Oversoverbivocovisual

Foto: Luiza Sigulem
Foto: Luiza Sigulem
Ideia, sonoridade e imagem estão em quase todos os poemas que Augusto de Campos criou ao longo de sua carreira. Um ótimo exemplo dessa poética dos sentidos pode ser visto na exposição Augusto de Campos – Objetos e Poesia Visual, na Galeria Paralelo, em São Paulo, onde algumas de suas obras ocupam paredes inteiras ou “explodem” em placas de vidro, como na foto ao lado. O projeto verbivocovisual, materializado na poesia concreta, foi criado por ele, o irmão Haroldo e Décio Pignatari no final dos anos 1950, com inspiração nas leituras de Joyce, Pound, Cummings e Mallarmé. A academia tradicional teve dificuldade de engolir aquele novo status da palavra, que escapava da própria página, misturando-se às artes plásticas e à música (o que gerou diálogos transversais com o trabalho de artistas como Caetano Veloso, Rogério Duprat, Waldemar Cordeiro e Julio Plaza (para citar apenas alguns).

Logo a poesia concreta conquistou a admiração de críticos de literatura e arte, e foi estudada e exibida ao longo dos anos em museus e galerias do mundo todo (incluindo os megatemplos Tate Gallery e MoMA), nos mais diversos formatos: painéis eletrônicos, holografias, projeções a laser, animações digitais e eventos multidisciplinares. Recentemente, o Centro de Estudos Latino-Americanos, em Cambridge (Inglaterra), montou uma mostra para comemorar os 50 anos da primeira exposição internacional de poesia concreta, que aconteceu em dezembro de 1964, também em Cambridge, com participação dos irmãos Campos e Pignatari (que formavam o grupo Noigandres), José Lino Grünewald e Ronaldo Azeredo. Do ano passado para cá, também foram realizadas exposições de poemas visuais de Augusto em Buenos Aires, Zurique (com curadoria de Hans Ulrich Obrist) e no Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, em Juiz de Fora. Para o ano que vem, o SESC estuda montar uma grande mostra comemorativa dos 85 anos do poeta.

Ao mesmo tempo, a Ateliê Editorial reeditou o livro já mítico Viva Vaia, que reúne sua poesia realizada entre 1949 e 1979 e traz um CD com poemas musicados por seu filho, Cid Campos (o trabalho posterior pode ser encontrado principalmente nos livros Despoesia, de 1994; Não, de 2003; e Profilogramas, de 2011 – todos da Perspectiva). Augusto agora prepara uma coletânea de seus poemas produzidos entre 2003 e 2014. Além disso, sua obra pioneira de crítica e tradução (ou intradução, transcriação, incursão-homenagem, tradução-arte), que iluminou textos de Sousândrade, Rimbaud, Valéry, Byron, Rilke, Blake, Emily Dickinson, e mesmo de trovadores provençais, como Arnaut Daniel, entre outros, continua surgindo – o mais recente foi Jaguadarte, recriação do poema de Lewis Carroll, lançado pela Nhambiquara.

Mas é ele quem fala melhor sobre tudo isso na conversa a seguir.

Brasileiros – Em primeiro lugar, queria que o senhor falasse um pouco dessa nova exposição na Galeria Paralelo e do projeto de retrospectiva do Sesc.
Augusto de Campos – São cinco obras: os poemas visuais “pulsar” (1975), “coraçãocabeça”, “afasia” e “inestante” (anos 1980) – que foram agora confeccionadas em maiores proporções e em chapas de alumínio, juntamente com um objeto-poema –, e a versão especial do meu “poema bomba” (1984), feita em oito placas de vidro, a partir de obra construída para a elaboração de um holograma. Na verdade, foi em dezembro de 1956, na 1a Exposição Nacional de Arte Concreta, ocorrida no Museu de Arte Moderna de São Paulo, que tive pela primeira vez meus poemas apresentados na companhia de obras de artistas plásticos, prática até então inédita no Brasil e rara no resto do mundo. A partir daí, foram inúmeras as exposições de que participei, especialmente internacionais. Entre as mais recentes, as da Biennale de Lyon, em 2011, e da sua extensão, no ano seguinte, na Fundación Proa, em Buenos Aires, e ainda a individual Despoesia, na Document Art Gallery, nesta mesma cidade, em fins do ano passado. Quanto à retrospectiva, é algo que ainda está em estudos e de que não posso por ora dar uma ideia precisa.

