O inconformado
José Padilha é um cineasta in – inquieto e inconformado com a realidade que o cerca, a ansiedade à flor da pele. Está sempre a mil por hora, como se estivesse o tempo todo dirigindo um filme sem começo nem fim, com um roteiro imaginário na cabeça, em busca de um final feliz que nunca chega. Tem sede e fome de justiça, não se conforma em ver nada errado.
“Como é que pode este poeirão todo aqui dentro? Vamos lá para o outro lado”, já chega ele reclamando, inconformado com a sujeira das obras que nunca acabam no Galeão, ao nos encontrarmos na sala de embarque para pegar o voo 1980 da Gol rumo a Fortaleza. Estamos no final de maio, poucos dias antes da estreia de Garapa.
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Em companhia da mulher, a arquiteta Jô, 40 anos, e do filho, Guilherme, de 5 anos, camuflado em seu chapéu de safári, o passageiro José Bastos Padilha Neto, carioca e flamenguista de 41 anos, parecia apenas um turista feliz. Padilha tinha gostado da minha sugestão de pauta ao nos encontrarmos, em abril, na saída do cinema após a primeira pré-estreia do filme em São Paulo. Difícil só foi abrir um espaço na agenda para voltar ao sertão da fome. Padilha vive atolado em trabalhos e viagens.
Quatro anos depois das filmagens, ele vai voltar agora, pela primeira vez, para Choró, antigo distrito emancipado de Quixadá, no sertão cearense, cidade de 12 mil habitantes a 200 quilômetros de Fortaleza, locação escolhida para rodar o documentário sobre brasileiros que ainda vivem com fome em pleno século XXI. Antes de sair de casa, ligaram-lhe de lá para informar que estava chovendo muito na região, deixando as estradas esburacadas. “Vai ser uma barra chegar até as famílias que vivem no meio do mato”, vaticinou, com conhecimento de causa. Naquelas sofridas terras nordestinas, quando não é a seca, é o dilúvio que desafia a sobrevivência do sertanejo.
Combinamos fazer a entrevista durante o voo para eu não ficar enchendo o saco dele durante o reencontro com os protagonistas de Garapa. Armado de dois gravadores para me garantir, o que não adiantou muita coisa, como veremos mais adiante, não precisava me preocupar, pois teríamos três horas de viagem pela frente. Enquanto aguardava o melhor momento de abordar o premiado diretor de Tropa de Elite, foi ele quem veio falar comigo no fundão do Boeing meio vazio, assim que as luzes de apertar os cintos se apagaram. “Vamos trabalhar?”, intimou-me, e mais do que depressa liguei os gravadores para fazer a primeira pergunta. Sem prática no assunto, coloquei os dois aparelhos – o meu, de fita cassete, e o digital, emprestado pela minha mulher – sobre a mesinha do banco em frente à poltrona do meio, entre nós dois, enquanto fazia minhas anotações no caderno para não perder o hábito dos repórteres de muito antigamente.
Durante uma hora e meia, Padilha me falou sem parar da sua vida desde menino, da família, dos filmes, dos planos, da saga que foi rodar este documentário no sertão e do que vai fazer com todo o dinheiro que Garapa porventura auferir. Seus olhos brilham e seus braços se agitam quando fala dos seus muitos projetos e sonhos, sem nem esperar que eu termine de fazer as perguntas. Tem pressa em tudo o que fala e faz.
Na volta, em pleno domingo de curtir a família, descobri que o barulho dos motores do avião quase não permitiu que minha colega Sheila Ueda pudesse fazer a desgravação das fitas. Em qualquer outra situação, seria uma tragédia para o repórter, mas expliquei logo o problema para Padilha, e lhe repassei a lista de perguntas por e-mail. Com toda a paciência do mundo, no dia seguinte ele me respondeu tudo de novo, desta vez por escrito, salvando meu emprego. Com minhas anotações, mais o que Sheila conseguiu tirar da gravação e as respostas que Padilha me enviou, deu para salvar a lavoura.
Nas páginas seguintes, Brasileiros publica esta entrevista exclusiva de José Bastos Padilha Neto e a reportagem que Manoel Marques e eu fizemos acompanhando a viagem da família do diretor de Garapa de volta a Choró – uma viagem aos fundões do Brasil, onde tudo parece ter mudado e, no entanto, dá a impressão de que nada saiu do lugar, desde a minha primeira incursão no sertão nordestino, faz mais de 40 anos. Boa viagem, caros leitores.
Brasileiros – Quatro anos depois, você volta ao local das filmagens, agora com a mulher e o filho. O que mudou neste meio tempo?
