Pai, avô, craque, cidadão

Esta entrevista já estava encerrada, quando o Raí ainda correu para dizer: “Ah, e tem mais: terminei um livro infantil para a Cosac Naify, chamado Turma do Infinito“. Explicou: filosofia para crianças, inspirada por uma redação da neta de 11 anos, livro que ainda está em fase de ilustração e sem data para sair.

Pois é, Raí Souza Vieira de Oliveira é o cara do “e tem mais”. Assim como no futebol, onde ele militou de forma exemplar em campo e, agora, com a mesma elegância, fora dele, Raí é uma caixinha de surpresas.
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Cosmopolita, sofisticado, devorador de corações, líder, ídolo, craque, superpai, superavô, cidadão consciente – uma unanimidade no minado campo de futebol. Ainda mais agora, que a reputação de jogador nunca rastejou tão miseravelmente, graças aos Brunos, Adrianos e certos inhos da vida. Raí contraria a generalizada impressão de que futebol é só barbárie, violência e corrupção. Ele é um homem do bem.

Aos 45 anos, preside a Fundação Gol de Letra, que fundou, dez anos atrás, com Leonardo Nascimento de Araújo, seu ex-colega de Seleção e de Paris Saint-Germain. É uma entidade reconhecida pela UNESCO e tem hoje sob sua responsabilidade direta mais de mil garotos e garotas, no Rio e em São Paulo. E cada vez mais, Raí se envolve, sem dissimulação hipócrita, na luta política, mas não partidária, por um esporte de melhor nível no Brasil – em prol da dignidade daqueles que fazem ou fizeram do esporte uma profissão.

Raí nasceu em Ribeirão Preto e, assim como seu irmão, craque e gênio, o doutor Sócrates, começou no Botafogo local, mas sua carreira pode se resumir, com merecidas passagens pela Seleção (ele foi campeão do mundo em 1994), ao São Paulo e ao Paris Saint-Germain. Foi um dos muitos atletas brasileiros subitamente desterrados para a Europa, mas logo percebeu que, em seu processo de adaptação, não iria como muitos sentir falta da feijoada. Logo descobriu os sabores do cassoulet. Morou na banlieue parisiense, em Yvelines, e para chegar ao centro de treinamento do clube, tinha de atravessar uma floresta vizinha a Versalhes que servira de campo de caça aos Luíses, os reis Bourbon de França.

A entrevista à Brasileiros contou com a participação muito especial de Dimitri Mussard, parisiense de nascimento, há nove meses brasileiro de adoção, torcedor fanático do Paris Saint-Germain e, muito de acordo com o entrevistado, herdeiro de uma família com centenária tradição no negócio da moda e do requinte.

Brasileiros – Você tem fama de paizão. Contaram que você saiu de férias em julho com a filha e com a neta, é verdade?
Raí –
Estou com a máquina aqui, posso mostrar as fotos.

Brasileiros – Foram para a França?
Raí –
Não, estive na França antes, visitei uma filha que está estudando Artes e trabalhando lá, a Raíssa. Estamos de volta é dos Lençóis Maranhenses, que eu não conhecia. Uma semana de férias. Com duas filhas e a neta. As três.

Brasileiros – Ou seja, você administra um matriarcado?
Raí –
É, só mulher, mas daí a administrar um matriarcado, não sei se dá pra dizer que é possível (ri). Vamos lá: a Emanuella tem 27 anos. É a mãe da Naira, minha neta, que está hoje com 11 anos. A Raíssa, a que mora em Paris, está com 21 anos. E tenho uma terceira filha, a Noáh, de 5 anos. A Noáh, de 5, é, portanto, tia da Naira, de 11. Já viajei com todas elas juntas, uma vez a Londres. O curioso é que venho de uma família só de homens, seis filhos, e eu sou o mais novo. Quando minha filha Emanuella nasceu, ela foi a primeira neta de minha mãe – que já tinha um monte de netos homens.

Brasileiros – Você ainda tem de correr muito para reequilibrar a desvantagem?
Raí –
Já está de bom tamanho. Tive uma filha aos 18 e outra aos 40 anos. O que posso dizer é que o convívio com três diferentes gerações é muito estimulante.

