Gunter Filho ainda não sabia, mas ao decidir assistir TV em certo dia de junho de 1992 começava a mudar sua vida. Eram tempos de ECO 92, a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD) que acontecia no Rio de Janeiro, e, entre as várias reportagens veiculadas, Gunter assistiu uma sobre a Sea Shepherd. A postura da tal organização de proteção ambiental chamou a atenção do então adolescente de 13 anos, e plantou a semente para uma relação que se iniciaria dez anos depois.
Embora estudasse Letras, Roberta Kleber sempre se interessou também por temas de outras áreas, inclusive aos relativos à preservação do meio ambiente e foi por isso que decidiu assistir à palestra de um certo capitão Paul Watson quando este foi à Unisinos, universidade em que ela estudava em São Leopoldo, na grande Porto Alegre. O ano era 2001 e, embora as ideias daquele barbudo com feições bonachonas tivessem agradado, Roberta achou que se envolver com a organização liderada por ele não era exatamente para ela. Estava enganada.
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Quando adolescente no Rio de Janeiro, nos anos 1990, Daniel Vairo era chamado pelos amigos de “Pinguim”. E não por ser uma pessoa fria, mas por sua íntima ligação com o mar. Surfar em Copacabana era uma rotina, e logo a relação de Daniel com o mar passou do simples entretenimento a um nível mais profundo. Também cidadão norte-americano, ele foi cursar o colegial nos EUA e, aos 16 anos, aprendeu sobre recuperação de animais marinhos. Ao resgatá-los das águas de Laguna Beach, na Califórnia, Daniel percebeu que a grande maioria dos ferimentos tratados eram causados por humanos. Uma perversa realidade que, em um amante do mundo marinho, não poderia surtir outro efeito senão o de fazer crescer a vontade de ajudar. Vontade que começaria a se transformar em prática quando, aos 17 anos, em 1992, Daniel folheava um livro sobre organizações ambientais e se interessou especialmente por uma.
Gunter, Roberta e Daniel não têm em comum apenas a preocupação com a destruição do ecossistema do planeta. Eles já foram voluntários daquela que é, provavelmente, a mais polêmica organização ambiental do mundo, a Sea Shepherd Conservation Society. Criada em 1977 pelo canadense Paul Watson, a entidade vem se tornando cada vez mais célebre por suas táticas agressivas de proteção à fauna marinha, em especial às baleias. Para fazer jus à denominação de “pastora” ou “guardiã” do mar, a Sea Shepherd diz já ter afundado dez navios baleeiros ao longo de sua história e se lança ao mar anualmente em missões de combate à caça ilegal das baleias próxima à Antártica.
Combater a violência à vida animal se valendo de aparente violência pode soar contraditório, mas a Sea Shepherd se orgulha de ter desenvolvido táticas não letais para infernizar a vida dos baleeiros e, oficialmente, nunca alguém foi ferido ou morto em ações da organização. Todos os navios afundados estavam atracados em portos e, na prática, é a intimidação a arma preferida. A bandeira usada pela Sea Shepherd em seus navios é negra, com uma caveira e o tridente de Netuno, o deus dos mares. Passa a ideia de que ali estão piratas do bem, porém piratas com todo o medo que sempre inspiraram oceanos afora.
Abalroar navios baleeiros, ou seja, colidir com eles para assustá-los é a tática mais usual da organização na hora do embate. Atirar contra os inimigos uma espécie de “bomba fedorenta”, normalmente feita de manteiga estragada, é outra das armas utilizadas. Danificar a hélice dos navios baleeiros também faz parte do repertório, mas é complexo e perigoso e foram pouquíssimas as vezes em que deu certo.
Mas essas táticas não letais, ou pelo menos não tão agressivas, têm sido cada vez mais mal recebidas pelos oponentes da Sea Shepherd. A poderosa frota pesqueira japonesa, considerada a grande vilã dos mares, parece cada vez mais irritada com a organização, e vídeos divulgados recentemente na TV e na internet mostram respostas violentas. Membros da guarda costeira do Japão estariam armados entre a tripulação dos baleeiros. Para a Sea Shepherd, prova disso são as imagens que mostram o capitão Paul Watson sendo atingido por uma arma de fogo disparada de um baleeiro. O líder da organização só não correu o risco de morrer porque vestia um colete à prova de balas.
