Os prazeres e os perigos da carne

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Carne com garantia de origem, diz a faixa pendurada na fachada do pequeno açougue, em uma cidade do litoral fluminense. A mensagem serve para justificar aos clientes o preço superior ao da loja ao lado, que oferece os mesmos cortes até 50% mais baratos. O trunfo da concorrência não chega a ser tão secreto: o produto é adquirido de pecuaristas locais, que abatem o gado e vendem a carne sem qualquer fiscalização. Quem conta a história não é o dono do estabelecimento, mas um executivo de um grande frigorífico brasileiro, ao justificar a concentração das vendas nas grandes redes varejistas. “Não dá para cumprir todas as exigências e ter preço para competir com os matadouros clandestinos que dominam o mercado fora dos grandes centros”, afirma.

Dar tanta publicidade à qualidade do produto, ao menos no varejo de produtos padronizados, era uma estratégia restrita a postos de combustíveis – um segmento que teve a reputação abalada por uma onda de casos de adulteração e da fiscalização deficiente. Qualquer semelhança com o que acontece agora com o mercado de carnes não é mera coincidência. Imagens de bois abatidos a marretadas e cortados no chão sem as mínimas condições de higiene estão sob os holofotes da mídia em tempos recentes, mas estão longe de ser novidade para quem atua no setor.

“É natural que o público fique assustado com o noticiário, mas todos os veterinários sabem desse problema”, afirma a professora do Centro de Biotecnologia da Universidade Federal da Paraíba, Flávia Paulino. “Para o consumidor, é conveniente comprar carne mais barata, mas é importante também procurar produtos de boa qualidade.”

Formada em Medicina Veterinária e doutora em Higiene e Processamento de Produtos Animais, Flávia atuou como auditora de qualidade da área de carnes do Carrefour, quando visitava matadouros e frigoríficos em quase todas as regiões do País. “Nem todos recebiam a certificação para se tornarem fornecedores, mas a falta de conformidade ocorria, em geral, por conta de detalhes. O grau de exigência federal é bastante elevado, e a empresa tem regras até mais restritivas. Mesmo assim, é possível afirmar que o Brasil possui um parque industrial de excelência. Não nos tornamos os maiores exportadores mundiais de carne à toa.”

Contraste – Alguns matadouros operam sem mínimas condições de higiene. Outros, são referência internacional

A especialista aponta diferenças importantes, no entanto, nos níveis de fiscalização federal, estaduais e municipais. “Os fiscais do Ministério da Agricultura, embora sejam poucos, seguem normas rígidas e garantem a qualidade da carne que tem como destino outros Estados ou é exportada, e leva o selo do Serviço de Inspeção Federal (SIF)”, explica. Mas a produção destinada aos próprios Estados e municípios segue padrões variáveis e, segundo Flávia, muitas vezes recebem o carimbo da fiscalização sem que o veterinário responsável tenha inspecionado o estabelecimento e o gado abatido.

“Há um mito de que só a carne exportada é boa. Mas as grandes empresas que vendem para fora também atendem o mercado interno com o mesmo padrão de qualidade. Muitas vezes, o produto nem é mais caro do que a carne suspeita vendida em pequenos estabelecimentos”, diz a veterinária.

A opinião é compartilhada por um dos maiores especialistas em carnes do País, Belarmino Iglesias Filho, sócio da rede de restaurantes Rubaiyat, com casas no Brasil, na Argentina e na Espanha. “A carne brasileira é de excelente qualidade, e não deixa nada a desejar em relação aos melhores produtos do mundo”, afirma o empresário, cujo grupo produz parte da carne que revende nos restaurantes.

“Fomos os primeiros a trabalhar apenas com carne 100% rastreável, mas hoje não teríamos problema em adquirir produtos de outras empresas nacionais. O mercado de food service brasileiro é altamente especializado e bem atendido”, garante Iglesias. “O que não quer dizer que também não haja muita coisa ruim por aí, como em qualquer setor e em qualquer país.” No fim do ano passado, os europeus foram surpreendidos pela notícia de que produtos alimentícios processados, comercializados por grandes multinacionais, traziam um percentual de carne de cavalo na mistura.

O diretor da organização Amigos da Terra – Amazônia Brasileira, Roberto Smeraldi é menos otimista com relação à qualidade do produto oferecido ao consumidor final. A entidade estima que 30% da carne comercializada no País chega aos açougues sem passar por qualquer tipo de fiscalização. É o chamado mercado clandestino.

Segundo Smeraldi, o interesse da Amigos da Terra pelo setor de carnes foi despertado pelo fato de a pecuária ocupar 80% da área agrícola do País. “Apesar da importância do setor, vimos que nem o governo e nem as empresas estavam discutindo alguns problemas importantes ao longo da cadeia”, conta. Há cinco anos, a entidade começou a produzir relatórios, inicialmente abordando questões como a invasão de pastos em áreas de florestas e as emissões de gases causadores do efeito estufa no ciclo de produção. O objetivo era promover melhores práticas e estimular a adoção de certificações pelos produtores de gado.

“A partir de certo ponto, percebemos que era difícil avançar, porque as cadeias não estavam bem articuladas e o produtor não conseguia ser remunerado pelos investimentos em melhora da qualidade”, diz Smeraldi. Diferentemente de setores mais concentrados, como o bancário e o de telefonia, em que as maiores empresas dominam fatias majoritárias do mercado, os três principais frigoríficos do País são responsáveis por 30% do abate e apenas 24% das vendas domésticas de carne.