Brasileiros – Por que os Lençóis Maranhenses? Uma viagem complicada para filhas e neta, não é?
Raí –
Você pode ir para o norte do parque, perto do mar, e para o sul. Fiz o sul. É maravilhoso. A gente tinha um guia, fizemos dois passeios nas lagoas. Fomos assistir ao espetáculo do encontro do mar com o rio, é passeio longo, mas de barco. As meninas se divertiram, adoraram.

Brasileiros – Você está casado?
Raí –
Não. Me casei com 17 anos. Embora fosse superjovem, foi um casamento nos moldes tradicionais. O modelo de pai e de mãe que a Cristina e eu passamos para as filhas era aquele de um casamento para a vida toda, eterno, para sempre. É uma coisa meio inconsciente, pois, racionalmente, a gente sabe que casamento pode acabar. As duas meninas foram com a gente para a França, em 1993, quando me transferi para o Paris Saint-Germain, e nossa vida foi sempre muito próxima. A separação foi difícil, para elas. De todo modo, foi um casamento que superou as nossas próprias expectativas. Fiquei casado com a Cristina dos 18 aos 33 anos. Já com a mãe da Noáh, de 5 anos, foi diferente. Nunca moramos juntos. Ela se acostumou a ter duas casas e aproveitar essa chance de aproveitar os dois lados.

Brasileiros – Você foi avô antes dos 40 anos?
Raí –
Aos 34.

Brasileiros – É mais fácil viver o futebol ou gerenciar essa mulherada toda?
Raí –
As meninas são uma brincadeira ótima. Para nós, a referência familiar sempre foi uma prioridade muito forte. A partir do momento que você entende isso, você passa a se dedicar. Ainda que nunca seja tanto quanto a gente gostaria.

Brasileiros – Quando você se casou, já era profissional de futebol?
Raí –
Não. Estava no juvenil do Botafogo de Ribeirão Preto. Ao contrário, foi o casamento que me fez levar a sério o futebol, a pensar no futebol como meio de vida.

Brasileiros – Todos os seus irmãos jogaram futebol, não é? Além de você e do Sócrates…
Raí –
Dos seis, cinco jogavam bem. O Sóstenes quase foi profissional. Mas ele era mais boêmio e foi fazer engenharia em São Carlos.

Brasileiros – Mais boêmio que o Sócrates?
Raí –
Acho que, na época, sim. Mas em tempo de duração, o Sócrates ganha de longe (ri).

Brasileiros – O motorista de táxi que nos trouxe aqui, corintiano, disse que só há dois jogadores que são unanimidade de respeito em todas as torcidas: você e o Marcos, goleiro do Palmeiras. Disse ele que vocês podem até aparecer lá na Gaviões da Fiel que ninguém vai hostilizar…
Raí –
Também não precisa exagerar (ri).

Brasileiros – Mas a verdade é que você tem um patrimônio de respeito e admiração num momento em que a reputação dos jogadores de futebol nunca esteve tão em baixa.
Raí –
Infelizmente é verdade.

Brasileiros – Lidar com o dinheiro que é muito e vem muito rápido. Lidar com a fama e a superexposição. Lidar com as Marias-chuteiras. Lidar com a imprensa. Lidar com a expectativa da torcida. Como fazer para aguentar tanta pressão e ao mesmo tempo tanta oportunidade?
Raí –
É uma questão muito oportuna num momento em que tantos casos nefastos acontecem.

Brasileiros – O caso Bruno, o Adriano e o Wagner Love envolvidos com os traficantes no Rio…
Raí –
Acho que o histórico pessoal, a origem do garoto… Ajuda a explicar, mas não explica tudo. Hoje em dia, tudo que envolve o atleta profissional está mais amplificado que anos atrás. Falo de pressão, de estrelato, de fanatismo, tudo isso em um patamar quase de loucura. É difícil segurar a cabeça de um garoto.

