Fernando* viveu muito do que acontece no Porto de Santos. Estivador desde a primeira metade da década de 1970, já podia ter se aposentado por tempo de serviço. “Ele dizia que não queria parar de trabalhar na estiva. Preferia continuar trabalhando a ficar em casa sem ter o que fazer”, explica Francisco*, seu irmão de criação.
No último dia 13 de julho, um domingo, Fernando entrou para o trabalho no turno da madrugada no terminal da Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa) – empresa do grupo Usiminas -, onde carregam os navios com produtos siderúrgicos, como chapas de aço. Na estiva, o trabalho é dividido por turmas, que se revezam pelos terminais público e privativo e carregam produtos a granel, cargas soltas, sacarias e contêineres. O número de trabalhadores por turno varia conforme a carga a ser transportada. Para ser contratado, não basta o trabalhador ser daquela turma, ele precisa ser sorteado para o serviço. Por isso, eles se deslocam três vezes ao dia para três pontos determinados pelo Órgão Gestor de Mão-de-Obra (OGMO) para “bater parede” (acompanhar o sorteio).
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Os estivadores não gostam de trabalhar na Cosipa, nem brigariam para continuar, não fosse a falta de serviço nos demais terminais. Por enquanto, metade das embarcações usa mão-de-obra dos estivadores – que não são contratados – e a outra metade é feita com funcionários próprios. O salário diário lá chega a ser menos da metade do que é pago nos outros terminais (entre R$ 9 e R$ 17, conforme a carga, enquanto no resto do porto o valor é em média R$ 35), com uma taxa por produtividade que também é menos da metade da paga na maioria dos outros trabalhos. Na manhã de segunda-feira, quando já esperavam o retorno de Fernando, seus familiares receberam a visita de diretores do Sindicato dos Estivadores. Ele havia sofrido um acidente no porão de um navio e estava morto. No ano passado, seis estivadores morreram no porto, que registrou também mutilados, aposentados por invalidez e outros acidentes com conseqüências menos graves. O trabalhador havia completado 57 anos no dia 3 daquele mês. “Os sindicalistas nos explicaram que uma chapa o prensou”, conta Francisco, que também foi estivador.
Solidariedade
Hoje aposentado, Francisco voltou a ser pescador. Ele joga as redes ao mar no próprio estuário do porto, no final das tardes. “Depende muito do dia. Quando a maré está alta, chego a pegar até 30 quilos de peixe, mas também tem dia que não vem nada”, afirma. Ele conheceu Fernando quando ambos começaram a trabalhar na estiva e logo o convidou a morar com sua família em Vicente de Carvalho, bairro do Guarujá. A partir de então, passaram a se considerar irmãos de criação. Na época, o outro morava precariamente em um quarto próximo ao Mercado Municipal de Santos. Fernando casou e foi pai seis vezes, mas passou a viver sempre próximo à sua “família”. Ele e a mulher tiveram problemas com drogas e acabaram contaminados pelo vírus da aids. Tatiana*, que nasceu nessa fase, tem uma deficiência nos pés, um aneurisma cerebral e também é soropositiva. “Até os dois anos e meio, essa filha do meu irmão foi criada por uma outra família. Mas houve uma chacina na casa e só ela foi poupada. Desde então, eu a crio”, diz o pescador, abraçado à menina.
Drogas e aids são dois grandes inimigos da vida no entorno do Porto de Santos. No começo dos anos 1990, Santos chegou a ser a cidade com o maior número de casos de aids por habitantes no País. Em 1996, por exemplo, eram 110,37 casos por cem mil habitantes. Isso fez com que a administração municipal – especialmente nas gestões da prefeita Telma de Souza e de seu sucessor, David Capistrano, ambos do PT – adotasse uma estratégia agressiva de combate à aids, que incluía a primeira política de redução de danos do País (distribuição de seringas para usuários de drogas injetáveis), tema considerado polêmico até hoje. A redução da epidemia foi muito expressiva, e no ano passado eram 18,4 casos por cem mil habitantes.
