pensa da política, fala dos autores que o estimularam a escrever, como Eça de Queirós e João Ubaldo Ribeiro, conta anedotas saborosas (a do João Cabral de Melo Neto é impagável) e também fala um pouco sobre o meio editorial, do qual os Lacerda fizeram parte como donos da Nova Fronteira.

BrasileirosA revista Piauí adiantou um trecho de seu romance, rotulando-o como autobiografia histórica. Em que gênero você colocaria o livro?

Rodrigo Lacerda – Eu considero o livro um romance histórico. Começou com um conto chamado Política, que eram as minhas lembranças do velório do meu avô. Eu tinha 9 anos na época. Nesse conto, eu não identificava ninguém. A ideia era fazer o enterro simbólico de uma geração de políticos, de uma fase da história do Brasil, não dele especialmente. O conto foi publicado na “Ilustríssima”, da Folha de S.Paulo, e logo identificaram de quem eu estava falando, por ser neto e tal. A Companhia das Letras me convidou para partir dali e escrever um retrato literário de Carlos Lacerda que não fosse biografia, que não tivesse datas muito rígidas, mas que captasse em flashes a essência do personagem. À medida que comecei a fazer a pesquisa, primeiro me interessei pelo Maurício, pai do Carlos, que hoje é pouco conhecido, mas foi uma figura muita ativa, que começa no Partido Republicano e aos poucos vai se transformando em um socialista utópico. Aí, tinha os dois tios, Fernando e Paulo, dois comunistas. E o velho Sebastião, pai dos três, um republicano abolicionista, do PR clássico.

BrasileirosO Fernando é curioso, pois ele começa apolítico, se apaixona por uma comunista e vira um radical.

R.L. – É, a família era chegada a uma coisa aguerrida, contemporizar não era o forte deles. Então, o livro começou a crescer em direção inesperada. Eu pensava começar em 1930 e ir até 1977, quando o Carlos morre. Mas aí comecei a escrever de 1914, quando ele nasce, para trás. O livro foi ganhando uma dinâmica diferente do que eu imaginava, de um retrato mais literário, impressionista, passou a ter um fluxo narrativo mais palpável, de romance histórico, propriamente. Uma das grandes dificuldades do livro era o quanto de contexto eu queria dar. Não queria ser muito didático. Era uma medida que fui encontrando na tentativa e erro.

BrasileirosNa verdade, tem vários trechos que se lê como um livro de aventuras.
R.L. – Isso eu queria muito, é o mais legal. Adoro esse tipo de livro que combina história e aventura. Eu e o André Telles traduzimos O Conde de Monte Cristo e Os Três Mosqueteiros, e no primeiro semestre do ano que vem vamos traduzir Vinte Anos Depois. O que Alexandre Dumas fazia? Ele pegava cem anos de história da França e encontrava 50 episódios incríveis de personagens históricos. Aí, ele escolhia um desses personagens e condensava todos os 50 episódios em seis meses. Os romances dele viravam uma bomba de emoções. Eu não fiz isso, não precisei, porque ficou muito fácil costurar a história do Brasil com a história da família, já que eles estavam de fato no olho do furacão. O Sebastião um pouco menos, mas o Maurício, o Fernando, o Paulo e o Carlos estavam sempre no olho do furacão, muito. O Maurício participa da Revolta dos Sargentos, apoia os 18 do Forte, ele vai ao Rio Grande do Sul fomentar a Revolução em 1923, em 24, aí ele sai da Revolução uma semana antes de estourar, porque queria que o comando revolucionário ficasse no Rio de Janeiro, mesmo assim é preso e fica até 1926. O livro tem esse sabor de aventura também em parte porque a política brasileira era muito violenta naquela época. Jornalista apanhava porque fez uma matéria falando mal de alguém, era comum assassinato político… E tinha uma quantidade enorme de projetos políticos acontecendo ao mesmo tempo. Ou seja, era tudo muito intenso, dinâmico, o que me ajudou na hora de escrever. Perto dessa época, a nossa “Guerra Fria” era um marasmo, só tinha dois lados, todo mundo sabia mais ou menos o que era o quê.

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Carlos Lacerda

Brasileiros – E como decidiu que Carlos seria o narrador?

R.L.
– Essa escolha tem duas vantagens: primeiro porque aproxima o leitor, cria uma energia vital para a história. Em segundo porque deixa claro que é uma versão da história, e não a verdade histórica. Isso me deu mais liberdade. Gosto daquela epígrafe do Viva o Povo Brasileiro, do João Ubaldo Ribeiro, que diz que não existem fatos, só versões. E eu dou uma versão. O que eu acho interessante ali é que meu avô deixou uma imagem de um homem muito explosivo, furibundo, o que ele era e sabia ser, mas ele era melhor analista político do que as pessoas em geral veem. Eu gosto dos diagnósticos que ele fazia. 

BrasileirosA política é algo que está claramente no sangue da família. Você também se sente atraído por ela?