José Padilha – A realidade básica, subjacente à fome das famílias que vivem numa situação de insegurança alimentar grave, não mudou muito nos últimos tempos. É certo que o Bolsa Família, que agora está atendendo as três famílias que documentamos, melhorou a situação delas. Mas, no caso de quem convive com a insegurança alimentar, só o Bolsa Família não basta. É necessário maior apoio, envolvendo a educação e o planejamento familiar. Duas das famílias que filmei já têm mais filhos. O Alexandre Lima, meu assistente de direção, esteve lá estes dias para mostrar o filme às famílias antes de ir para os cinemas.
Brasileiros – Por que você resolveu levar a família desta vez?
J.P. – Minha mulher, a Jô, é de classe média, não conhece esta realidade. E o Guilherme, que estuda na Escola Parque, no Jardim Botânico, já viajou para Nova York e Buenos Aires, mas não conhece ainda o Brasil. Ele resolveu até fazer um diário de viagem, o “Livro do seu Vaca”, não sei de onde ele tirou este nome. Mas é legal ele escrever, escrever leva à reflexão… Vai ser bom para eles também.
Brasileiros – O que você espera de Garapa, além de uma boa bilheteria, é claro? Aquela maioria que faz três refeições por dia poderá se interessar mais pelo destino dos 930 milhões que passam fome hoje no mundo, segundo a ONU?
J. P. – Espero, principalmente, que Garapa mostre para quem for ver o filme o que significa conviver com a insegurança alimentar grave. E que faça isto de uma forma pessoal e não meramente calcada em informações e dados estatísticos. É claro que as informações e os dados estatísticos são fundamentais, mas não creio que sejam suficientes. É preciso que as pessoas que têm recursos entendam o drama da miséria extrema vista de perto. Acho que o debate já está acontecendo muito antes da estreia. O Ali Kamel (diretor do Jornal Nacional) escreveu um artigo criticando o filme no jornal O Globo e eu respondi com outro publicado pela Folha de S. Paulo. É um debate que aqui no Brasil tem muito a ver com a discussão sobre o Bolsa Família, as políticas públicas. A análise que se faz do Bolsa Família como sendo um mero instrumento de combate à fome é redução do poder que ele tem, é algo muito menor do que ele é. Eu já não compro esta redução.
Brasileiros – Segundo o IBGE, são 11 milhões de famílias que vivem em condições de insegurança alimentar grave no Brasil, quer dizer, que vivem com fome. Mas como ficam aqueles outros milhões que nem têm documentos e, portanto, estão fora das estatísticas, pessoas que não existem oficialmente? Quantos são?
J. P. – Fiz essa pergunta ao IBGE e eles não souberam me responder, falaram que não têm esse número. Acho que deveria haver um esforço do governo federal, quase como se fosse uma força tarefa, para fazer este levantamento e providenciar documentos para todos. Porque estes não têm acesso a nenhum programa social, são os miseráveis dos miseráveis, os excluídos dos excluídos.
Brasileiros – Qual tem sido a reação da crítica e do público nas pré-estreias do filme em Berlim, Nova York, São Paulo e Rio de Janeiro? É o que você já esperava? O que mais te chamou a atenção nas reações das pessoas nessas plateias?
J. P. – A reação é a esperada. Em geral, há um silêncio que demonstra que as plateias, apesar de conscientes da realidade da fome, não a haviam presenciado de perto. Depois, as perguntas que me fazem tendem a ser muito interessantes e mostram que, quando a insegurança alimentar é conhecida de perto, há motivação para acabar com ela. As reações da crítica em geral, principalmente na Alemanha e nos Estados Unidos, foram muito boas, embora alguns críticos se incomodem com o preto e branco. Parte das plateias lá fora ficou em estado de choque, escutei choros.
Umas dez mil pessoas já viram o filme antes da estreia no circuito normal. Na última pré-estreia em São Paulo, teve uma coisa inusitada. Eu estava com alguns amigos meus, atores, conversando do lado de fora do cinema da Folha de S. Paulo, quando passou por mim um senhor bastante transtornado. Já estava começando a subir pela escada rolante quando olhou para trás e se deu conta de que tinha passado por mim. Não resistiu, voltou, e me deu um pito deste tipo: “Eu não sou obrigado a ver este filme! Ainda bem que eu não tive que pagar ingresso. Quem é obrigado a ver este filme são os governantes, eu não tenho nada a ver com isso”. Aí ele foi embora…
Mas em geral as pessoas não saem do cinema. Em Berlim, tinha pessoas sentadas no chão, em Nova York a mesma coisa.