Brasileiros – E tem a voracidade da mídia, o oceano de programas esportivos.
Raí –
Também. Eu tinha uma estrutura familiar que muitos desses garotos aí não têm, mas aí é que entra o mais dramático de tudo, que é o descaso dos próprios clubes. Eles é que deveriam suprir essa falta. Se houve alguma melhora, foi pouco. Se a gente puxar pela memória, vai se lembrar daquela era romântica dos jogadores-artistas, meio boêmios, meio irresponsáveis, que faziam do futebol uma improvisação. Aí vem a fase pós-1994, da globalização do futebol brasileiro, uma enorme quantidade de jogadores nossos assumindo posição de responsabilidade em clubes importantes da Europa. Não digo que fossem atletas cem por cento maduros, mas quase todos seguraram a pressão. Melhorou o nível, a gente já começa a falar em profissionalização. Agora, estamos perante um caso muito grave…

Brasileiros – O episódio Bruno.
Raí –
E outros, que nos fazem pensar o que deu errado aí. Hoje em dia, um garoto de menos de 20 anos vira superstar e fica milionário da noite para o dia, é cortejado, tem um monte de gente querendo tirar vantagem. O sujeito tem de ter um histórico pessoal, familiar e educacional muito sólido para administrar essa irracionalidade, que tem a ver com essa loucura que a economia se transformou no mundo todo. Mas insisto na responsabilidade dos clubes.

Brasileiros – No futebol só se pensa na forma física e na técnica. Por que toda essa resistência em se cuidar da forma psicológica do jogador? O Leonardo (ex-jogador da Seleção, ex-treinador do Milan e parceiro de Raí na Fundação Gol de Letra) contou que o Milan construiu um centro psicológico só para ajudar o jogador.
Raí –
Não conheço em detalhes, sei que existe o Milan Lab, que envolve tudo, são pesquisadores, tem uma equipe gigantesca, com certeza envolve também os problemas emocionais. O ambiente do futebol, todo mundo sabe, é muito retrógrado em todos os aspectos, desde a estrutura, do funcionamento, até essa visão machista e preconceituosa.

Brasileiros – Como se cuidar da cabeça fosse uma fraqueza e não uma vantagem.
Raí –
Lembro que aos 33, 34 anos, fiz terapia. Era a primeira vez que fazia. No meio da concentração, eu ia até o Levir Culpi, meu treinador, e dizia: “Me libera da concentração, vou à terapia, acho que é importante”.

Brasileiros – E o Levir Culpi?
Raí –
Entendia e liberava. Lembro de uma preleção em que ele falou: “Até o Raí precisa ir à terapia”. Quer dizer, aceitava, mas se surpreendia.

Brasileiros – É aquela ideia de que psicólogo é coisa para louco? O Muricy disse na entrevista à Brasileiros que tinha uma moça lá no São Paulo, psicóloga, mas que ninguém queria falar com ela, tinha de ser escondido.
Raí –
Pensando agora – nunca tinha pensado nisso antes -, acho que fui um dos poucos jogadores em atividade a procurar espontaneamente um profissional. Iniciativa minha, não do clube. Vocês veem quanto é raro. O aspecto físico do atleta sempre predominou. A ideia de que a confiança vem só do treinamento, ou tem a ver com a liderança do treinador. A resistência tem a ver com o poder e a ignorância. Por outro lado, há poucos profissionais preparados, especializados. Não é qualquer psicólogo que é capaz de lidar, ele também, com uma pressão desse porte. Ou que entenda a cabeça de um menino que saiu ontem da favela e tem hoje alguns milhões na conta bancária.

Brasileiros – A gente conhece uma psicanalista que se especializou em atender modelos. Pensando bem, modelo e jogador de futebol têm problemas semelhantes: origem geralmente humilde, súbita exposição, dinheiro rápido, carreira curta.
Raí –
É, o profissional tem de se especializar, eu insisto. Senão ele vai entender menos da cabeça do jogador que o próprio treinador entende. E tem de saber que vai entrar no meio de um conflito de poder. O treinador sempre vai se achar mais importante do que o psicólogo. O staff físico também.

