Do bairro de Botafogo, Maria Lucia Dahl estudou Filosofia, mas abandonou o curso para embarcar em uma bem-sucedida carreira de atriz. Do Cinema Novo à retomada do cinema brasileiro, atuou em quase 40 produções, como O Menino do Engenho, Eu te Amo e Quem Matou Pixote?. Na televisão, esteve em 15 novelas e minisséries de grande sucesso, como Dancin’ Days, Anos Rebeldes e Torre de Babel. Cronista de mão cheia, é colunista do Jornal do Brasil – que esse ano passou a ter apenas sua versão on-line em atividade. Publicou, em 1983, a autobiografia Quem não Ouve seu Papai, um Dia Balança e Cai. Em 2005, foi homenageada pela coleção Aplauso, com a compilação de crônicas O Quebra-Cabeças. A partir dessa edição, ela assina esta coluna, onde divaga sobre o cotidiano carioca, que sintetiza em muitos aspectos o que é ser brasileiro
Hoje, li no jornal que a Farmácia Popular vende até para mortos! Isso talvez tenha justificado os papos loucos que ouvi na fila especial do supermercado. Uma senhora reclamava das crianças no colo de moças, dizendo que elas levavam aqueles garotos só para justificar estarem naquela fila. Uma outra contou que sua mãe não podia obter fraldas descartáveis porque a farmácia exigia que o próprio usuário, no caso sua mãe de cama, aos 94 anos, assinasse um papel com firma reconhecida para ganhá-las com desconto ou de graça. Então, começou a rolar um papo que parecia piada de português, quando outra senhora contou que sua mãe, que tem Alzheimer, também foi requisitada para assinar a compra de remédios e que ninguém mais, sem a sua assinatura, poderia levá-los, enquanto a mulher com Alzheimer delirava em sua doença, andando com uma babá pelo supermercado, até me perguntar, de repente:
– Por que você não senta?
– Onde? Perguntei.
Ela me respondeu olhando para o chão:
– Aqui ó. Tem muito lugar…
A empregada murmurou: “Qual!”. Como dizia minha avó, o que hoje significaria: “Coitada! Tá doidaça!”.
Um senhor me agride dizendo que era a terceira vez que eu esbarrava, de propósito, com o meu carrinho em seu pé.
Então, uma empregada doméstica, de uniforme impecável, comentou com uma moça:
– Olha só aquela garota com aquele velho ali, viu? Na certa, ele não entra na fila de idosos para fingir que não tem idade para isso. Deve ter vergonha da garota ou a garota, dele.
Todo mundo olhou para o pobre idoso lendo um jornal.
– Esse velho deve ter muito dinheiro. Continuou a empregada. Quem é que ia ficar com esse traste?
– Igual à minha patroa. Diz a moça. Tem 75 anos e um namorado de 30. Ela dá tudo para ele. Agora, vai abrir uma academia de ginástica para o cara tomar conta, já viu, né?
– Ele nunca te paquerou? Perguntou a moça.
– É ruim, hein? Tô lá a fim de perder meu emprego?
Além de a fila ser imensa e barulhenta, realisticamente, quase todos os seus componentes falavam virtualmente em seus celulares.
Uma garota enfezada mandou várias vezes o namorado àquela parte, desligando na sua cara, e ele ligava de novo até ela enlouquecer e xingá-lo de todos os palavrões que sabia.
– Essa fila não anda, não? Pergunta um idoso com o carrinho transbordando de latas de cerveja. Fica aí todo mundo conversando besteira agora. Andar que é bom, nada! E para relaxar, abriu a primeira lata que começou imediatamente a beber.
Outro homem veio atrás dele e pediu à caixa que depositasse créditos em seu telefone.
Houve quase uma certa vaia.
– Essa fila não anda um passo e vem o senhor pedir créditos em vez de comida? Disse a moça. Estou passando mal de fome.
Uma garota dava gargalhadas em seu portátil, contando para uma amiga como tinha passado o marido para trás, na véspera, dizendo que encontrou um gato na lan house e foram direto para o motel. Ele não faz isso comigo? Pois agora foi a minha vez!
A senhora da frente balbuciou outra vez:
– Qual!…
Finalmente, chegou minha hora. Paguei tudo rapidinho e saí com carrinho e tudo para encontrar meu pedreiro, que já me esperava na porta de casa.
– A senhora já viu as parede do jardim?
– Baiano, respondi. Me dá um tempo. Estou acabando de chegar do supermercado.
– Tem que descascar toda a parede. Tá tudo ocado. Isso é por causa da humildade. A casa da vossa pessoa tem muita humildade. Tem que podar a mangueira pra não fazer sombra…
– Tá bom, Baiano, a gente conversa sobre isso depois, tá? Vou dar só um tempinho, arrumando a mala para ir para Petrópolis, único lugar que ainda me acalma um pouco…
A estrada entupida de carros me fez lembrar do supermercado. Ninguém mais seguia regras, fazia fila… Era um amontoado de automóveis buzinando e querendo passar de qualquer jeito, pouco se lixando para o outro.
O ar refrigerado do carro quebrado. Certo sufoco costumeiro na saída do Rio até que de repente não mais que de repente, como se fora um milagre, o frescor da serra e sua silhueta azul, contornando a estrada com seus perfis esculpidos nas montanhas de narizes longos, queixos pontiagudos, cabeças deitadas e bustos inclinados contra um céu de fim de tarde, contrastando com uma lua nascendo, cor de prata. Até que mais acima chegou o “russo”, um sinal da natureza para dizer que chegáramos a Petrópolis. Ele nos dá boas-vindas esfriando o tempo e exigindo sweaters guardados nas malas, que vestimos, antes de nos sentar na Confeitaria Pavelka e tomar aquele chope com croquete em meio a uma paisagem e clima que me levam de volta à confeitaria do Alemão.
– Quero biscoito casadinho, mamãe. De doce de leite.
Então, o meu inconsciente se abre como se fosse um cofre de ouro e me enche de uma alegria contagiante, abrindo minha alma contida e me levando a minha infância querida que os anos não trazem mais.
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