Portanto, embora representem grandes avanços, os acordos e políticas de compras dos grandes frigoríficos e supermercados não bastam para garantir a qualidade do que chega às mesas de boa parte dos consumidores. Em março, por exemplo, a Associação Brasileira de Supermercados (Abras) assinou um termo de compromisso com a Procuradoria da República contra a comercialização de carne produzida em áreas desmatadas da Amazônia ou de produtores que utilizaram práticas ilegais, como o trabalho escravo. O próximo passo, segundo o diretor da Amigos da Terra, é descobrir o tamanho do mercado irregular.

Em parceria com a Escola Superior de Agricultura Luiz Queiroz (ESALQ), a entidade está produzindo um amplo estudo sobre o chamado mercado clandestino de carne. Em 2011, as estatísticas oficiais somavam quase 30 milhões de bovinos abatidos, mas o número de peles comercializadas foi superior em 5 milhões de cabeças – essa diferença sugere que boa parte da carne foi vendida irregularmente.

A estimativa que mais preocupa Smeraldi, entretanto, é outra: “Acreditamos que 80% da carne que recebe carimbo dos órgãos de inspeção estaduais e municipais simplesmente não é fiscalizada.” O pior é que, na opinião dos especialistas, a deficiência na supervisão da atividade não está restrito a grotões ou regiões pobres. “Chegamos a imaginar que isso só acontecia na Amazônia, onde estamos mais presentes, mas trata-se de um problema difuso e sistêmico. O faz de conta é homogêneo no País”, conclui Smeraldi.

A Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo) emitiu uma nota em que reforça a preocupação com a má fiscalização, e estima que a clandestinidade – apelidada de “frigomato” pelo setor – não passa de 5% da produção total. “O problema está no abate não inspecionado, comumente chamado de clandestino oficial, sobre o qual a fiscalização municipal atua de forma tímida, desordenada e ineficiente. Ou mesmo quando existe em termos oficiais, mas na prática não funciona”, escreveu o presidente da Abrafrigo, Péricles Pessoa Salazar. “O combate à clandestinidade na produção de alimentos deve ter a mesma força de vontade e empenho que o poder público demonstra na luta contra as drogas e a criminalidade. São questões igualmente perversas e que demandam, de uma vez por todas, uma solução definitiva por parte de nossas autoridades públicas.

Uma das frentes de atuação da Amigos da Terra é o contato com as entidades de classe que representam os veterinários. “Vamos alertar os conselhos federal e regionais de Medicina Veterinária para a existência de profissionais que atestam a qualidade de matadouros, gado e carne sem sequer vê-los”, afirma. “Se os veterinários souberem que podem ter suas licenças ameaçadas se compactuarem com esse tipo de prática, é possível que tenhamos resultados rápidos.”

A veterinária Flávia Paulino, da UFPB, defende soluções mais abrangentes, como a unificação dos serviços de inspeção sob a esfera federal. “Mas não adianta ampliar a cobertura do SIF sem aumentar a estrutura de fiscalização e garantir os meios para que ela seja efetuada”, adverte. Entre as soluções de curto prazo, a especialista defende a realização de campanhas para conscientizar os consumidores da necessidade de conferir os selos de inspeção e cobrar dos açougueiros informações sobre a origem da carne que vendem. Outra medida possível, segundo Flávia, seria a exigência de que as peças sempre deixem o frigorífico embaladas, rotuladas e carimbadas, por menor que seja a indústria.

O mais importante, ressalta a veterinária, é garantir que o público tenha acesso a produtos saudáveis. “O consumo de carne de má qualidade traz riscos reais de zoonoses (doenças transmitidas por animais). Não é possível investigar todos os casos que chegam à rede pública, mas certamente muitos pacientes diagnosticados com tuberculose, brucelose, cisticercose, salmonelose, entre outras patologias, contraíram a doença na alimentação”, afirma.

Para Smeraldi, trata-se de uma questão de justiça social. “Não é aceitável que as vendas de carne cresçam tanto, graças à inclusão de novos consumidores no mercado, e eles fiquem expostos a uma situação de risco quando fazem suas compras”, diz. “Essa diferença de padrões entre a carne tipo exportação e a que ainda é comercializada por alguns açougues e mercados não deixa de ser reveladora de um preconceito que deve ser combatido.”


Comentários

4 respostas para “Os prazeres e os perigos da carne”

  1. Parabéns pela matéria, essa é a verdade que tem que chegar aos ouvidos do povo que prefere ser enganado do que realmente comprar algo de procedência. Mas como ninguém sem interessa em saber as origens reais de nossos produtos, a grande maioria acaba consumindo produtos de péssima qualidade e sem nenhum padrão de qualidade exigido pelos órgãos fiscalizadores.

  2. Avatar de Waldir Paiva
    Waldir Paiva

    Parabéns Flavia, pena que o Desgoverno do PT está no sentido inverso de sua proposta.

  3. Avatar de Eliane R.G. Lino
    Eliane R.G. Lino

    Parabéns pela matéria/artigo, Flávia. Você tocou num assunto de extrema relevância para todos nós consumidores de produtos de origem animal. Abriu nossos olhos para o perigo do consumo sem o devido cuidado ao comprar. Tudo isso demonstra a sua capacidade, competência e, por que não dizer, cuidado com a saúde do próximo.

  4. Avatar de Ivan Souza
    Ivan Souza

    O nosso maior problema,passa pela fiscalização.É onde denota-se que vivemos em uma sociedade corrupta,e de baixos valores morais.

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