Brasileiros – Você mencionou a palavra fanatismo. Está se referindo a essas muletas espirituais tipo igreja evangélica, tipo Atletas de Cristo? É um jeito que o jogador encontra para aguentar a pressão psicológica?
Raí –
Estava falando do fanatismo da torcida. Quanto à questão dos atletas que buscam refúgio na fé, acho que o futebol está refletindo o que ocorre na própria sociedade. Posso ser crítico às igrejas, mas percebo, no trabalho da Fundação Gol de Letra, lá no bairro popular, que elas podem ser importantes no aspecto de criar esperança e até mesmo de salvação para garotos que estão perto da deliquência. Convivi com jogadores que estavam se perdendo e que aderiram à igreja, o cara se sentia melhor. Ou se salvava ali ou se perdia feio. Teve um volante do São Paulo que hoje é empresário, ele chegava ao vestiário, a gente nunca sabia se ele estava em dia de Deus ou do diabo. Se viesse dar a benção é que estava tudo bem. Então, além da crença, da fé, a igreja ajuda o garoto que não tem estrutura familiar nos bairros onde a outra opção é o narcotráfico. O garoto se sente protegido. Estamos falando de religião, mas uma coisa que me fascina também é a irracionalidade do torcedor e do próprio futebol.

Brasileiros – Em que sentido?
Raí –
O fanatismo de torcedor é um fenômeno que quero estudar mais a fundo. Perdeu-se o romantismo do futebol, mas o fanatismo cresceu. Todo mundo diz: “Não vou mais ao estádio, tem muita violência, o jogo está mais feio”. No entanto, o interesse pelo futebol tem ampliado, em vez de diminuir. É uma coisa inexplicável.

Brasileiros – A sua Fundação atua em áreas pobres, não é?
Raí –
Temos uma sede na Vila Albertina, Zona Norte de São Paulo, e outra no Caju, no Rio. Está indo super bem, fizemos no dia 1o de junho a festa de 10 anos. Uma das boas sensações que isso dá, é perceber que a iniciativa está crescendo e sensibilizando mais gente. A outra, é sentir que, perto de uma outra realidade, você pode também aprender muito com ela.

Brasileiros – Ali, o futebol é a salvação, é o que abre perspectivas para a garotada.
Raí –
Na verdade, não é o futebol, a Fundação tem um propósito educativo e cultural que usa os esportes, e não apenas o futebol É um projeto de Educação, usamos a linguagem, a leitura, a informática. Enfim, é um projeto de desenvolvimento comunitário.

Brasileiros – É ideia sua e do Leonardo, não é? Vocês jogaram juntos no Paris Saint-Germain, foi isso?
Raí –
E na seleção brasileira.

Brasileiros – Mas é você quem toca. O Leonardo mora na Europa.
Raí –
Ele é muito ativo, quando está no Brasil, está sempre na Fundação lá do Rio. Agora, ele está decidindo a vida dele, talvez fique mais por aqui.

Brasileiros – Chegou-se a falar no Leonardo para técnico da Seleção. Ele foi convidado?
Raí –
Diria que foi sondado. Uns recados aqui e ali. Convidado, acho que não.

Brasileiros – Ele é bom técnico?
Raí –
Eu acho.

Brasileiros – Melhor que o Ricardo Gomes (ex-treinador do São Paulo)?
Raí (rindo) –
Vocês querem me comprometer. O Ricardo foi companheiro no Paris Saint-Germain e, depois, meu treinador. O primeiro time que ele treinou foi o Paris Saint-Germain. Também joguei com o Ricardo na Seleção.

Brasileiros – Quando?
Raí –
Minha primeira convocação foi em 1987, eu ainda jogava no Botafogo de Ribeirão Preto – e o Ricardo já estava na Seleção. Para a Copa de 1990 eu não fui, o Ricardo foi. Tinha aquela coisa meio Dunga do Lazaroni (treinador da Seleção) de fechar o grupo. Em 1994, o Ricardo foi cortado no último amistoso antes da Copa, teve um estiramento. Ele era titular.

Brasileiros – Pensando no Paris Saint-Germain, como é chegar a um time novo, em um país novo com cultura diferente? Claro que, para você, com seu background, foi mais fácil.
Raí –
Tive muita dificuldade no primeiro ano.

Brasileiros – Você já falava francês?
Raí –
Nada.