Brasileiros – Quem é este diretor José Padilha, segundo José Padilha? Como virou cineasta premiado? Tem antecedentes na família?
J. P. – Estudei engenharia e física na PUC do Rio. Fui contratado para trabalhar num banco de investimentos e comecei a trabalhar cedo, talvez muito cedo demais… Tranquei o curso de física e comecei a cursar administração de empresas, também na PUC, só que à noite. Mas, rapidamente, fiquei entediado com o trabalho em banco. Quando o Marcos Prado (seu sócio na produtora Zazen), que era fotógrafo na época, me convidou para produzir uma exposição sobre o trabalho dos carvoeiros para a Eco-92, eu aceitei. Fizemos um vídeo, que o João Jardim editou e codirigiu com o Marcos. Gostei deste trabalho e depois decidimos produzir um documentário de longa-metragem também sobre os carvoeiros. Para a direção, convidamos o Nigel Noble, um diretor inglês premiado com o Oscar, que dava aulas de documentário na New York University. A esta altura, eu já estava formado em administração de empresas e já tinha largado o banco. Fundamos a Zazen Produções, fizemos o filme, entramos no Festival de Sundance, o maior dos Estados Unidos, e estamos aqui até hoje. Na minha família, tínhamos alguns escritores como o poeta Faria Neves Sobrinho, e o padrinho de casamento do meu pai, o Mário Filho, irmão do Nelson Rodrigues. Tomei contato com o cinema com os filhos dele, o Jofre e o Nelsinho, durante a produção do filme do Henfil, o Tanga.
Brasileiros – Você filmou Garapa, em 2005, antes de fazer o Tropa de Elite, portanto. Por que Garapa só está estreando agora?
J. P. – Quando terminamos a filmagem, faltou dinheiro para montar o filme. Aí começou a produção de Tropa de Elite e, com o dinheiro que este filme rendeu, pudemos terminar o Garapa. O Tropa ajudou a captação de recursos para o Garapa, um filme ajudou o outro. O projeto de Garapa estava orçado em R$ 1,2 milhão, mas a gente redimensionou a produção e, com R$ 700 mil, conseguimos terminar o filme.
Brasileiros – Como foi passar 45 dias filmando em Choró, convivendo com pessoas que passam fome, vivem na miséria absoluta, sem perspectivas? Você saiu de lá revoltado ou deprimido?
J. P. – Eu saí de lá deprimido. Nas situações de insegurança alimentar, a fome se repete diariamente. É uma realidade inexorável para as famílias, que não têm nenhuma perspectiva ou planos para melhorar. Pensam apenas na comida de cada dia. Como é que eu vou arrumar a comida de amanhã? Isso é sobrevivência. Foi dura essa experiência de conviver com as pessoas, ficar amigo delas e não poder interferir radicalmente, porque eu tinha que fazer o filme, era muito importante fazer este filme. A gente filmava o dia inteiro, 15 rolos por dia, 11 minutos em cada rolo. É muito negativo e muito trabalho. Então, o mecanismo psicológico que a gente adotou foi trabalhar o dia inteiro porque daí não tem que parar para pensar. Aí acabava a filmagem, jantava, dormia e acordava cedo de novo no dia seguinte. Ao tomar contato com esta realidade, não só eu mas toda a equipe de filmagem ficou deprimida.
Brasileiros – Por que a cidade de Choró e estas famílias foram escolhidas para o filme? Depois das filmagens, você continuou mantendo contato com elas?
J. P. – Primeiro, eu sei que não é difícil encontrar a fome, não é? Escolhi as famílias de maneira bastante aleatória. Eu não viajei antes de filmar com a minha equipe, não teve pré-produção, nada. O Francisco Menezes, que é diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) – um instituto fundado pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, antes do Fome Zero -, me ajudou bastante na concepção do filme. Entre outras coisas, o Chico me orientou a filmar em três situações diferentes: uma, em um grande núcleo urbano; outra, em uma pequena cidade e, a terceira, no meio rural. No Ceará, não era difícil encontrar essas três realidades relativamente próximas. O Chico já conhecia algumas ONGs locais que trabalhavam nesses três ambientes. O pessoal dessas ONGs me levou até as famílias.
Eu e Marcos resolvemos doar todo o dinheiro a ser arrecadado pelo filme para as famílias, de modo que qualquer retorno de distribuição ou prêmio em festival vai ser encaminhado para uma conta especial. Com relação às famílias que filmei no meio rural, que acabaram sendo duas, a assistente social que nos auxilia e a presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Choró me sugeriram que tentasse assentar essas famílias em pequenas propriedades rurais que fossem suficientes para garantir sua subsistência. No momento, elas estão procurando essas áreas. Se as famílias toparem, vamos tentar comprar a terra e o sindicato entrará com o apoio à produção.
