Os senhores do ermo

Estamos na fronteira de Brasil e Uruguai, no último farol gaúcho e brasileiro – ou o primeiro? Do alto dos 30 metros da torre que ilumina a Barra do Chuí, é possível avistar Punta del Diablo, no lado uruguaio. O farol, com suas cores alva e encarnada e suas lentes de cristal que refletem a luz revelando um mar sem fim, revolto e traiçoeiro, guarda a história de uma dinastia de homens que presenciaram sua inauguração, em 1910, e dedicaram a vida a iluminar a noite dos navegantes.

Quem nos conta a história é Nelci Pereira de Lima, o Babi, 68 anos, 30 deles como faroleiro, 17 neste posto da Barra do Chuí – lugar onde nasceu, viveu a infância e a juventude. O avô de Babi, João Pedro Pereira, o “Joca Documento”, foi o primeiro faroleiro do Chuí. Depois, passou o posto ao filho mais velho, Pedro Dolomé, que, alguns anos depois, passou-o para o irmão mais novo, Antonio Trinta, que o transferiu para o cunhado. Ainda trabalharam no farol oito netos de Joca, entre eles os irmãos Babi e Nelson e um bisneto, Sanger, que dá continuidade à saga familiar.
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Os seguidores de Joca na família foram tantos que uma frase permanece viva até hoje na região, lembra Babi: “Sempre haverá um faroleiro do Rio Grande do Sul parente de Joca Documento”.

João Pedro Pereira era filho de um imigrante português, que chegou ao Brasil por Laguna (SC), em 1845, e arriscou-se mais ao sul atrás de melhores oportunidades. Casou-se com a filha de uma escrava alforriada e estabeleceu-se como comerciante em Rio Grande, onde nasceu e cresceu João Pedro, o Joca. Foi no comércio do pai, por volta de 1875, ouvindo a conversa de viajantes, que soube que no extremo sul do estado existiam terras inabitadas e sem dono. “Ele ouviu aquilo e tocou para o Chuí com a mulher, Petrona Clavijo, que estava grávida”, conta Babi.

Poucos se propunham a desbravar as terras para lá de Rio Grande e atravessar o imenso banhado, hoje Reserva do Taim, em carroças puxadas por junta de bois. A estrada que liga Rio Grande ao Chuí, a BR-471, uma reta de 270 quilômetros, só foi construída na década de 1950. Na época, a travessia podia durar semanas.

Joca apossou-se de uma área de 32 quilômetros quadrados, na região de Santa Vitória do Palmar, então distrito de Chuí. Ali teve 30 filhos, de dois casamentos. Dos 14 filhos com Petrona, 12 eram mulheres. O cenário desértico do extremo sul do estado começou a modificar-se.

“Meu avô era da alta sociedade de Santa Vitória do Palmar. Um homem elegante, respeitado e ben-quisto. Depois da morte de Petrona, conheceu sua segunda esposa, Laura Geraldino, minha avó. Filha de um médico francês que desembarcara em Montevidéu, no Uruguai, fugindo da Segunda Guerra, e se instalou em Santa Vitória do Palmar”, diz Babi. Com ela, Joca teve mais 16 filhos.

Foi nessa época que passou a ser conhecido por Joca Documento. “É que meu avô fazia muito negócio. Dava e vendia terreno, mas não assinava nenhum papel. Era tudo no fio do bigode”, explica o neto.

Na primeira década do século passado, a Marinha do Brasil divulgou a proposta de construir um farol no Chuí. O número de embarcações que navegavam por ali, com destino aos portos de Rio Grande, Montevidéu e Buenos Aires, era crescente. Um farol instalado a 100 metros da praia guiaria os navegantes pelas águas agitadas, de forte correnteza, evitando naufrágios.

Joca Documento doou o terreno sem assinar qualquer papel, como era seu costume. Construído pelo engenheiro Alfredo Schulze, sob o comando do capitão-de-corveta Francisco de Souza, o farol da Barra do Chuí foi inaugurado em 24 de abril de 1910. Era uma torre de ferro, vinda da França, cuja chama era alimentada com querosene, um trabalho praticamente todo manual. E o avô de Babi foi praticamente intimado a ser o primeiro faroleiro da Barra do Chuí.