Para Xannis (pronuncia-se Ianes), de 53 anos, o título pejorativo de “capital brasileira da aids” atingiu em cheio a reputação dos bares e boates da zona (nos dois sentidos) portuária. “Eu comecei com a casa aqui em 1988, já peguei a fase de decadência da região. Houve ano que vi fecharem 60 bares e boates aqui nas imediações”, afirma o dono do Zorba’s Bar of Santos. Pessimista quanto ao futuro dos bares da região, ele lembra que hoje a prostituição é muito mais espalhada por qualquer cidade do que era há alguns anos. Nascido em São Paulo, filho de gregos, Xannis morou na Grécia entre 1963 e 1980, de onde trouxe um sotaque característico, reforçado pela visita de navios gregos ao cais, e uma certa vocação para o estilo filósofo. “A imprensa tratou a região aqui por muito tempo como se a aids tivesse sido criada aqui na zona de Santos. Não quero que publiquem a verdade ou mentiras, quero que vejam e digam a realidade. Como se diz na Grécia, a realidade é a linha de ouro entre a verdade e a mentira”, explica, com seus cabelos e barba longos e grisalhos.
Segundo ele, os cinco bares que sobrevivem na Rua João Otávio, no Paquetá, faturam com a venda de bebidas. “As mulheres aqui são livres. Isso aqui é um estilo de vida. Costumo dizer que contrato mão-de-obra para servir bebidas aqui no bar, ‘pernas-de-obra’ é por conta do cliente, que negocia com a dona das pernas”, afirma.
Clientela multirracial
Daiane está com 27 anos e trabalha no Zorba’s. Ela diz que veio de Londrina, no Paraná, há seis anos. Conta que lá era casada e trabalhava como professora de Língua Portuguesa. “Vim para Santos a passeio e acabei ficando”, diz a morena, que se esquiva ao convite para ser fotografada, com medo de ser identificada em sua cidade. Entre um chamego e outro, ela pede que lhe paguem um drinque. A cena é comum: os homens bebem cervejas e as mulheres, drinques, pagos por eles. “A gente vai inventando outras bebidas, porque enjoa. Tinha uma época que eu misturava suco de caju em todos os coquetéis que preparava para mim”, diz. Na noite da Rua João Otávio, o português e o real não são idioma e moeda oficiais. O inglês, os dólares e euros são muito presentes, mas, melhor ou pior, todo mundo se comunica.
Suzana, uma morena de 33 anos, com olhos amendoados, lembra do primeiro programa que fez quando chegou no ABC, único bar fechado da rua. “Foi com um russo, precisei da ajuda de uma garçonete para acertar o preço”, conta.
Ela diz que aprendeu inglês e um pouco de grego, italiano e alemão por causa dos marinheiros. “Cheguei a fazer aula de inglês com uma professora, mas queria que ela me ensinasse apenas a falar algumas frases prontas”, afirma.
Mãe de uma menina de 14 anos e de um menino de 12, ela diz que começou a se prostituir na Grande São Paulo, depois de se separar pela segunda vez. “Comecei como dançarina em uma boate e depois comecei a fazer programas. Um dia, vim para o litoral e resolvi conhecer a zona. Como era bem mais rentável, fiquei”, explica. Suzana tem os seus caprichos. Evita sair com brasileiros e filipinos, os dois grupos mais pobres do porto, e prefere os gregos. “Eles são os mais fiéis. Antes de vir, já telefonam avisando as garotas de sua preferência”, conta. Ela garante ter em torno de dez desses clientes preferenciais, alguns até mesmo dispostos a mandar dinheiro em caso de necessidade.