Brasileiros – Como foi a rotina das filmagens? Onde vocês comiam, dormiam? Teve alguma hora em que você pensou em desistir, dar um tempo? Qual foi a maior dificuldade encontrada?
J. P. – Ficamos hospedados em Quixadá, a uns 20 quilômetros de Choró, no Hotel Monólito, que fica em cima de um posto de gasolina. A gente tentava comer bastante no café da manhã, antes das filmagens, para poder trabalhar o dia todo nas locações sem se alimentar. Queríamos estar junto das famílias na hora das refeições, mesmo que não houvesse refeição. Depois, quando chegávamos do set de filmagem, jantávamos bem cedo para dormir e acordar cedo no dia seguinte. Nunca pensei em desistir, mas chegou uma hora em que paramos por dois dias para descansar a cabeça. A gente não conseguia mais filmar, era depressão mesmo. Eu já estava nervoso, não estava aguentando mais. Fomos para Fortaleza, ficamos na Praia do Futuro, passei o dia todo dentro do mar. Ao voltarmos para a filmagem, terminamos o filme e fomos para o Rio, revelamos o material, mas não tinha dinheiro para continuar o trabalho. Nunca pensei em desistir do filme. Porque se você está se sentindo mal, imagina o cara que vive naquela situação todo dia…
Brasileiros – Por que filmar Garapa? Como e por que você embarcou nesta tragédia da fome, retomando uma temática que vem dos tempos do Cinema Novo?
J. P. – A ideia do filme surgiu de vários lados, não sei precisar bem o primeiro. Em parte, decidi fazer o filme depois que conversei com o Chico Menezes e compreendi que o problema da fome, apesar de ser conhecido, é conhecido de longe, e não de uma forma direta, pessoal. Marcos, meu sócio, também me deu força para tentar fazer o filme, e contar o drama da insegurança alimentar grave do ponto de vista de quem lida com ela todos os dias. O Fome Zero estava começando, depois o Bolsa Família foi ampliando o programa. O nosso título de trabalho era Fome, mas a gente já sabia que ia mudar durante as filmagens, e aí apareceu o simbolismo de Garapa, que estava em várias cenas. Foi uma sugestão do Felipe Lacerda, que é um grande montador, porque a gente ia e voltava e sempre caía na garapa. Colocamos um nome que é uma coisa universal, foi uma ideia perfeita.
Brasileiros – O que mudou na tua cabeça, na forma de ver e pensar o Brasil, depois da experiência de Garapa? Tem solução para a fome? O Brasil tem jeito?
J. P. – Eu acho que tem solução para a fome, não só no Brasil como no mundo. Em primeiro lugar, há a necessidade de uma ajuda humanitária para resolver o problema de quem passa fome continuadamente. A ONU estima que um investimento de 30 bilhões de dólares por ano seria suficiente para acabar com a fome no mundo. Por ano, gasta-se 40 vezes esse valor em fabricação de armamentos. Trata-se de um investimento pequeno se comparado ao benefício que traria.
Agora o Brasil tem um problema muito sério. Para mim, é o mais sério de todos. Tem uma classe política muito predatória, que se apropria do aparato do Estado para fins próprios e privados. Isso acontece independentemente do viés ideológico da nossa política. É um fenômeno que atravessa todos os partidos brasileiros, pelo menos os que têm algum tamanho. Isso gera um processo de transferência de renda para bancos e empresas que financiam os partidos políticos. O Brasil tem jeito. Mas o Brasil só tem jeito se a regra do jogo for mudada de forma tal que você quebre essa estrutura. Quando vai acontecer isso? Quando o Brasil crescer sustentavelmente durante um período razoável, se tiver cultura, educação, mobilização política. O maior problema do Brasil, a meu ver, é a corrupção.
Brasileiros – Por falar nisso, você já está trabalhando no teu próximo filme, que tem por tema exatamente esse problema da corrupção. Em que pé está esse projeto, qual a relação com teus trabalhos anteriores?
J. P. – Estou desenvolvendo um roteiro sobre a forma como a política brasileira está regida por regras que selecionam, na média, políticos corruptos para os cargos-chave, tanto no Legislativo quanto no Executivo, em todos os níveis de governo. O título será Nunca antes na História deste País e o roteiro está sendo desenvolvido pelo Luiz Eduardo Soares (ex-secretário nacional de Segurança Pública). Se o filme funcionar, será uma espécie de teoria geral, no sentido de que este filme, em parte, explicaria as outras realidades que já filmei.
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