Essas exposições e a nova edição do Viva Vaia trazem a ideia de uma “re-visão” de sua obra. Olhando para trás, o que vê?
Não posso falar propriamente de “re-visão“ porque a essa altura a poesia concreta, que lançamos, com muita rejeição crítica, nos anos 1950, é hoje muito conhecida e estudada e está definitivamente incluída nas discussões das poéticas do nosso tempo, por mais que ainda continue a despertar hostilidade em alguns meios acadêmicos e nas áreas mais superficiais do jornalismo cultural. A nova edição do Viva Vaia (1949-79) é, de fato, a 5a do livro. Antes de acolhida pela Ateliê, em 2001, a antologia dos meus poemas teve duas edições, a primeira em 1979, pela Editora Duas Cidades e a 2a pela Brasiliense, em 1986. A mesma Ateliê assumiu também as novas edições da Teoria da Poesia Concreta, que divido com Haroldo de Campos e Décio Pignatari e que publicáramos como edição de autor em 1965, assim como assumiu também a edição completa das obras de Pignatari. É muito tempo para olhar para trás, mas me ocorre dizer que até a primeira edição de Viva Vaia, em 1979, todos os meus poemas estavam publicados em edições de autor. E eu tinha já 48 anos.

Como definiria o papel da poesia concreta na linha evolutiva da literatura e artes visuais?
O tema é longo e complexo. Eu diria apenas que começamos inteiramente desacreditados pela crítica, pelos cenáculos universitários e acadêmicos, e que a própria evolução tecnológica demonstrou que não estávamos errados ao propormos uma nova reflexão sobre as poéticas contemporâneas, assim como ao adotarmos novas linguagens e estruturas, acenando com uma forma interdisciplinar, “verbivocovisual”, que desse conta das virtualidades materiais da palavra poética no contexto da modernidade contemporânea.

     

Lembra do momento em que percebeu que seria poeta e não advogado? Como se deu a descoberta?
Aos 17 anos já tive publicado o meu primeiro poema em um jornal pelo escritor Mário da Silva Brito, amigo e estudioso de Oswald de Andrade. Eu achava muito cedo que a minha sina era a poesia. Entrei na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, principalmente para conversar com o Décio e o Haroldo, que já eram alunos. A profissão de advogado, que exerci, como procurador, por concurso público, foi o meio decente que encontrei para sustentar a mim e a minha família, já que era impossível subsistir como poeta.

Certa vez o senhor se definiu como mais fanopaico (visual) e melopaico (musical) entre os três da revista Noigandres, que formavam a linha de frente da poesia concreta. Pode falar mais a respeito?
A música sempre esteve no meu horizonte artístico. Antes mesmo da Exposição de Arte Concreta de 1956, eu já tinha alguns poemas em cores da série Poetamenos, apresentados pelo grupo musical Ars Nova, dirigido pelo maestro Diogo Pacheco, ao lado de composições de Machaut e Webern, no Teatro de Arena, em 1955. Nossos manifestos falavam em poesia “verbivocovisual”, o que implicava também acentuar a materialidade vocal dos poemas concretos, como ocorre desde logo num poema como “tensão”, exibido na mostra do MAM, o qual tematiza a visualidade dos monossílabos distribuídos geometricamente pela página, assim como a própria sonoridade dos vocábulos. Nos anos 1960, os signatários do manifesto Música Nova, Júlio Medaglia, Rogério Duprat, Gilberto Mendes, Willy Corrêa de Oliveira, deram tratamento sonoro e criaram composições para os nossos poemas. Mais adiante, já nos anos 1970, o contato com os tropicalistas retomou o proposto intercâmbio da poesia com a música, com a gravação por Caetano dos poemas “dias dias dias” e “pulsar”. Desde então muita música intercorreu com a musicalidade da poesia concreta. Mas eu só pude sistematizar as “oralizações” da minha poesia com a colaboração do músico Cid Campos, com o qual publiquei no começo dos anos 1990, o CD Poesia é Risco, que hoje circula em nova edição pelo selo SESC, e a realização de muitos outros projetos de diálogo criativo que vim a chamar “poemúsica”. Preocupa-me, nos últimos tempos, mais do que tudo com relação à música, o gap cultural ocorrente no Brasil em relação à “música contemporânea” (erudita). Cem anos de desinformação, que denunciei no meu livro Música de Invenção (Perspectiva, 1998).