O alemão Gerhard, de 74 anos, diz que a presença em excesso de asiáticos entre os embarcados é um problema para o comércio. A afirmação é desprovida de qualquer preconceito racial. “Antes, a maioria dos tripulantes de um navio era da nacionalidade de sua bandeira. Os marinheiros europeus ganhavam muito melhor e tinham condições de gastar mais em suas paradas. Hoje, as companhias de navegação européias procuram mão-de-obra mais barata”, explica o dono do American Star Bar. Gerhard foi embarcado durante dez anos e em 1961 decidiu deixar o emprego e morar em Santos. “Decidi parar de gastar dinheiro nos bares e começar a ganhar dinheiro com um”, fala ele sobre a compra do bar, que já existia desde os anos 1930. O lugar é todo decorado com bóias e bandeiras que outros embarcados deixam de lembrança.
Alguns dos clientes europeus bem que tentam compensar as perdas de movimento, como um marinheiro que carregava no bolso da camisa todas as informações sobre si e sobre o navio em que trabalhava, caso tivesse algum problema para voltar. Pela forma que ele saiu do bar, o cuidado tinha razão de ser. Gerhard também reclama da mudança do bairro, antes freqüentado por malandros, hoje por vagabundos. A diferença entre os dois grupos afastou da zona portuária, no começo da década de 1980, um de seus maiores símbolos, o tatuador dinamarquês Tatoo Lucky. Tatoo deixou a cidade depois que seu estúdio foi assaltado por vagabundos. Os malandros respeitavam o tatuador, que era conhecido internacionalmente e que morreu poucos anos depois. A tecnologia, para Gerhard, também teve a sua parte de responsabilidade na decadência dos bares do bairro. “Antes, um navio ficava quatro ou cinco dias aqui no porto para desembarcar uma carga e carregar outra, agora há casos em que tudo é feito no mesmo dia”, destaca.
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Segunda Guerra Mundial
A região tem ainda o Bar Santa Magdalena, com estilo anos 1950 e um balcão que ocupa praticamente todo seu salão, e o Cine Fugitive, que apresenta filmes pornôs e shows de strip-tease. Mas seu personagem mais curioso é o dono do ABC, o português Custódio. Ele garante ter 93 anos, embora um cálculo com base nas datas que ele cita indique que a sua verdadeira idade é 88 anos. Avesso a fotografias, ele trabalha diariamente na boate. Chega pela manhã e sai por volta das 20h30, quando os sobrinhos que se tornaram sócios passam a cuidar do movimento. Ele conta que veio ao Brasil a convite e com a passagem paga por um tio, em 1933, quando tinha 13 anos. Começou a trabalhar no País como negociante de café, até que em 1937 comprou, com mais dois sócios, a boate. “Cheguei até a ter problemas com o Juizado de Menores, porque ainda tinha 17 anos e diziam que eu não podia trabalhar, ainda mais em um bar noturno”, recorda-se. Nos anos 1970, a casa foi despejada da Rua Xavier da Silveira e passou para a Rua João Otávio, por conta da expansão da área do porto. Apesar de a ABC sobreviver há mais de 70 anos na zona portuária, Custódio garante que nunca a região foi tão movimentada quanto na virada dos anos 1930 para os 1940. “O auge mesmo foi durante a Segunda Guerra Mundial, quando navios militares americanos passavam meses ancorados aqui”, garante.
Não foram apenas os donos de bares e boates da região que sentiram um esvaziamento de seus negócios com o aumento da tecnologia no porto e nas embarcações. Luiz Carlos, dono da casa de importados F. Vallejo, na Rua General Câmara, afirma que a falta de movimento na região também atrapalhou seus negócios. O comerciante, de 64 anos, toca, desde os anos 1970, a loja que foi inaugurada pelo seu avô em 1912. O endereço mudou uma única vez, sem sair da mesma rua, em 1929. O galpão, o balcão e as estantes onde ficam os produtos não sofreram grandes alterações desde então. “Se meu avô entrasse hoje aqui, pensaria que estamos falidos, a começar porque não estocamos mais produtos aqui dentro”, compara. Ele lembra que, quando assumiu a loja, existiam cinco boates que funcionavam o dia inteiro naquele mesmo quarteirão. “Com isso, a rua estava sempre movimentada. Sem falar que os tripulantes costumavam comprar bebidas aqui, pois os preços eram muito melhores do que na Europa, por conta da nossa moeda na época ser fraca”, diz. Ele conta que durante os anos 1980, os embarcados de Angola (país africano de língua portuguesa que vivia uma guerra civil) costumavam comprar em Santos até material de construção, que depois vendiam em seus povoados. Até o início dos anos 1990, a F. Vallejo era responsável pela distribuição no Brasil de diversas marcas; hoje apenas vende produtos importados por outras empresas. “Tivemos um problema com uma importação mal feita, que acabou provocando a suspensão da nossa licença. Mas, como o setor estava mudando, muitos grandes grupos passaram a distribuir suas marcas dentro do País, acabamos não retomando o negócio. A inflação também atrapalhava demais”, diz.