“Para ser faroleiro, ainda mais naqueles anos e naquela região, era preciso que a pessoa fosse do local. Como meu avô era dono daquelas terras e doou a área, a Marinha achou por bem que ele deveria ser o primeiro faroleiro. E ele aceitou”, lembra. Começava ali a saga dos Pereiras nos faróis no Rio Grande do Sul, onde o próprio Joca reinou até 1931, ano de sua morte.

Além de gerar faroleiros, a família também foi atraindo outros e uma nova fase teve início a partir do casamento de Inês, filha de Joca, com o também faroleiro Luis Marques de Lima. O casal teve dois filhos: Nelci (o Babi) e Nelson Pereira de Lima. E o clã sofreu uma ligeiraadaptação no sobrenome, passando a se chamar Pereira de Lima.

Como todos da família de Joca Documento, Babi e Nelson foram criados ao redor de um farol. O rumo deles não é difícil adivinhar: “Veja só. Minha mãe era filha de faroleiro e meu pai era faroleiro. Não tinha como eu ser outra coisa. Não fosse eu pertencer a uma família de faroleiros, conhecida pela Marinha, não teria o que dar de comer para minha família”, destaca Babi.

Atualmente ele reside com a segunda esposa, Vilma Acosta de Lima, 68 anos, numa casa simples, num bairro residencial do município de Chuí. Babi teve dois filhos do primeiro casamento – a menina já faleceu e o filho não seguiu a carreira do pai.

A vida num farol era bastante difícil, precária e solitária. Sua primeira lembrança da infância são as noites. Escuridão total. Não havia rede elétrica e o farol era o único guia. “Para ir até a venda à noite era um sacrifício. Eu esperava a luz do farol passar e via se tinha alguma coisa na frente. Aí dava 20 passos, mais ou menos 20 metros. Depois esperava a luz passar de novo para andar mais 20 metros. Não tinha outro jeito”, conta.

Trabalhando como faroleiro, Babi tinha que subir a torre da Barra do Chuí carregando dez litros de querosene para colocá-lo em funcionamento. “Grande parte do trabalho era manual. As noites com tempestades eram as mais difíceis e assustadoras, pois os ventos, de tão fortes, faziam a torre balançar. Tínhamos que ficar lá no topo da torre para evitar que a luz apagasse”, explica, citando uma máxima transmitida de geração em geração na família Pereira Lima: “O faroleiro não pode deixar a luz do farol apagar; ela tem de estar acesa”, decreta o herdeiro de Joca Documento.

O primeiro farol onde Babi trabalhou foi o da Solidão. O nome já diz tudo: uma longa faixa de areia entre a Lagoa dos Patos e o mar, vazia de gente e a quilômetros de qualquer núcleo urbano. Ele conta que outros passaram por lá, mas não suportaram. “Tem que ter sangue de faroleiro; se não, não agüenta”, sentencia Babi. Esse foi um dos pré-requisitos para a Marinha tê-lo escolhido para assumir aquela primeira missão. A ausência de amigos e vizinhos, além da vida precária, só não o levou a deixar o trabalho por causa dos filhos. “Olhava para eles, pequenos, e me perguntava que futuro iria dar para eles sem o salário de faroleiro”, diz Babi, que cita as recomendações do comandante da Marinha ao entregar-lhe o posto: “Cuide-se, não se machuque. Lá, a gente não tem como te salvar”.

Mas o tempo nos faróis também reservou boas histórias. Uma delas, que desperta a cobiça de muita gente até hoje, é a de um tesouro escondido a 30 quilômetros após a Barra do Chuí. Segundo Babi, durante a Segunda Guerra Mundial, um navio alemão carregado de jóias e ouro teria enfrentado as águas revoltas de Punta del Diablo, quando rumava para Montevidéu. “Tinha que saber navegar por ali. Muitos que se arriscaram sem conhecer aquele mar se deram mal”, explica. O navio acabou naufragando com o tesouro. “Está lá até hoje, submerso, enterrado na areia, mas ninguém conseguiu encontrar as jóias e o ouro.”

Depois de passar pelos faróis da Solidão, Mostardas, Albardão e Chuí, seu último trabalho foi no farol de Cidreira. Aos poucos a profissão foi se tornando menos trabalhosa. A chegada da energia elétrica e da fotocélula reduziu ainda mais o trabalho. Babi também escapou da militarização da profissão de faroleiro e, quando se aposentou, em 2001, era tido como o último faroleiro civil em atividade no Rio Grande do Sul.

