Eu atendi o telefone e, pela voz, me dei conta de que as coisas não iam bem. Chamar-me para almoçar num japonês em dia de semana? Era estranho. Sugeri o Toyama, ao lado do escritório, onde sempre almoço. Ela concordou.
Eu cheguei na hora, pensei em tomar um saquê. Só pensei. Passaram-se uns 20 minutos, nada de ela aparecer. Mais uns 15 e pedi o saquê. Não dá para esperar meia hora a seco, me convenci facilmente. Ela chegou dizendo: “As coisas não vão bem, nada bem”. Pegou meu saquê e começou.
O casamento, seu segundo, ia mal. Ela disse o que sempre escondera de mim: o marido era um narcisista, cicloide, sensitivo-paranoide, compulsivo e histérico. Discorreu sobre as facetas do pancada e o impacto em sua vida, sua psique, sua autoestima. Eu, que já tinha percebido aquilo antes, não abri o bico. Não era hora.
Perguntei se ela dividiria uns guiozas comigo. Ela disse: “Fritura nem pensar”. Eu sugeri então uns sushis de salmão. Ela disse: “É muito calórico”. E começou a chorar. O marido insistia que ela era gorda. Justo ela, enxuta. Fragilizada, começou a fazer regime, mas não perdia peso. Não havia o que perder. Eu, então, pedi sashimi de atum e mais saquê. Em plena quarta-feira.
Ela disse que não aguentava mais o inferno. Falou das explosões, das grosserias, das falas tensas, dos silêncios pesados e por aí afora. Estava preocupada com o fim da relação. Não por ela, que não aguentava mais, mas pelo que iriam pensar os parentes e amigos. Eu disse que aquilo era uma bobagem sem tamanho. “Considerar o que os outros pensam de nós? Não tem o menor cabimento.” Argumentei muito, mas não tive sucesso. Ela repetiu muitas vezes: “O que vão achar de mim?”. Escutei tudo com muita aflição. Não dava para interromper. A situação era delicada. Não que ela falasse alto, mas soluçava. As atenções das mesas se voltaram para nós. Eu não sabia o que fazer. Nem pegar na mão dela dava, não era assim nossa amizade.
Eu pedi mais saquê e disse baixinho: “Dá logo um pé bunda desse psicopata, ninguém tá preocupado com o fracasso do seu segundo casamento”. Aí eu errei feio. Ao ouvir “fracasso do seu segundo casamento”, ela chorou mais ainda. Torrencialmente, com soluços. Eu nem sabia que havia choro assim. Ela enxugava as lágrimas com guardanapos, um lenço e a toalhinha. Os olhares então se voltaram para mim. Definitivamente, eu era o vilão. Malvado, duro e sem coração.
Fui tentando controlar a situação, mas o choro não parava. Com muito jeito, eu disse para ela dar uma sossegada: todos estavam pensando que éramos um casal e que eu era o causador do choro. Ela, então, disse baixo e firme: “Você diz para eu não me preocupar com meus amigos, mas está preocupado com esse povo aí, que você nem conhece?”. Eu disse que era desagradável, só isso. Ela continuou falando e chorando muito. Os olhares de reprovação pesaram mais ainda sobre mim.
De repente, num átimo, tudo mudou. Ela disse claramente: “Me perdoa, eu juro, juro por Deus que nunca mais vou para a cama com seu irmão, juro!”. Cobriu o rosto com as mãos e continuou soluçando numa mistura riso-choro que só eu percebi.
Aquilo caiu como uma bomba no salão. Todos os olhares se voltaram para ela, a vadia. Eu, num átimo, passei a vítima. Não só isso, passei a corno do qual todos se apiedaram imediatamente. Pior ainda, corno manso, pois continuei ali tentando conter o choro dela.
Aos poucos, ela foi se acalmando e por fim pediu desculpas. “Foi um impulso para te inocentar”, disse ela. Desculpei, fazer o quê?
As pessoas foram saindo. Passavam e olhavam para ela como a uma muçulmana adúltera, em ponto de apedrejamento. Para mim, olhavam com desprezo e dó. Eu, naturalmente, fui me encolhendo. Por fim, pedi a conta e saímos. Jun, o dono, na porta me disse ao ouvido: “Não vacila, larga logo essa vagabunda”. Abatido, concordei.
Eu gosto muito do lugar e da comida, mas nunca mais voltei ao Toyama. Não teve jeito.
*Engenheiro civil, professor titular da Escola Politécnica da USP. Dedica-se também à literatura.
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