Confesso que fiquei impressionado com o Padre José de Anchieta. Pouco sabia sobre ele: que ficava a escrever poemas nas areias da praia de Iperoig, mostrava o crucifixo para afastar as onças e fundou a cidade de São Paulo junto com seu superior, o Padre Manoel da Nóbrega. E mais, nunca chegou a ser denominado santo pelo Vaticano. Apenas beato. Mas o padre foi muito mais do que isso.
Pra começar, marcou a entrevista num barzinho na famosa praia onde escrevinhou seus 4.172 versos de sua pequena obra-prima Poema à Virgem (De Beata Virgine dei Matre Maria), que escreveu em latim e as ondas do mar iam apagando de estrofe a estrofe. Mas ele sabia tudo de cor.
A primeira surpresa é que não era português e sim espanhol. Nasceu na ilha de Tenerife, em 1534, e faleceu no Espírito Santo, na cidade de Iriritiba, fundada também por ele. Hoje se chama Anchieta.
Hoje é rodovia (via Anchieta, construída e provavelmente superfaturada pelo então governador Ademar Pereira de Barros, um político simpático e bonachão); uma fundação (Anchieta, que mantém a TV Cultura de São Paulo), algumas cidades, vários colégios, nenhum time de futebol.
Quem foi esse homem que chegou ao Brasil com 20 anos, depois de ter estudado Filosofia e Humanidades na Universidade de Coimbra? Ainda não era padre, era irmão.
E você acredita que o Padre José de Anchieta era chamado de Pazé, pelos índios?
A entrevista
Minha primeira surpresa ao chegar ao Boteco das Ostra (assim mesmo, sem o plural) na praia de Iperoig (hoje conhecida como Ubatuba) foi não reconhecer, entre as poucas pessoas que estavam ali nesse começo de inverno, o nosso entrevistado. Também pudera, ele estava de camiseta, bermudão e bebendo cerveja. Me fez um sinal e foi logo começando a falar.
Anchieta – Te convidei para a entrevista aqui neste bar por dois motivos. Primeiro, porque foi logo ali que eu ficava escrevendo o poema da Virgem. E, mais importante ainda, porque exatamente neste local foi assinado o primeiro tratado entre os índios e os portugueses. Ficou chamado de Paz de Iperoig ou Confederação dos Tamoios.
Brasileiros – Desculpa a minha ignorância, mas o que era o tratado?
Anchieta – Os portugueses estavam separando as famílias dos índios, levando os homens para trabalhar em engenhos e cana-de-açúcar em São Vicente. Escravidão mesmo. Aí, os índios, liderados pelo Cunhambebe, formaram uma grande confederação com poder imenso de guerra. Milhares de índios e centenas de igarás, as canoas em que cabiam mais de 20 deles. Estavam a fim de destruir São Vicente e Itanhaém. E iam conseguir.
Brasileiros – E onde foi que o senhor entrou?
Anchieta – Tu, por favor. Tinha apenas 20 anos na época. Pediram para o Pamané, o Padre Manoel da Nóbrega, e eu, o Pazé, pra gente tentar fazer as pazes com eles, os tupinambás e seus vizinhos. Tinha os Tamoios na jogada também. Era índio que não acabava mais. Graças à nossa diplomacia e a boa vontade dos caciques Cunhambebe Filho, Pindobuçu e Coaquira, fizemos as pazes e assinamos o contrato. Mas demorou umas semanas. Fiquei como refém, enquanto o Pamané foi a São Vicente junto com o Cunhambebe Filho para negociar. Me trataram muitíssimo bem.
Brasileiros – E os portugueses pararam de escravizar os índios?
Anchieta – Imagina, no ano seguinte já deu merda. Pra você ter uma ideia, quando a gente chegou aqui, diziam que a população indígena era entre 4 e 5 milhões. Portugal inteiro, na época, tinha pouco mais de um milhão. Hoje, qual é o número de índios na Brasil?
Brasileiros – Não chegam a 500 mil.
Anchieta – Foi foda, irmão! Quase um holocausto.
Brasileiros – Mudando de assunto, Pazé, dizem que tu escreveu uma espécie de gramática, um dicionário da língua tupi. Tu ainda tens esse material?
Anchieta – Eu soube que Dom Pedro II tinha um. Foram feitos só sete, acredita? A Arte de Gramática da Língua mais Usada na Costa do Brasil foi impressa em Coimbra, em 1595 – dois anos antes da minha morte –, por Antonio Mariz. Dizem que tem dois exemplares na Biblioteca Nacional do Brasil, no Rio de Janeiro. Espero que estejam bem cuidados.
Brasileiros – Teu outro livro, De Gestis Mendi de Saa (Os Feitos de Mem de Sá), conta a luta dos portugueses chefiados pelo Mem de Sá contra os franceses na Guanabara. Era uma epopeia renascentista e foi comparada ao Os Lusíadas, de Luis de Camões, como primeiro poema épico da América.
Anchieta – O que é isso, companheiro?, como diria o Gabeira. Quem sou eu? Camões é o cara! (Chama o garçom com uma mão.) Traga mais duas tulipas (chope, em Portugal)!
Brasileiros – Você conheceu o Mem de Sá?