Não bastasse ter a Sea Shepherd em seu encalço em alto-mar, a indústria da pesca ilegal de baleias precisa aguentar também o grande crescimento da visibilidade da organização na mídia e de seu prestígio entre a população ao redor do mundo. “Whale Wars”, programa do canal Animal Planet sobre o dia a dia dentro do navio da Sea Shepherd e que, segundo Gunter e Daniel, é totalmente fiel à realidade, tem sido um grande sucesso de audiência. Tanto que a segunda temporada já é transmitida nos EUA. Recentemente, o capitão Paul Watson e parte da tripulação foram ao talk-show de um dos apresentadores mais conhecidos do mundo, Larry King.
Uma organização odiada por países como a Noruega e o Japão, mas que tem status de herói em outros países europeus e na Austrália. Uma entidade que quase sempre atuou em uma espécie de “mundo underground” das causas ambientais, mas que hoje está na TV para quem quiser assistir e, extraoficialmente, tem entre seus doadores gente do porte do Rolling Stone Mick Jagger, a atriz Brigitte Bardot, o “James Bond” Pierce Brosnan e Richard Dean Anderson, o “MacGyver” da série televisiva. Uma organização com objetivos nobres, mas que se vale de expedientes discutíveis para atingi-los. Talvez só quem já foi um sea shepherd genuíno para tentar esclarecer essas contradições.
“Se você vê uma criança sendo espancada na rua, ou interfere para salvá-la ou faz de conta que não vê e segue o seu caminho. Ficar reclamando, escrever cartazes de protesto ou esperar que outro tome uma atitude não vai resolver.” É com este exemplo que Gunter, hoje com 30 anos, ilustra sua defesa da postura adotada pela Sea Shepherd. Ele acredita na importância da “produção de conhecimento e divulgação de informações” para as causas ambientais, mas ressalta que “se não forem acompanhadas de ações que gerem resultado concreto, acabam se tornando pura psicologia”.
Primeira viagem de Gunter
Gunter hoje vive em Berlim com Roberta, agora com 27 anos e sua mulher. Após anos de atuação como voluntários da Sea Shepherd, os dois decidiram dar um tempo à rotina das missões e devem abrir uma empresa na capital alemã. Gunter cursou biologia na Unisinos, onde conheceu Roberta e iniciou seu ativismo pró-Sea Shepherd. Se o envolvimento na divulgação da organização rendeu um convite para participar de uma missão em 2000, recusado por Gunter porque iria atrapalhar os estudos, dois anos depois o jovem não pensou duas vezes. Já praticamente formado, foi para a Nova Zelândia para embarcar com a Sea Shepherd em direção à Antártica.
Toda a região marítima ao redor do continente gelado é considerada o Santuário de Baleias do Oceano Antártico, criado em 1994 pela Comissão Baleeira Internacional (CIB). Na ocasião, 23 países votaram a favor da criação da área de proteção às baleias, menos o Japão. Em dezembro do ano passado, um decreto assinado pelo presidente Lula elevou as águas da costa brasileira também à categoria de santuário de animais marinhos. Desde então, oficialmente só é permitido caçá-los para “pesquisa científica e aproveitamento turístico ordenado”. A medida poderá ser o primeiro passo para a criação de uma área de proteção que um dia envolva todo o Atlântico Sul.
“Eu embarquei sem nenhuma experiência em navegação e acabei na cozinha do navio”, relembra Gunter. “Passamos 45 dias embarcados e foi sensacional. Estar ali, isolado em meio à imensidão do mar, te dá uma sensação de plenitude. Minha única frustração foi que não encontramos nenhum baleeiro nesta missão de 2002.”
As missões da Sea Shepherd levam uma tripulação de, em média, 40 pessoas, todas aguardando por este que é o ponto alto e, ao final, a razão pela qual todos estão ali – deparar com caçadores de baleias. “Apesar dos perigos envolvidos, na hora de interceptar um baleeiro, é a adrenalina que fala mais alto”, diz Gunter. Parte desses perigos está no fato de que o navio utilizado pela Sea Shepherd nas missões até 2007, o Farley Mowat, é da década de 1950 e, com suas 657 toneladas de peso, é muito menor e mais antigo que os integrantes da moderna frota baleeira japonesa. Ou seja, os combates eram algo como um chihuahua atacando rotweillers, e nunca ter ocorrido algo mais grave com o Farley Mowat é quase um milagre, em parte resultado da estrutura reforçada da embarcação. Já o navio utilizado pela organização nas missões hoje, o Steve Irwin, foi construído nos anos 1970 e pesa cerca de 1.011 toneladas. Além disso, pode alcançar 16 nós de velocidade, contra modestos 10 do Farley Mowat.