Geraldo de Barros foi uma figura essencial no diálogo entre a poesia concreta e as artes plásticas. Como se deu esse encontro?
Sim, Geraldo foi muito importante, como o foram os artistas do grupo paulista, Cordeiro, Sacilotto, Maurício, Fejer, Charoux e outros com os quais tive intenso convívio, a partir de 1952, quando conheci os integrantes do grupo Ruptura. A eles dediquei um conjunto de poemas-perfis, reunidos em Profilogramas, livro publicado pela Editora Perspectiva quando fiz 80 anos. Com o polêmico Waldemar Cordeiro, expus, na Galeria Atrium, em dezembro de 1964, os “popcretos”, que criticavam o golpe militar e provocaram o público, a ponto de serem danificados por um espectador enfurecido. Quando fomos retirar as obras, no encerramento, estavam todas danificadas com palavrões e insultos. Mais adiante, com Julio Plaza, criei poemas-objeto, os Poemóbiles, a Caixa Preta, Reduchamp e muitos outros trabalhos na área tecnológica, como os hologramas, de parceria com Moysés Baumstein, e os “clip-poemas” digitais que venho elaborando nos últimos anos.

Como funcionava a parceria com seu irmão Haroldo e Décio Pignatari?
Conheci o Décio assistindo a uma mesa-redonda que se realizava no Instituto dos Arquitetos, em 1948. Um amigo meu queria publicar uma revista de poesia. Eu tinha visto no Estadão um poema do Décio que muito me impressionara, “O Lobisomem”. Ele estava na mesma reunião, e eu o convidei para colaborar na publicação, que saiu no início do ano seguinte e se chamou Revista de Novíssimos. Soube então que o Décio estava na Faculdade de Direito, onde já se encontrava o Haroldo e para a qual eu estava fazendo o vestibular. Isso se deu em 1949. No ano seguinte, saíram os livros O Auto do Possesso, do Haroldo, e O Carrossel, do Décio, editados pelo Clube de Poesia. Em 1951, já desligados da instituição, que era dominada pelos poetas da Geração de 45, saiu, às nossas custas, o meu O Rei Menos o Reino, por uma editora fictícia que chamei de Maldoror… Ao longo daqueles anos, passamos a nos encontrar todos os fins de semana, e a pensar poesia em conjunto, num amigável brain storming. As nossas afinidades e dificuldades nos levaram à ideia de passar a publicar coletivamente e daí nasceu a revista-livro Noigandres – a enigmática palavra, extraída de uma canção do trovador provençal Arnaut Daniel, protótipo do poeta-inventor, segundo Ezra Pound, assinalava a nossa vontade de criar uma poesia nova, com a invenção por lema. Éramos, os três, ao mesmo tempo muito próximos e muito diferentes, mas chegáramos a uma base comum, um “paideuma”, ou elenco básico, assentado radicalmente numa seleção dos poeta-inventores: Mallarmé-Joyce-Pound-Cummings, Oswald-João Cabral. Trabalhávamos autonomamente, como poetas, mas reuníamos nossos trabalhos em projetos específicos em que todos estávamos interessados. Por fim, lançamos a poesia concreta em 1956 e assinamos juntos, em 1958, o programático Plano Piloto para Poesia Concreta, que registra o momento em que mais afinamos nossas ideias. Com o passar do tempo, tomamos caminhos mais diversificados, mas permanecemos solidários e amigos até o fim, o que é uma raridade entre nós.

Muitos dos novos poetas são claramente influenciados pela poesia concreta. O senhor acompanha as novas produções?
Na minha idade, não dá para acompanhar tudo o que se passa. Mas valorizo muito e acho que ainda não foi entendido o que fizeram, a partir dos anos 1970 as novas gerações de poesia experimental que produziram as revistas Código, Artéria, e outras, assim como a poesia praticada fora dos âmbitos tradicionais por Lenora de Barros, Walter Silveira, Tadeu Jungle, Omar Khouri, Arnaldo Antunes e André Vallias. Uma poesia que foi objeto de um apanhado histórico pouco difundido no livro Revistas na Era Pós-Verso (Ateliê Editorial), de Omar Khouri. Nada a ver com “poesia marginal”. Poesia “à margem da margem”. Que sai do livro para a poesia-vídeo, a poesia-grafite, a poesia-arte, a poesia-animação, sem desprezar o livro. Do que se passa lá fora, tenho acompanhado com curiosidade e ceticismo as últimas provocações da poesia conceitual, a metapoesia “unoriginal” ou “uncreative”, última “craze” americana, que ainda prefiro, porém, nas pré-versões sintéticas do Quixote, de Borges (referência ao conto “Pierre Menard, Autor de Quixote”, do livro Ficções), e da Fonte, de Duchamp.