Anchieta – Sim, ele e seu sobrinho, o Estácio, que havia fundado o Rio de Janeiro. Participei da luta contra os franceses no Rio, em 1567. Um ano antes, estive com o Mem em Salvador, que era a capital do Brasil, pedindo reforços para a luta contra os franceses. Ele quem me mandou junto com as tropas para me encontrar com o Estácio. Hoje virou escola de samba, né?, o Estácio. Muito boa a família Sá. Tinha os Guarabyra também. Gente muito musical.
Brasileiros – E a fundação de São Paulo?
Anchieta – Isso foi em 54 e vou te confessar uma coisa: eu não queria esse nome. Mas era dia de São Paulo Apóstolo, 25 de janeiro, né? E o Manuel da Nóbrega insistiu e como era meu superior… Eu tinha 20 anos ainda. Foi bem antes das guerras com os franceses. Sabe qual era a população da cidade no dia da sua fundação? 130 pessoas. Das quais apenas 36 eram batizadas.
Brasileiros – Tu não querias o nome de São Paulo. Por quê?
Anchieta – No dia da fundação, eu me lembro de que mandei uma carta para os nossos superiores da Companhia das Letras, perdão, da Companhia de Jesus, assim: “A 25 de janeiro do ano da graça de 1554 celebramos em paupérrima e estreitíssima casinha a primeira missa, no dia da conversão do Apóstolo Paulo e, por isso, a ele dedicamos nossa casa”. A casa era o colégio, mas o Pamané queria que a cidade também tivesse o mesmo nome.
Brasileiros – Mas por que tu não querias o nome de São Paulo, repito?
Anchieta – O Paulo era muito careta e reacionário. Olha as coisas que ele dizia: “É bom para um homem não ter relações sexuais com uma mulher”. Pode? E concluía: “Mas, devido à tentação de imoralidade sexual, cada homem deve ter a sua própria mulher e cada mulher o seu próprio marido”. Versículo 1 e 2: “Eu desejo que todos sejam como eu sou. Para os solteiros e as viúvas digo que é bom para eles permanecerem como eu sou. Mas se eles não podem exercer autocontrole, devem casar”. Tu acredita que um cara no auge do Renascimento, ainda tinha de acreditar numa babaquice dessas?
Brasileiros – Sem querer entrar em intimidades, as índias todas nuas por aí não era uma tentação para a carne?
Anchieta – Como tu disse, não vamos entrar na intimidade. Eu era um garoto, cara, que como você amava os Beatles e os Rolling Stones!
Brasileiros – Há três séculos os brasileiros lutam para que tu sejas o nosso primeiro santo. Já és beato. Tu foste mesmo um santo?
Anchieta – Imagina. O Brasil gosta de criar heróis. Deixa isso pra lá. Santo hoje em dia não tá com nada!
Brasileiros – Como o senhor vê a Igreja Católica hoje?
Anchieta – Caduca, né? Cada vez elegem papas mais velhos e retrógrados. Aí, o Edir Macedo deita e rola. Eles precisam parar de prometer o céu, a felicidade, para o neguinho, depois da morte. Ninguém mais entra nesse lero, não. O que faz o Edir? Promete a felicidade imediata. Simples. Aqui e agora.
Brasileiros – E a pedofilia?
Anchieta – Existe e o motivo é óbvio. É aquele negócio do Apóstolo São Paulo. Tem que mudar tudo. Como uma religião pode proibir um ser humano de amar e praticar o sexo? O celibato clerical foi imposto pelo famoso Concílio de Trento (1545-1563), quando eu já estava aqui. Me viro no túmulo pensando nisso. E a igreja não tem nem desculpa. Veja o Papa Alexandre VI, o italiano Rodrigo de Bórgia. Quando descobriram a América, em 1492, ele era o papa. Teve várias, várias amantes. Quatro filhos. Inclusive a Lucrécia Bórgia. Aquela sim, que devia fazer a propaganda da cerveja Devassa. Perdeu a virgindade com o irmão, sob a orientação ao vivo do pai, o papa. Tá nos livros, meu filho. E eles ainda pregam o celibato? Caducaram!!!
Dá um grande gole no seu chope, estala a língua.
Anchieta – Sabia que fomos nós, os padres, que inventamos a cerveja?
Brasileiros – Ouvi dizer. Na Alemanha, né?
Anchieta – Sim os abades alemães criaram a bebida – como a conhecemos hoje – para tomar nos retiros espirituais, que duravam 40 dias. Inventaram uma bebida que alimentasse, pois eles tinham que ficar em jejum. A base era malte, lúpulo e água. Fizeram até uma lei. Isso lá pelo século 13. Com a descoberta do fermento em 1860, pelo francês Pasteur, bagunçou tudo. A lei teve de ser alterada. Mas a cerveja alemã ainda é a melhor do mundo.
Brasileiros – Tem a belga também.
Anchieta – Sou mais a alemã. Vai por mim, meu filho, nasci em 1534. Já vivi muito, muito tempo. Vai mais uma? Aproveita que a revista tá pagando…
Brasileiros – Vamos lá. Pazé, tu já leu Ginsberg e Kerouac?
Anchieta – Fiz até um poema no trajeto Santos-São Paulo chamado Na Estrada. Ouvi dizer que os irmãos Campos têm um exemplar.
Na edição 73 da Revista Brasileiros, que chega às bancas em agosto, Mario Prata conseguiu entrevista exclusiva com a polêmica Maria, a Louca. Não perca!
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