Algumas vezes, porém, o perigo se encontra em terra e não em mar, como bem sabe Gunter. Na campanha de 2005/2006, já ao lado da então namorada Roberta, ele seguiu com o Farley Mowat para a África do Sul após uma missão considerada bem-sucedida. “Chegando lá, as autoridades locais exigiram documentos que o navio simplesmente não poderia ter, porque não era um navio comercial”, conta Gunter. Resultado: aquela que, para ele, foi a experiência mais amedrontadora de seus tempos de Sea Shepherd.
“Por causa da pressão política do Japão junto à África do Sul, passamos 40 dias praticamente presos no porto da Cidade do Cabo. Era um ambiente hostil, cheio de navios pesqueiros e de frente para uma via conhecida como a avenida do estupro. Isso em um país recordista em casos de AIDS”, lembra. Como se não bastasse, o capitão Paul Watson já não estava junto à tripulação durante o incidente e, promovido ao posto de 1º oficial, Gunter ficou responsável por resolver todo aquele imbróglio. “Depois de insistir em dialogar com as autoridades sul-africanas, decidimos que fugir seria a única solução.” E, durante a madrugada do dia 16 de junho de 2006, a tripulação soltou as cordas que prendiam o Farley Mowat, ligou os motores e zarpou da Cidade do Cabo. Já era tarde quando os sul-africanos se deram conta do que havia acontecido, e a Sea Shepherd rumou para a longínqua Fremantle, na costa oeste da Austrália. Lá, foram recebidos como heróis e a fuga rendeu um processo por incompetência para o capitão Mowdak, da marinha da África do Sul.
Roberta vai para cozinha
Quando, literalmente, aceitou embarcar na aventura do namorado no final de 2005, Roberta passou por apuros maiores em seus primeiros dias. Além da também inexperiência em navegar, sofreu de terríveis enjoos e teve dificuldades em se comunicar, já que a língua de bordo é o inglês e ela só dominava o alemão. Roberta também foi trabalhar na cozinha e, se o tempo ajudou a aliviar os problemas, ela ainda não estava plenamente preparada para o que viria encarar no exato dia de Natal daquele ano: o primeiro confronto com um baleeiro.
“Em meio a neblina e enormes ondas, nos deparamos com o Nisshin Maru, o navio-fábrica da frota japonesa. Foi tudo muito rápido e o caos se instalou entre a tripulação menos preparada, que não sabia muito bem o que fazer para se proteger na hora em que fôssemos abalroar o navio. Meu medo era de que o Nisshin Maru partisse o Farley Mowat ao meio. Chegamos a colocar nossos trajes especiais para gelo. Felizmente, o Nisshin Maru acabou mudando o percurso na última hora e fugiu, o que consideramos uma vitória.”
Passada a tensão, Roberta foi ajudar a preparar a refeição de Natal. A necessidade em se adaptar às peculiares regras da cozinha da Sea Shepherd a ajudou a desenvolver dotes culinários. Durante as missões, absolutamente nenhuma carne ou derivado é servida dentro do navio. Aliada ao fato de que nem sempre a variedade de alimentos à disposição é grande, essa realidade obriga os cozinheiros a usarem a criatividade. Foi o que fez Roberta, e hoje ela e Gunter esperam abrir em breve um restaurante vegetariano em Berlim.
Roberta acredita que a forma de atuação da Sea Shepherd ajuda a trazer os problemas ambientais à tona, e chama mais a atenção que outras maneiras usuais de ativismo. E lembra que, embora a organização “faça justiça com as próprias mãos”, o faz “dentro de tratados que dão sustentação às suas reivindicações” e “nunca foi condenada na justiça por nenhuma das ações que praticou”. E vai mais longe: “Se tivéssemos mais organizações do tipo agindo, por exemplo, na Amazônia, quem sabe teríamos melhores resultados”.
Daniel começa na limpeza
Depois de conhecer a Sea Shepherd por meio do livro sobre organizações ambientais, Daniel Vairo decidiu ir até o navio da organização, aportado em Los Angeles. Foi recebido pelo próprio Paul Watson e começou a atuar como voluntário ajudando na limpeza do porão do navio. Continuou a se envolver com a organização até completar 18 anos e a realizar o que realmente queria – embarcar em uma missão.
A primeira delas foi curta, uma viagem à ilha de Catalina, na costa da Califórnia, para o monitoramente de danos à população local de golfinhos. O que Daniel considera o turning point de sua história viria em 1994, depois de terminar o colegial. “Foi totalmente surreal, como quase tudo que envolve a Sea Shepherd. Saímos da Noruega para uma missão de proteção às baleias e acabamos atacados”, conta.