R.L. – Gosto bastante de política, ainda que não seja filiado a nenhum partido e, com certeza, nunca serei candidato a nada. No caso deles, a vida familiar era tão conflituosa que a vida política era onde eles se encontravam. Meu avô era brigado com meu bisavô, então meu pai não conheceu o avô dele; meu pai mesmo tinha muitos problemas com meu avô. A onda de contracultura pega meu pai em cheio e não pega meu avô. Tinha uns comentários interessantes do meu avô, que acabei tirando. Ele dizia, por exemplo que o homem freudiano é uma porcaria, um egoísta, que não tem um projeto coletivo, que qualquer autossacrifício em benefício da coletividade era uma neurose, e por aí vai. Quer dizer, ele nunca deixou de ser revolucionário, mesmo tendo apoiado o golpe de 1964 em um primeiro momento.

BrasileirosComo você se define po­­­liti­­­­­camente?

R.L. – Um idealista pragmático. Escrevendo esse livro, ficou muito claro para mim que só os alucinados são ideológicos. Os discursos ideológicos, na minha opinião, são a maneira que os políticos têm de nos manipular, são a cortina de fumaça. A verdade é que a margem de manobra é muito pequena. A revolução está na eficiência, muito mais do que em uma diretriz ideológica rígida.

BrasileirosMuitas vezes, parece que o livro está falando da situação atual.

R.L. – Mas aí não é culpa minha, é um problema do Brasil (risos). É aflitivo. Por exemplo, a campanha do Lacerda contra a construção do Maracanã em 1950. E os motivos eram: uma obra faraônica, que dá margem a sucessivos reajustes no orçamento, totalmente desnecessária, corrupta… Não mudou nada! Em 1954, quando Getúlio se mata e o vice-presidente quer convocar eleições, ele defende que antes das eleições é preciso convocar uma assembleia constituinte exclusiva para pensar em uma reforma política. E esse era o golpista de direita. Quarenta anos depois, a gente vê a Dilma fazendo a mesma coisa.

BrasileirosA narrativa partindo do túmulo é uma alusão a Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis?

R.L. – Na verdade, não. Acho compreensível que pensem isso, mas o que eu queria era tirar o político do jogo e fazer com que ele ganhasse um olhar de fora. É isso que dá, na cena do velório, aquele tom de ironia, quando ele fala: “Dizem que eu brigava com todos os políticos, mas eu só brigava com os que não tinham noção da urgência dos problemas; com os que tinham noção da urgência, mas adotavam soluções precárias; e com os que só pensavam neles mesmos e não nos problemas”. Ou seja, não sobrava ninguém (risos). Além disso, meu avô, embora fosse um cara explosivo, ficou nove anos cassado, teve tempo de abaixar a bola. Quem lê os dois últimos livros de memórias dele, já percebe um tom muito mais reflexivo, e eu queria esse tom para o livro. O narrador fica muito mais interessante se tem autocrítica, se ele consegue se questionar também, coisa que, no calor da briga política, se você parasse para se questionar era atropelado.

Maurício de Lacerda, pai de Carlos, bisavô de Rodrigo
Maurício de Lacerda, pai de Carlos, bisavô de Rodrigo

BrasileirosÉ curioso que você sempre menciona bichos, insetos, larvas em seus livros.

R.L. – Sou um biólogo frustrado. Acho fascinante a sociobiologia. No Dinâmica das Larvas(Editora Nova Fronteira), que é meu segundo livro, tem um personagem que estuda como uma sociedade de formigas se organiza. Eu adoro esse tipo de coisa. A passagem que justifica em parte o título de A República das Abelhas também vai por aí. As abelhas não são uma monarquia absoluta, ao contrário do que se pensa, são uma monarquia constitucional. Quando a rainha vai fundar uma nova colônia, há uma votação, que é muito engraçada. Vão dois pelotões, um para um lado e um para o outro. E, aí, quando voltam com a “informação”, cada “partido” começa a desfilar. Só que, quando um partido desfila, o outro o ataca com cabeçadas. E vice-versa. É meio violento. Muito parecido com a gente (risos). Ganha quem demonstrar mais entusiasmo ou  determinação em derrubar o entusiasmo do outro. Eu me divirto com essas coisas.

BrasileirosO Fazedor de Velhos é um livro que parece ter um teor autobiográfico, já que mostra a passagem de um estudante de história para escritor. Você também teve essa passagem, como foi?

R.L. – Eu fiz graduação em História, vivi os dilemas do personagem que, para mim, continuam valendo, ou seja: que ciência estranha é a História. Se você lê um livro sobre o Brasil colônia e o historiador é  marxista, ele dará um retrato; se ele é católico, dará outro; se for um historiador das mentalidades, dará um terceiro; se for positivista, um quarto… Então, que ciência é essa? Escrevendo A República das Abelhas, isso ficou muito claro. Por exemplo, na última reunião de ministros com Getúlio, que aconteceu antes de ele ir para o quarto e suicidar-se. Eram apenas cinco ou seis pessoas. Como é possível que as versões do que foi dito naquela reunião sejam tão disparatadas? Quer dizer, a subjetividade humana é poderosa. E isso em um único fato histórico, imagina em uma revolução!