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O sonho da sindicalização
Se os comerciantes já colocam a tecnologia como grande inimiga, pior ainda ficou a situação dos trabalhadores braçais. Nas décadas de 1950 e 1960, sindicalistas estimam que o porto tinha em torno de dez mil estivadores. No final da década de 1970, o número havia caído para apenas quatro mil, sendo que em torno de 1.500 conseguiam trabalho por dia. Hoje, são 2.820 estivadores sindicalizados. Há ainda dois mil cadastrados, conhecidos tradicionalmente como “bagres”, que trabalham eventualmente, em serviços para os quais falta mão-de-obra. O sonho dos sindicalistas é conseguir reduzir o número de sindicalizados para dois mil e, para isso, espera que a categoria volte a ter aposentadoria especial, retirada durante o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Antes, um estivador precisava acumular 25 anos de serviço e não os 35 anos das demais profissões.
Os próximos sindicalizados serão escolhidos a partir da lista dos cadastrados, entre os que tiverem mais horas trabalhadas dentro do porto. Recentemente, houve até um concurso público para o cadastramento de “bagres”. Em outros tempos, o filho de um estivador tinha o direito hereditário à sindicalização.
O estivador Nivaldo, 57 anos, aposentou-se recentemente, é solteiro e não tem filhos. “Podia ter me aposentado antes, por invalidez, mas não quis. Esperei para entrar no tempo de serviço”, explica. Ele é filho de estivador e tem um tio que também trabalhava no porto. “Só tenho um irmão que não se empregou no cais, fizemos de tudo para ele entrar também, mas não teve jeito. Nem falamos mais. Imagina, o cara foi ser pintor de paredes. Se eu preciso pintar a minha casa, eu mesmo faço”, fala, enquanto toma a sua pinga com coca-cola.
Nivaldo, que ganha R$ 1.700,00 de aposentadoria, é do tempo dos valentões. Mesmo na sala de televisão do hotel em que mora, com uma toalha nos ombros, carrega a faca dobrável na bermuda. Mas apenas a saca para contar histórias de quando desafiava outros homens para a briga. “Dava para tirar um bom dinheiro na estiva, mas bom mesmo era quando tinha um resgate de contêiner. Eram 50 ou 100 mangos na mão no ato”, narra. Um contêiner precisa ser resgatado quando sofre uma avaria ou cai torto no porão durante a viagem. Para não atrasar o serviço, o dono da carga ou o operador paga a um estivador para prender o contêiner, para que esse possa ser retirado. Sempre em situações de risco. “Já fiz resgate até em porão cheio de água. Tinha de mergulhar para prender as castanhas (que prendem o contêiner para a empilhadeira tirar), compreendeste?”