Como vê o futuro da poesia na era da internet?
É impossível prever os caminhos que tomará a poesia. Nas palavras de Maia­­kóvski, a poesia será sempre “uma viagem ao desconhecido”. Por isso mesmo não ouso fazer profecias. Mas acho cada vez mais difícil para os poetas ignorarem os novos instrumentos que lhes fornece a tecnologia digital para a elaboração dos seus textos. A essa altura, não dá mais para fazer poesia como se fazia outrora, nem restringi-la ao livro, embora este continue a ter enorme importância. É preciso explorar novas formas de produção poética, em consonância com as novas mídias comunicativas, de forma a assimilar a informação não verbal ou icônica à linguagem verbal.

Acredita que a poesia tenha um papel na sociedade?
A poesia não tem nenhum papel prático definido na sociedade. Se algum sentido tem é o de preservá-la no que tem de mais essencial ou menos contingente. Homero, Arnaut Daniel, Dante, Shakespeare, Mallarmé, Pessoa, etc. Aí estão capsulados na linguagem, no que têm de melhor, países, civilizações, a humanidade. Volto a citar Maiakóvski, nos versos do seu bilhete de suicida: “Parecem fumaça, pétalas pisadas sob o calcanhar da dança, mas o homem com alma, lábios, carcaça…”

No ano passado a Folha de S.Paulo utilizou, sem autorização sua, o poema Viva Vaia fora de contexto. Fato ao qual o senhor respondeu com firmeza em carta, que terminava com um “Viva Dilma! Vaia aos Vips!”. Como vê a situação política hoje e as manifestações contrárias ao governo?
Sou contra a histeria anti-Dilma e contra os impeachmaníacos. Certamente o PT cometeu muitos erros. Mas os partidos da oposição não são nem um pouco os “puros” que apregoam. Há muito cinismo e hipocrisia de parte dos derrotados. As livre manifestações populares são bem-vindas. Mas é preciso saber reivindicar, direcionar os protestos contra quem e o que merece e respeitar o resultado das urnas. Ditadura nunca mais. Marchas da Família, etc., nunca mais. Já vimos esse filme. Golpe nunca mais.

Tem produzido? Poemas ou traduções?
Depois de 12 anos de silêncio, entreguei à Editora Perspectiva um livro de poemas – minha produção de 2003 a 2014 – e um segundo volume de Música de Invenção, e à Companhia das Letras uma coletânea bastante aumentada do livro de ensaios Poesia Antipoesia Antropofagia, há muito esgotado. São os meus projetos mais imediatos.

Ao lado de Haroldo, José Lino Grünewald, Boris Schnaiderman e José Paulo Paes, o senhor inovou também na tradução, fugindo do modelo literal. Hoje, aparentemente, isso virou regra. Como vê essa evolução no campo da tradução?
Sim, conseguimos fazer entender a diferença entre tradução criativa e tradução literal. Houve evolução. Mas acho que ainda falta muito para termos muitas traduções de grande qualidade. O maior problema é o da poesia. Para produzir traduções não literais, praticar o que Haroldo gostava de chamar de “transcriação” e eu de “tradução-arte”, é preciso ter técnica apurada. Reclamam muito da declaração dos nossos manifestos sobre “o fim do ciclo histórico do verso”, mas poucos hoje sabem versificar. E quando vão traduzir um poeta do passado, abusam do pé quebrado, das inversões e das rimas chãs. Problema ainda maior: não basta saber metrificar, amassar tudo numa moldura métrica e jogar rimas no final da linha. É preciso, antes de tudo, ser poeta. E a qualidade do poeta é essencial. Tradução é interpretação. É performance. Não é a mesma coisa ouvir Summertime, cantada por Billie Holiday, Barbara Hendricks ou Janis Joplin, a vocalista cover que aparece no seriado da TV ou o especialista que sabe tudo sobre Gershwin. O bom tradutor de poesia tem de ser semi-heterônimo.

Viva Vaia – Poesia 1949-1979  Augusto de Campos  Ateliê Editorial, 264 páginas
Viva Vaia – Poesia 1949-1979
Augusto de Campos
Ateliê Editorial, 264 páginas

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Viva, Augusto de Campos

Expsosição
Augusto de Campos – Objetos e Poesia Visual

Paralelo Galeria. Rua Artur de Azevedo, 986 – São Paulo. Até 30/5


Comentários

2 respostas para “Oversoverbivocovisual”

  1. Curiosa e feliz com mais um bis!!!

  2. Avatar de Charles Anjo
    Charles Anjo

    VIVA!

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