BrasileirosMas como você se tornou  escritor? Quais foram suas inspirações?

R.L. – Fui fazer um curso de pós-graduação em algo tipo meta-história, cujo trabalho final era pegar o tema da nossa tese e transformar em conto. O meu tema era um Fla-Flu entre o teatro de Camões e o de Shakespeare. Foi assim que surgiu O Mistério do Leão Rampante, e eu nem terminei essa pós. Dois ou três anos depois, voltei para a USP, mas já na Teoria Literária, quando fiz minha tese sobre o João Antonio. Brinco que meus três escritores centrais foram Eça de Queirós, que me ensinou a rir de mim mesmo; Shakespeare, que me ensinou a lutar contra os problemas; e depois, ao traduzir Palmeiras Selvagens, descobri o Faulkner, que me mostrou que não há saída (risos). Pelo menos, eu estava acompanhado, não tinha mais aquela sensação adolescente de ser o único que estava infeliz. Na linha do Eça, gosto do João Ubaldo Ribeiro, que também é muito erudito e bem-humorado, muito sonoro em suas frases e te ensina a rir das próprias mazelas. Eu gosto de autores que se arriscam em territórios diferentes. O que pode até atrapalhar sua carreira, pois é mais difícil fidelizar o público. Cheguei a tentar fazer uma continuação de Leão Rampante, mas desisti, não queria isso. Não consigo muito manter o mesmo registro de um livro para  outro. Para mim, a voz narrativa muda muito.

BrasileirosE fazer muito sucesso com o primeiro livro não mexeu com sua cabeça?

R.L. – Dizem que se você tem um primeiro livro de sucesso, o segundo será um fiasco. Foi o que aconteceu com o Dinâmica das Larvas e especialmente com o Tripé (Ateliê Editorial), que ninguém entendeu e ficou sumido das livrarias. Nos dois primeiros, é visível a influência de autores como João Ubaldo e Eça, uma prosa mais adjetivada, frases longas, sonoras, uma carnavalização de erudição na linguagem, uma coisa meio farsesca. Aí, pensei: não quero continuar a escrever do mesmo jeito por mais 50 anos, vou morrer de tédio. Um tio me disse nessa época: “Está na hora do sapo pular”. E o Tripé foi isso, um livro-laboratório, em que experimentei três gêneros com os quais eu não tinha familiaridade: conto, roteiro e crônica. O conto exigia uma concisão que eu tinha dificuldade. O roteiro eu não sabia como fazer e a crônica era não ficção.  Mas o livro mais difícil de escrever foi Outra Vida (Editora Alfaguara, 2009, vencedor do prêmio da Academia Brasileira de Letras). Fiquei oito anos nele. Tem uma frase do Milton Hatoum, que diz: “Escrever um romance é um processo de amadurecimento pessoal”. E Outra Vida foi isso. Quando comecei, não estava preparado para terminar aquela história. Eu precisava viver um monte de coisas. Travei ali e então decidi escrever uma coisa leve, para me divertir, improvisando, sem plano… E aí surgiu O Fazedor de Velhos em dois meses, que acabou sendo meu maior sucesso e uma maldição, porque os outros eu passo anos pesquisando, suo sangue (risos).

BrasileirosSua rotina é muito rígida?

R.L. – Sou bem maníaco. Acordo bem cedo, trabalho de manhã, todo dia, sou obsessivo, não é uma coisa saudável, mas pelo menos faz com que eu chegue ao final dos livros. Porque tudo joga contra na vida do escritor, o lado financeiro, o lado familiar… Então, ou você é obsessivo ou escreve um ou dois livros, cansa e vai fazer outra coisa.

Brasileiros Como foi conviver desde cedo com os escritores famosos que frequentavam sua casa?

R.L. – O negócio de ter nascido em uma família de escritores e editores é uma faca de dois gumes: por um lado era uma motivação, por outro era um fator de inibição imenso. Quando vi pela primeira vez o João Cabral de Melo Neto levando um livro na Nova Fronteira (editora que foi da família), e a editora falando: “João, olha aqui, essa métrica está errada, esse verso não está funcionando”. E ele dizia: “É mesmo, o que você acha que eu posso colocar aí?”. Pensei: “Então, é assim que se fazem as obras-primas?”. Quando a gente foi lançar a obra completa dele pela Aguilar, tinha uma mesa com três, quatro pessoas que iam falar sobre seus poemas e uma dessas pessoas fez uma análise impenetrável, cheia de citações obscuras, ninguém entendeu nada. Na saída para o hotel, João virou e disse: “Olhe, quando ouço fulano falando assim de minha obra, não sei, mas acho que ele está me gozando” (risos). Nesse sentido, foi ótimo trabalhar em editoras, pois a literatura deixou de ser algo inatingível.



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