O tratorista Benedito, 49 anos, mantém o orgulho de ser estivador. “Mesmo com pouca instrução, ganho em torno de R$ 2 mil por mês, mais do que recebe um professor de escola pública, por exemplo. Mas as pessoas pensam que isso aqui é moleza, o que não é verdade. Acordo às 5 horas da manhã e ouço no rádio (existem rádios com programas específicos para os profissionais do porto) se há serviço. Se tiver, pego a balsa no Guarujá e venho para cá”, explica. O estivador tratorista trabalha dentro do porão do navio, empilhando a carga a granel para que seja retirada pela máquina. “Quando descarrego um navio com trigo, fico orgulhoso ao ir à padaria. Mas é difícil de trabalhar, porque colocam raticida no meio e a gente acaba aspirando o veneno lá dentro”, conta. Enquanto os estivadores trabalham a bordo, os portuários fazem trabalho equivalente em solo. Só que os portuários se dividem em oito categorias profissionais específicas, enquanto os estivadores são multifuncionais. Até o começo dos anos 1990, os portuários eram funcionários da Companhia Docas. Durante o governo do presidente Fernando Collor de Mello, houve uma alteração na legislação para que eles passassem a ser avulsos, como os estivadores. Além de perder a estabilidade, a mudança significou a perda de outros direitos dos portuários, como plano de saúde. A condição, no entanto, ainda é melhor do que de outros operários fora do porto. Jorge Carlos, 50 anos, diz que o sonho do filho, Jorge Júnior, 21 anos, é ter uma carteira de portuário. “Estudei até a sexta série e ganho em torno de R$ 2 mil por mês. Ele terminou o ensino médio e recebe R$ 600 como conferente de carga na ferrovia que serve no porto”, compara.
Caminhoneiros
Enquanto os navios ficam cada vez menos tempo no cais e o número de tripulantes, estivadores e portuários cai, os caminhões tomam conta da cena, ao lado dos terminais de contêineres. O caminhoneiro Célio, 49 anos, vem de Espírito Santo do Pinhal, na Mogiana (interior paulista), e transporta geralmente café ou frango. “Dependendo do terminal, a gente chega a ficar até três dias aqui esperando”, afirma. Os caminhoneiros autônomos fizeram uma manifestação para que os terminais de contêineres passassem a funcionar 24 horas. As empresas reclamam que não têm condições de fazer “o investimento necessário”. Além de dormir dentro do caminhão, Célio fica sempre do lado do veículo, fazendo sua guarda, como boa parte dos colegas. “Se bobear aqui, a gente é assaltado, pois falta segurança. Sem falar que não tem a mínima condição de permanência, o caminhoneiro acaba mijando e cagando na rua mesmo, por falta de um banheiro para usar”, diz.
Cátia, 28 anos, é uma das garotas de programa que atendem os caminhoneiros. Ela diz ter quatro filhos, de quando era casada. “Em casa, eu só ganhava safanões e pilhas de roupa e louça para lavar. Aqui, além de ganhar dinheiro, sou tratada com carinho e recebo até presentes”, garante. O sexo é feito muitas vezes dentro do caminhão, por R$ 30. Não é só no preço que os universos de tripulantes e caminhoneiros não se misturam. O segundo grupo acaba se relacionando mais com as prostitutas do centro. A maioria das profissionais do sexo dessa região espera seus clientes na porta de hotéis de alta rotatividade. As garotas trabalham na Rua João Pessoa e em suas travessas. Na Rua Amador Bueno, sua primeira paralela, ficam as travestis. As mulheres se revezam durante praticamente o dia todo, enquanto suas concorrentes só atendem durante a noite. A tabela de preços é parecida.
A mineira Luciana, 24 anos, uma morena miúda, diz que trabalha na área faz três meses. Escolheu a rua porque não tinha contato algum quando chegou e, por isso, não tinha como trabalhar em boates da boca. Juliana, 23 anos, loira de seios fartos, veio do Paraná e diz que trabalha lá faz menos de um mês. Coordenadora do Conselho Tutelar da Zona Central de Santos, Tânia Mara, 50 anos, se impressiona com o poder de atração que o Porto de Santos exerce em pessoas de outras partes do País. “É o pedaço da cidade em que os problemas são mais crônicos. As mulheres têm, em média, cinco filhos, geralmente de pais diferentes. As condições de moradia são bastante precárias, em cortiços e porões em que um quarto chega a custar R$ 200”, explica. A conselheira conta que costuma atender mães que vão lá entregar os filhos, pois lhes falta condição de criá-los. “Um dos casos que mais me marcou foi o de uma mãe que ia se prostituir e começou a levar a filha, de apenas nove anos. Recebemos a denúncia e fomos conversar. A menina chorava porque não queria ser separada da mãe”, diz. Os atos infracionais mais comuns na zona central são os pequenos furtos e o começo do trabalho para o tráfico de drogas. “A polícia também monitora a prostituição infantil, porque temos percebido que, em muitos casos, as vítimas vêm de outras cidades. Desconfiamos que existem pessoas que as trazem para cá”, afirma Tânia Mara.