Brasileiros – Mas você tinha consciência de que o seu futebol iria, afinal, prevalecer sobre as dúvidas e angústias.
Raí –
Cheguei à França em setembro de 1993, logo depois das eliminatórias da Copa de 1994. As eliminatórias, daquela vez, foram diferentes, jogadas ao longo de apenas dois meses. Foram dois meses de concentração, preparação, competição, pressão, muito desgaste psicológico. E fazia quase três anos que não tirava férias. Quando cheguei à França, não estava nas melhores condições para enfrentar o novo desafio. Sabia que meu futebol iria prevalecer. Imaginei que demoraria uns seis meses. Demorou mais.

Brasileiros – A impressão que você sempre passou é a de nunca deixar de confiar em você mesmo.
Raí –
Fora a confiança, existe no atleta de certo nível o prazer de competir, aquela frase que o Zagallo soltou, certa vez: “Vocês vão ter de me engolir”. O desafio é comigo mesmo. Estou sendo vaiado hoje, vou ser aplaudido amanhã. Vou vencer, e ponto final. Talvez tenha a ver também com o meu signo, Touro.

Brasileiros – Mas você é um sujeito calmo, educado.
Raí –
Quando cheguei à França, comecei a jogar tênis nos dias de folga, havia um clube ao lado da minha casa. Entrei em um torneio, venci o primeiro jogo, venci o segundo, no terceiro perdi. Era um grande amigo meu. Fiquei um tempão sem olhar para a cara dele. Eu sei perder, mas demorou muito a aceitar a derrota.

Brasileiros – No futebol, você não tinha fama de violento.
Raí –
Como o futebol faculta o contato físico, é permitido certo grau de agressividade, você descarrega tudo ali. Isso é um aspecto da coisa. O outro, é que, como fui muitas vezes líder e capitão do time, eu tinha de ser mais responsável que os outros.

Brasileiros – E o juiz de futebol? Como é que um cara maduro e responsável como você conseguia lidar com uma figura que é, por natureza, autoritária e quase sempre caricata? Não dava vontade de partir para a ignorância?
Raí –
Às vezes dava sim. Mas quando tinha de discutir, discutia do meu jeito. Quase sempre ignorava até o nome deles. Olhando para trás, eu diria que, como capitão, não podia ter sido tão distante, devia ter brigado mais.

Brasileiros – E a relação com a torcida? Há momentos tensos, não há?
Raí –
Dependendo da situação, é melhor jogar fora de casa que em casa. Ser vaiado pela torcida adversária, você tira de letra; duro é ser vaiado pela própria torcida. Mas também existe aquele aspecto da excitação que empurra o atleta para a vitória. Ser pressionado por essa relação de paixão e ódio pode te levar à superação.

Brasileiros – Qual é a melhor torcida, a do São Paulo ou a do Paris Saint-Germain?
Raí –
A torcida do São Paulo é diferente das outras. Tem coisas que ela gosta mais, no caso da Libertadores, aí ela se transforma. A do Saint-Germain é uma torcida menor, mas todo mundo que vai ao estádio canta muito e aplaude sempre. A do São Paulo, às vezes, cala.

Brasileiros – Em Paris, você conseguia sair às ruas, ir ao teatro, cinema, restaurante?
Raí –
Conseguia, lá era bem mais tranquilo que aqui. Fiz meu curso de francês, outros cursos, jogava meu tênis, saía sempre. Na verdade, foi uma das razões de eu ir para Paris: aqui já não conseguia sair à rua. E eu já tinha 28 anos, sentia-me realizado aqui. Duas Libertadores, dois títulos mundiais, campeonato brasileiro… Lá, assisti à transformação do futebol francês. Cheguei no pré-1998. A França tinha ficado de fora da Copa de 1990 e da de 1994. A torcida era de uns poucos fanáticos, especialmente em Marselha, e também tinha muitos que não estavam nem aí. De repente, em 1998, a França virou campeã do mundo.

Brasileiros – Sua saída do São Paulo foi diferente da saída do Kaká, não é?
Raí –
A torcida do São Paulo é muito carinhosa comigo. Saí em lua-de-mel. Esperaram a final do Campeonato Paulista, contra o Corinthians, quando fiz três gols, e só aí anunciaram que tinha sido vendido.

