Oxum na Achiropita

Vivi durante 12 anos no bairro do Bexiga, em São Paulo, e decidi revisitá-lo para mostrar as celebrações de religiosidade afro-brasileiras, realizadas no Candomblé de Pai Francisco de Oxum e na Igreja Nossa Senhora Achiropita, com seus batizados, casamentos e missas de São Benedito, da Mãe Negra e de Zumbi dos Palmares. Este meu trabalho começou a ser desenvolvido durante o projeto “Povos de São Paulo – Uma Centena de Olhares sobre a Cidade Antropofágica”, de 2004/2005, do qual participei no grupo “Cultos, Crenças e Misticismos”, coordenado pelo fotógrafo Egberto Nogueira, da Ímã Foto Galeria.

Ao longo dos últimos anos, continuei fotografando essas celebrações e o resultado pôde ser visto na minha exposição individual “Olha que Eu Vim Lá de Longe”, exibida na Pinacoteca do Estado de São Paulo entre novembro de 2005 e março de 2006, com curadoria de Diógenes Moura.
[nggallery id=15553]

O Bexiga é um bairro sui generis da capital paulista, marcado pelo encontro cultural de negros e italianos. E, mais recentemente, dos nordestinos. Essas populações só fizeram enriquecer o panorama cultural da cidade. Ícone da presença italiana em São Paulo – os imigrantes começaram a chegar no século XIX -, o bairro também abrigou o quilombo do Saracura. Os negros antecederam os italianos na região, porém sua história é menos conhecida, ainda que o bairro seja o berço da escola de samba Vai-Vai. A convivência entre essas culturas e etnias distintas se reproduz na Paróquia Nossa Senhora Achiropita, construída na tradição calabresa e onde são celebrados missas, batizados e casamentos afros.

A presença de elementos da cultura afro-brasileira nas celebrações católicas na Achiropita foi idealizada pelo sacerdote Antônio Aparecido da Silva, o Padre Toninho, segundo padre negro na paróquia do Bexiga. Ao assumir a função de pároco, ele julgou que o momento era oportuno para organizar um grupo pastoral na
comunidade voltado para o resgate e a preservação das raízes culturais afro-brasileiras. No ano de 1988, quando foi comemorado o centenário da abolição da escravatura no Brasil, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) escolheu o negro como tema da campanha da fraternidade.

A primeira missa afro-brasileira na Achiropita foi celebrada no fundo da igreja, meio às escondidas, com a desaprovação de muitos, até mesmo da comunidade negra. A novidade mostrou-se, a princípio, assustadora. Os mais conservadores chegaram a fazer um abaixo-assinado pedindo a transferência do Padre Toninho. O então arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, porém, apoiou o padre. Com isso, a maioria da população católica do Bexiga acabou aprovando a iniciativa. Em 1998, D. Paulo celebrou sua última missa como arcebispo de São Paulo na Achiropita. Era a missa da Mãe Negra.

A Pastoral Afro busca recuperar as raízes do povo afro-brasileiro, valorizar sua cultura e resgatar sua dignidade. Procura também estimular a comunhão cultural, combatendo o racismo contra qualquer povo ou etnia. Padre Renato Scano, um dos párocos habituais nas celebrações afros, um legítimo representante dessa mistura étnica existente no Bexiga – é filho de pai italiano e mãe negra e tem sua história ligada ao bairro -, foi coroinha na paróquia em 1938.

Durante a história do negro no Brasil, a religião constituiu-se o traço mais forte de preservação dos seus valores. Assim, ao se organizarem, os integrantes da Pastoral foram buscar no candomblé, na umbanda e no catolicismo popular os elementos culturais para suas cerimônias. Essas celebrações diferem das católicas tradicionais pela liturgia, que envolve canto e dança ao som dos atabaques e outros elementos da cultura negra, tais como a indumentária, a decoração, o ofertório à base de comida, os recipientes de barro, a água-de-cheiro, a reverência à memória dos ancestrais e as congadas.

Algumas de suas características mais marcantes são a descontração e a energia – o negro manifesta a sua fé com festa e uma alegria contagiante. “O negro reza dançando e dança rezando, porque não celebra somente com a cabeça, mas com todo o corpo. Quando os atabaques tocam, o corpo mexe e quer louvar a Deus”, disse Padre Toninho em uma palestra na Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP), em São Paulo, citada no livro Axé, Madona Achiropita – Presença da cultura afro-brasileira nas celebrações da igreja Nossa Senhora Achiropita (Edições Pulsar/SP/2001), da jornalista e socióloga Rosângela Borges.