Babi lembra dos tempos de solidão, da antiga condição de senhor do ermo, cercado pelo mar e pela areia, ouvindo somente o ruído das ondas e do vento. No entanto, agora ele quer usufruir do sentimento de liberdade que nutriu a vida toda. “Quero aproveitar o que resta de minha vida na cidade. Quero viajar e dançar”, anuncia.

O irmão de Babi, Nelson, queria ser faroleiro até os 70 anos, mas não chegou lá. Morreu em 1996, aos 62 anos, em seu posto no farol de Mostardas. Sua esposa seguiu-o um ano depois, ironicamente, devido à solidão.

UMA HISTÓRIA DE QUATRO SÈCULOS
No Brasil, a sinalização náutica teve início em 1602, em Salvador (BA). A fortaleza de Santo Antônio, construída no alto do Morro do Padrão, na entrada da Baía de Todos os Santos, mantinha acesa uma lanterna rudimentar no alto de um mastro. No início do século 18, ali foi construído um farol – o primeiro do País.
O Rio Grande do Sul, com um litoral de poucas referências naturais aos navegantes, ganhou seu primeiro farol em 1842 – uma torre de ferro de 33 metros, construída na barra do porto de Rio Grande.
Hoje existem 178 faróis no Brasil, cinco particulares e os outros da Marinha. Apenas 35 são guarnecidos, ou seja, possuem um faroleiro.
Para saber mais
A História da Sinalização Náutica Brasileira, capitão Ney Dantas da Marinha do Brasil (Rio de Janeiro: Femar, 2000).
Faróis da Solidão,
de Dinorah Araújo, Armindo
Trevisan e Arnaldo Campos
(Porto Alegre: Riocell, 1988).

Nova geração
Sanger Nelson de Lima é um faroleiro de estirpe – filho, sobrinho, neto e bisneto de faroleiro. O mais velho dos oito filhos de Nelson e a esposa, Terezinha, foi apresentado ao farol da Barra de Rio Grande com apenas um ano de vida. Depois morou nos de Albardão, Capão da Canoa, Chuí e Mostardas. “Meus amigos de infância eram meus irmãos. Não havia vizinhos”, comenta.

A paixão de Sanger pelos faróis vem de berço, é claro. Seu pai dedicou 30 anos à atividade. “O amor de meu pai pelo trabalho e a história da minha família me fizeram também adorar a profissão”, confessa.

E agora ele dá continuidade à tradição. Para poder entrar oficialmente na profissão, em 1980 ingressou na Marinha, pensando em cursar Telegrafia para atuar num farol. “Fiz isso porque todo farol precisa ter um telegrafista e ainda não havia o cargo de faroleiro na Marinha”, explica. No entanto, na Escola de Aprendizes Marinheiros, um teste de aptidões o indicou para cursar Eletricidade. Mas seu destino estava traçado: faltando três dias para o início do curso, a Marinha solicitou voluntários para formar a primeira turma de faroleiros militares. “Quando fiquei sabendo, fui imediatamente até o comando da Marinha e contei a história de meu pai e da minha família. Foi emocionante porque o comandante entendeu e no outro dia eu já estava ingressando no curso de faroleiro”, recorda.

Sanger é o único da família na função. Já atuou nos faróis da Ilha da Paz, em São Francisco do Sul (SC), e no Farol de Mostardas (RS), onde seu pai foi faroleiro por 18 anos. Casado, duas filhas, Sanger mora em Rio Grande. Atualmente, é segundo-sargento faroleiro, o primeiro do clã a subir num farol como militar. “Mas continuo na profissão que passou de geração em geração na minha família. Fico feliz por isso”, comenta.


Comentários

Uma resposta para “Os senhores do ermo”

  1. Avatar de Elo Pereira
    Elo Pereira

    Muito interessante a reportagem, ainda mais que estão falando da minha família, pois o Joca Documento era meu avô. O Baby é meu primo filho da minha querida tia Inês, irmã do meu pai, Antonio Pereira o “Trinta”, tendo este apelido por ser o filho mais novo do Joca! Parabéns ao Sanger e ao Baby pelo belo depoimento. Mas, quero também deixar registrado que meu pai foi faroleiro por mais de 30 anos!!

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