Brasileiros – Você não tinha um agente?
Raí –
Não, nunca tive.

Brasileiros – O agente não é mais uma praga na vida do jogador? A família entrega o garoto de 17 anos na mão dele, como se fosse um cheque em branco.
Raí –
É, a pressão é muito grande e os garotos estão indo embora cada vez mais jovens. Mas existe também a pressão da própria carreira. De repente, você tem uma proposta que faz a independência financeira sua e de toda a família, você hesita e pode quebrar o joelho na partida seguinte. São 15 anos de carreira, se tanto. Só o Santos é que tem conseguido segurar um pouco esse seu patrimônio. Mas se não der condições de segurança ao garoto, oferecer perspectivas, não há quem segure.

Brasileiros – Você faz parte de uma associação chamada Atletas pela Cidadania. O que ela tem a ver com esses assuntos que a gente está abordando?
Raí –
Tudo a ver. Sou um dos fundadores. A ideia é agregar o poder de mobilização e de comunicação de todos os atletas para lutar por causas de seu interesse e do interesse geral do esporte – como esses que a gente está falando. Até a Copa, até a Olimpíada, vamos aproveitar para desenvolver ações propositivas, até o ponto de criar uma política de esporte de fato nova e moderna. Vamos funcionar como grupo de pressão, sim. É uma novidade em todo o mundo: associação que reúna atletas de todas as modalidades, de gerações diferentes, em atividade ou ex-atletas. Temos o Lars Grael e o Deco (brasileiro-português que joga no Chelsea, de Londres), a Paula, a Ana Moser, o Clodoaldo Silva, que é atleta paraolímpico. Estamos amadurecendo a entidade, mas ela já é bem ativa. Vamos atuar no esporte, na escola e fora dela, na iniciação esportiva em geral, ou seja, vamos nos ocupar da formação das novas gerações. É uma ação de cidadania, uma preocupação que vai além das quatro linhas, além da piscina, além das pistas.

Brasileiros – Então vocês querem ter abertamente uma atuação política?
Raí –
Vamos, sim. Posso dizer que já há uma atuação política na Gol de Letra, mas no caso da Atletas pela Cidadania será uma atuação mais direta, por ações ad-vox, com equipes de advogados que irão nos ajudar a brigar por mudanças na legislação, assessoria que levante questões ligadas ao esporte, e por aí afora. Já identificamos um projeto de lei que mexe profundamente com a estrutura do esporte e que está engavetado no Congresso. Estamos nos apresentando oficialmente em Brasília, no Rio, ao Comitê Olímpico, ao Ministério do Esporte, ao Ministério da Saúde – como interlocutores credenciados em tudo que diga respeito ao esporte no Brasil. A primeira audiência é no Ministério da Educação. Dá a medida de como a gente vê o esporte. Esporte é educação, esporte é também saúde.

Brasileiros – Fora seu irmão, o glorioso Sócrates, quem foi o jogador exemplar que você viu dentro e fora de campo?
Raí –
Tecnicamente?

Brasileiros – O conjunto da obra: técnica, cabeça, cidadania.
Raí –
Brasileiro?

Brasileiros – Não precisa ser só brasileiro.
Raí –
Dentro de campo, houve aquela incrível geração dos anos 1980, do Zico, Falcão, do próprio Sócrates. Falcão era uma delícia de ver jogar, pela elegância e pela inteligência. Zico unia técnica com eficiência. Era um cara centrado, objetivo. Gostava também do Platini. Nos anos 1980, o futebol brasileiro e o francês eram os mais técnicos. A propósito, a gente também não pode esquecer um treinador como o Telê. Foi ele quem deu feição àquela inesquecível Seleção de 1982.

Brasileiros – Telê foi seu treinador. Como era ele na intimidade: irritado, cobrava muito ou era do tipo paizão?
Raí –
Ele era um paizão severo.

Brasileiros – Mal-humorado?
Raí –
Com a gente, ele era severo e rígido, mas sabia quebrar isso de vez em quando. Mais fechado que mal-humorado. Mineiro. Fechadão.