O que aconteceu, segundo Daniel, foi que a marinha norueguesa se cansou de pedir que a Sea Shepherd se afastasse dos baleeiros e por fim utilizou explosivos para destruir o casco do navio da organização na época, o Whales Forever. O que poderia ter terminado em tragédia teve um desfecho um tanto cinematográfico – a Inglaterra recebeu o pedido de socorro da tripulação e enviou dois caças para escoltar o Whales Forever até o Reino Unido. Com jornalistas a bordo do navio, a história do ataque correu o mundo e a credibilidade da Sea Shepherd ganhou pontos preciosos.
Daniel conta que sempre aproveitou as vindas ao Brasil para divulgar a organização também por aqui, mas foi em 1999 que um sonho se materializou. “Depois de algumas tentativas frustradas, levei mais uma vez ao Paul Watson o meu projeto de abrir um escritório da Sea Shepherd no Brasil. Para a minha surpresa, ele disse ‘tudo bem’.” A partir dali, Daniel teria a responsabilidade de ser o fundador da Sea Shepherd Brasil, sediada em Porto Alegre, e dividir seu tempo entre a companhia de navegação para a qual trabalha e o posto de diretor geral da instituição.
A ironia é que Daniel precisa lidar com a contradição de trabalhar para uma empresa que transporta petróleo – atividade que sempre envolve um alto risco ao meio ambiente – e defender a fauna marinha com unhas e dentes. Ele atribui essa situação ao fato de não poder fazer da Sea Shepherd uma carreira, ou seja, trabalhar apenas para a entidade. Nela, todos são considerados voluntários e, mesmo quem ocupa cargos mais altos, recebe apenas uma ajuda de custo.
Ainda longe de contar com a estrutura da “sede” norte-americana, a Sea Shepherd Brasil desenvolveu, de acordo com Daniel, a primeira rede de pessoas capacitadas para recuperar animais marinhos atingidos por derramamentos de petróleo no País, além de ser a responsável também pela primeira ação civil pública contra a pesca ilegal.
Apesar da exposição cada vez maior na mídia e do apoio mundo afora, a Sea Shepherd ainda está bem atrás de outras organizações ambientais em assunto de dinheiro e donativos. A comparação com, por exemplo, o Greenpeace, dá a dimensão dessa distância – segundo Daniel, a Sea Shepherd arrecada em torno de 2 milhões de dólares anuais em todo o mundo, enquanto só a Greenpeace Brasil, de acordo com seu relatório de 2007, arrecadou naquele ano 12 milhões de reais ou cerca de 6 milhões de dólares. Essa transformação da organização em uma espécie de celebridade endinheirada, e o modo de atuação antagônico ao da Sea Shepherd, está no centro das divergências entre as duas entidades. Conforme relata Gunter, existe inclusive uma proibição, por parte da liderança do Greenpeace, de qualquer comunicação com a Sea Shepherd quando ambas se encontram em missões em alto-mar. Uma ironia quando se sabe que Paul Watson, com o seu colega Robert Hunter, é um dos fundadores também do Greenpeace.
Dimensionar os resultados conquistados pela Sea Shepherd é relativo, mas a organização considera que, por exemplo, foi a responsável pela grande queda no número de baleias caçadas no ano passado. De acordo com o divulgado pelo site da entidade, o Institute for Cetacean Research (Instituto de Pesquisas de Cetácios) revelou que nesse período apenas 679 baleias, da meta do baleeiros japoneses de 935, foram mortas. Essa queda teria sido causada, segundo a própria Agência de Pesca do Japão, pela atuação dos ativistas. E o fato dos números serem divulgados por uma instituição de pesquisa é parte da “maquiagem” japonesa para ocultar as reais intenções dos baleeiros – a pesca de baleia em si é proibida em todo o mundo desde 1980, mas uma brecha na lei, que permite o abate dos animais para pesquisa, é usada descaradamente. Tanto que, normalmente, os baleeiros trazem a inscrição “pesquisa” em seus cascos. Se existe a chance de um navio inocente ser atacado pela Sea Shepherd? “Com certeza não. Não existe pesquisa nenhuma e a própria Revista Science já disse que os japoneses nunca publicaram um artigo científico sequer sobre baleias”, diz Gunter.
Se os japoneses ainda tentam se valer de brechas legais para a matança, a Islândia e a Noruega sempre manifestaram reservas em relação à moratória de caça às baleias. São os únicos países do mundo a permitirem oficialmente a caça comercial aos animais, normalmente executados em suas águas costeiras.
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