Não é preciso andar muito para encontrar adolescentes que se prostituem nas calçadas. A travesti negra com um aplique de tranças e pequenos seios se apresenta como Adrielly e diz ter 19 anos. Fala que chegou faz uma semana, vinda de Perus, bairro de São Paulo, e que mora com o namorado em um hotel. No dia seguinte, a encontramos no referido hotel, com outras três travestis, em um quarto. Adrielly admitiu que mentira. “Sou de São Vicente, trabalho aqui faz três meses e tenho 16 anos”, revela. Afirma que a mãe é faxineira e que tem outros quatro irmãos mais novos. O pai morreu. “Eu já me prostituía na orla de São Vicente, mas a minha amiga Vanessa* me chamou para vir para cá”, fala. Segundo ela, Vanessa, uma travesti bem branca que fazia escova nos cabelos escuros, também tem 16 anos. A outra nega. “Tenho 19 anos, quem sabe a minha idade sou eu”, protesta. Ela diz ter saído de Guarulhos, onde mora sua família.
Drogas
A conversa com a maioria das prostitutas é difícil. Elas sempre tentam transformar o homem com quem conversam em cliente. Esgotados os métodos de sedução, uma garota conhecida como Branca resolve apelar para outros métodos. “Estou com uma dívida onde eu moro e não comi nada hoje. Vamos fazer um programinha gostoso, vai”, pede. Ela é uma das que mesmo grávidas não param de trabalhar. Muitos desses casos acabam em problemas mais graves, segundo conta Suelen. A jovem trabalha há seis anos com o pai, a mãe e o padrasto no hotel que pertence à família. Ela tornou-se amiga de hóspedes do hotel, principalmente das prostitutas. “Primeiro foi a ‘poeira’ (cocaína, pó), hoje o maior drama é a ‘pedra’ (crack). Já vi muitas garotas de programa que eram bastante requeridas por aqui se destruírem por causa do vício. E elas não vão sozinhas, geralmente levam os homens junto”, afirma. O consumo de drogas há muito ultrapassou o “jereré” (cigarro de maconha), que é muito comum entre os homens do porto depois de um dia de trabalho duro. As histórias que envolvem o consumo da “poeira”, roubos e sexo sem camisinha são narradas pelas garotas das boates. “Muitas meninas não pensam que o homem que nunca as viu e pede sexo sem camisinha já deve ter feito igual em outros portos”, diz uma delas. Na rua, a “poeira” dá lugar à “pedra”, que muitas vezes se torna protagonista, até mesmo o único motivo do encontro.
O tráfico é presente não só nas bocas, é tema das conversas de bares. Os nomes dos presos por tráfico e de policiais que investigam o crime são citados com uma naturalidade que faz parecer a escalação de dois times adversários de futebol. Uma mulher, com o celular nas mãos, aguarda o telefonema do marido, que está preso. Ela conta que ele cumpre pena pela segunda vez e desabafa: “Cada dia que passa, aparecem menos oportunidades, e ele está mais dentro do crime”. Com o porto cada vez mais rentável, precisando de menos mão-de-obra, e o entorno empobrecido, a sua preocupação com o marido mais parece um alerta sobre a possibilidade de futuro de muitos na região.
Obs.: (*)Os nomes citados são fictícios
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