Brasileiros – Que tal o Dunga?
Raí (desconversando) –
Jogamos juntos na Seleção, ele era volante, eu jogava mais na frente.

Brasileiros – Outro estilo, não é?
Raí –
Sim, outro estilo.

Brasileiros – Feio aquilo de não dar a mão ao Lula na despedida, né? Na verdade, o Lula dá sorte, o Dunga devia aproveitar e esfregar o talismã.
Raí (risos) –
Quem sabe, né?

Brasileiros – Você teve problema com treinador? Alguém que não gostasse de você ou vice-versa?
Raí –
Problemas, nunca. Momentos difíceis, sim. Pontuais, nada grave. Sempre fui respeitado pelo meu estilo de liderança, afinal aprendi em minha casa, com filhas, mulher, ex-mulher, a lidar com as mais diferentes personalidades.

Brasileiros – Qual é sua rotina em São Paulo? O que você gosta de fazer aqui? Consegue ir ao cinema, essas coisas?
Raí –
Olha, estou há dois anos sem carro.

Brasileiros – Por quê? Uma questão ideológica? Ecológica?
Raí –
Trânsito me irrita, eu que sou um cara supercalmo. Passei um tempo em Londres, lá eu não tinha carro. Na volta, pensei: “Vou passar um ano sem carro, tenho dinheiro para pegar táxi, assim evito multa e irritação.” Já faz dois anos. Fiquei mais tranquilo, evito os engarrafamentos, vou à Fundação no contrafluxo do tráfego. Quando vou a uma reunião na Paulista ou na Vila Mariana, por exemplo, vou de metrô. A estação é perto da minha casa.

Brasileiros – As pessoas não te assediam no metrô?
Raí –
Mais comum é elas desconfiarem: “Mas será mesmo o Raí?”. Eu não me sinto assediado. Vou muito ao cinema, adoro show, meu estilo é muito Vila Madalena.

Brasileiros – Você tem negócios fora do Brasil? Tipo consultoria na área do esporte?
Raí –
Em 2006, 2007, sim, consultoria na área de imprensa para o Paris Saint-Germain, coisas assim.

Brasileiros – E televisão? Na França, na Inglaterra?
Raí –
Na França, sim. Na Copa da Alemanha, fui comentarista de TV, a TVPlus, e do jornal Metro. Fui a esta última Copa, na África do Sul, como comentarista do jornal France Soir.

Brasileiros – E o que você disse aos franceses da performance da Seleção Francesa na Copa?
Raí –
Nem precisava comentar nada. Me contaram – e depois vi a cena – que, quando a França perdeu a Copa da Europa, com uma atuação péssima, dois anos antes, alguém foi entrevistar o Domenech (François Domenech, treinador da França), na saída do campo. Ele desconversou: “Daqui a dois anos, para a Copa, estará tudo perfeito, mas eu não quero falar de futebol, só quero falar de uma coisa”. E, ali no ar, pediu a noiva dele em casamento. O país todo chorando e ele lá, feliz da vida. Era como se o Dunga, depois da derrota para a Holanda, dissesse: “Estou voltando para casa, Catarina, meu amor”. O Domenech não estava em estado normal. Na Copa, a França foi vergonhosa.

Brasileiros – O Brasil está agora se preparando para uma Copa e para uma Olimpíada. Não seria normal imaginar que os organizadores fossem buscar interlocutores e conselheiros em pessoas como você, atleta exemplar dentro e fora do campo? Gente madura, com vivência do esporte? Não seria natural acontecer isso, mesmo que fora do organograma, informalmente?
Raí –
O Atletas pela Cidadania passa por isso, pela criação de uma cultura de consulta e de pressão. Se não vem espontaneamente, por parte das entidades, dos clubes e das autoridades, então os atletas precisam se colocar. Queremos colaborar, queremos participar. No Brasil, existe essa cultura de esperar que o poder decida. O próprio Comitê Olímpico Internacional, o COI, hoje em dia, tem um grupo de atletas muito ativo, e até com direito de voto nas decisões e na eleição. Essa é a tendência.

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