No livro, Padre Toninho afirmou que “a estrutura da Pastoral e a de um candomblé é muito semelhante. Há uma convivência, uma coisa comunitária, bem própria do candomblé. A maneira de estar e de ser das pessoas, o vínculo que se estabelece, essa coisa de família são muito íntimas no candomblé. E depois, quando termina a missa, sempre tem alguma coisa para comer. Essa sociabilidade tem tudo a ver com o que ocorre num terreiro, ou melhor, numa roça de candomblé”. A feijoada servida no salão da igreja após a missa da Mãe Negra já virou tradição no bairro.

O diálogo ecumênico e inter-religioso, especialmente com as religiões de origem africanas, é um aspecto importante numa celebração afro, com a presença no altar de pais-de-santo e, eventualmente, sacerdotes de outras religiões. Na Achiropita, os ideais de luta e preservação da identidade cultural estão acima de qualquer divergência religiosa. O baiano Pai Francisco de Oxum, ele mesmo um freqüentador das missas na Achiropita, tem seu terreiro no Bexiga há quase 20 anos.

ENTREVISTA COM PADRE TONINHO DA PASTORAL AFRO
Brasileiros – Como surgiu a Pastoral Afro dentro da Igreja Católica?
Padre Toninho– A organização da Pastoral Afro na Igreja Católica no Brasil remonta ao final dos anos 1970. Na verdade, ela deu seqüência a diversas pastorais que já existiam, como, por exemplo, Pastoral da Terra, do Migrante, da Criança e várias outras. A Pastoral Afro surgiu como conseqüência de um novo despertar da consciência negra no Brasil de modo geral e de maneira particular na Igreja Católica.

Brasileiros – Como surgiram as missas inculturadas na Igreja Católica?
P.T.- O Concílio Vaticano II, realizado pela Igreja Católica nos anos 1960, promoveu grande abertura da Igreja face ao mundo moderno. Entre essas aberturas tem sido marcante o encontro com as culturas dos povos. A Igreja percebeu a necessidade de pensar a fé não como elemento estranho à realidade humana, mas a partir do gênio próprio de cada cultura. Nesse sentido, as missas inculturadas e, especialmente, a missa afro, são expressões legítimas de elementos das culturas africanas na celebração da Eucaristia.

Brasileiros – Neste ano a Pastoral Afro Achiropita, pioneira em São Paulo, está completando 20 anos. Ainda encontra resistência dentro da cúpula da Igreja e dentro da comunidade?
P.T.– Ao longo dessas duas décadas de reflexão e vivência sobre os imprescindíveis valores culturais, tanto a Igreja quanto as comunidades paroquiais cresceram na compreensão de uma fé inculturada. Portanto, as atitudes de resistência diminuíram e deram espaço a uma saudável integração.

Brasileiros – A freqüência mútua dos espaços sagrados entre catolicismo e religiões afro-brasileiras contrapõe-se à intolerância e ao esforço de marketing religioso crescente. É possível que a religião possa unir as pessoas?
P.T.– As religiões não têm outra verdadeira finalidade que não seja unir as pessoas. A confissão de credos diferentes não pode jamais servir de pretexto para a desunião. Afinal, o Deus cultuado em todas elas é sempre o Deus do amor e da concórdia.

Brasileiros – Qual é o papel da religião na luta social e política do povo negro?
P.T.– A religião é importante para a humanidade como um todo e, sem dúvida, muito particularmente significativo para a população de origem africana. A maneira de pensar e de agir da população afro-descendente é marcadamente religiosa. Toda ação social e política tem a ver com a dimensão religiosa do terreiro de candomblé, das missas católicas. As práticas sociais e políticas do povo afro-descendente são acompanhadas pela fé.

Brasileiros – Que políticas o senhor defende para lutar contra a desigualdade?
P.T.– É preciso acelerar os processos para a superação de toda forma de desigualdade. No caso da população afro-descendente é necessário incrementar as políticas de ações afirmativas. Embora sejam um instrumento precário, as bolsas no âmbito do mundo do trabalho e da educação são mediações necessárias para se avançar em busca da superação das gritantes desigualdades.


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.