O compositor José Miguel Wisnik, ou alguém que se fazia passar pelo compositor José Miguel Wisnik, conduziu uma noite dessas, no SESC Pinheiros, em São Paulo, uma ilustrada plateia de intelectuais e curiosos por intrincadas veredas do pensamento psicanalítico, a propósito do lançamento, pela Companhia das Letras, de nova tradução para três obras de Freud.

Wisnik relacionou linguagem e poder, investigando, na trilha de um texto clássico de Freud, o sentido libertador do chiste – a brincadeira, a pegadinha, o direito de rir de quem está socialmente no andar de cima, a suspensão, pela palavra, de códigos e hierarquias.

Palestra do tipo biscoito fino, à qual não haveria de faltar o toque ilustrativo do próprio chiste. Wisnik se referiu ao caso de uma senhora de traseiro avantajado que destrói o banco em que pretendia se acomodar. E arremata: “É a primeira vez que um banco quebra por excesso de fundos”.

Equilibrando-se em uma poltrona inamistosa, Wisnik passeou sua erudição cristalina, mas despretensiosa, ao longo dos 90 minutos de uma partida de futebol. Misturou Freud com Gregório de Matos, o “Boca do Inferno” da Bahia seiscentista, revelou em um conto de Machado de Assis a premonição do que o médico austríaco chamaria de inconsciente e dissecou aspectos da psicanálise, com uma naturalidade requintada capaz de surpreender até a densa e sisuda bancada de psicanalistas ali presente.

Aí, surgiu no palco a figura sempre muito peculiar de Caetano Veloso e, como a confirmar que o sofisticado palestrante José Miguel Wisnik, aquele ali, é também, de fato, o compositor que Caetano chama de Zé Miguel, convocou-o para assumir o piano e, então, produziram dueto em duas canções, entre elas, Pecado Original, aquela que pergunta o que quer uma mulher – com as mesmas palavras, involuntárias ou inconscientes, jurou Caetano, que Freud usara antes em uma carta célebre.

Eis aí o Zé Miguel Wisnik em sua múltipla plenitude: ensaísta, escritor, palestrante, professor, pianista, compositor, cantor, fanático por futebol, ainda infatigável peladeiro aos 61 anos de idade. À maneira de Fernando Pessoa, outro queridinho no vastíssimo acervo da erudição de Wisnik, dá para dizer que ele é um amontoado de heterônimos (“Isso aí de heterônimo fica por conta sua, tá?”, brinca ele). Ou então dizer que ele lembra um daqueles sábios renascentistas, cuja voracidade intelectual encontra um paralelo simbólico nos personagens glutões – Pantagruel e Gargântua – do renascentista Rabelais. Professor de Teoria Literária da USP, recém-aposentado, pode ser que Wisnik corrija a analogia. O fato é que no Wisnik pensador, a vocação pop rejeita qualquer ranço acadêmico, e o conhecimento nunca rima com aborrecimento.

Quem já assistiu a suas aulas e palestras e leu livros como Veneno Remédio, enciclopédico ensaio sobre o futebol no Brasil e no mundo, só pode comparar esse privilégio com o desfrute do Wisnik músico, ele que completa, com Luiz Tatit e Arthur Nestrovski, a santíssima trindade de uma escola musical muito especial, pois consegue ter um pé na universidade e outro no fundo de quintal. Música-cabeça, por assim dizer, com sotaque paulista e certo pendor pelo experimentalismo nas tonalidades e pela lapidação nas letras, mas com apelo popular, sem perder, portanto, aquele chão aplainado por Noel, por Lamartine, por Pixinguinha e, mais recentemente, por Tom, por Chico, por Caetano.

“A gente se conheceu na universidade antes de se encontrar no palco”, lembra Wisnik. “Aliás, ali na USP por muito tempo ninguém soube que eu era músico.”

Nascido em São Vicente, litoral de São Paulo, ao lado de Santos (o que fez dele um esperado torcedor do time de Pelé e Coutinho, desde a época de Pelé e Coutinho), Wisnik estudou piano clássico por 13 anos, foi solista da Orquestra Municipal de São Paulo aos 17, mas acabou seduzido por outra musicalidade, a das palavras, aquela, por exemplo, que assoma da polifonia sertaneja de Guimarães Rosa e perfuma a prosa enigmaticamente iluminada de Clarice Lispector. Espelhando-se em seu mentor, Haquira Osakabe (“quem melhor desvendou as inter-relações entre os heterônimos de Fernando Pessoa”), Wisnik foi cursar Letras na USP e deixou a música de lado. “Achava que só merecia ser músico quem se dedicasse integralmente à música”, comenta. “Essas tolices da juventude.”

Mas a música ficou lá espreitando por ele. Não por acaso, seu livro de estreia, versão hidratada de sua tese de mestrado, foi O Coro dos Contrários – a Música em Torno da Semana de 22 (Duas Cidades, 1977, esgotado). “Pouco a pouco, eu me vi cercado”, resume Wisnik. Arrigo Barnabé estudava no departamento de música da Escola de Comunicações e Artes (ECA) – e capitaneava a tribo dos que faziam experiências atonais. Luiz Tatit também cursou a ECA, na qual virou expert em Semiótica. O Grupo Rumo – intelectualizado, de classe média alta – também arregimentava emoções e discussões a partir do epicentro que era o Lira Paulistana, na Praça Benedito Calixto. Arthur Nestrovski juntou-se depois, vindo de outra seara, mas não menos up scale: o jornalismo cultural. Foi também na fonte dessa São Paulo universitária e bem pensante da qual bebeu Arnaldo Antunes.

Aos poucos, Wisnik foi se revelando, ele que, no entanto, já havia, em 1968, mocinho de tudo, participado do Festival Universitário da TV Tupi, com a canção Outra Viagem, defendida por Alaíde Costa. “É bom repetir: a ligação de nossa geração com a música popular sempre foi muito forte”, diz ele. “A gente não chegou a ela só para dar canja, descer dos tamancos.” Quer dizer: ninguém ali, nem Wisnik, nem Tatit, nem Nestrovski, por mais impressionante que fosse o pedigree intelectual da turma, tinha a pretensão do gueto, da música complicada, para uma “elitizinha metida a besta”.

No caso de Wisnik, a literatura ajudou, claro. Ele sabe como poucos ler a partitura secreta da sintaxe. Mas só depois dos anos 1990, mais ainda em 2000, é que o compositor aflorou plenamente, no palco, na dança (em trilhas para o Grupo Corpo), no teatro (música para o Oficina, de Zé Celso), no cinema (por exemplo, em Terra Estrangeira, de Walter Salles e Daniela Thomas). De alguns anos para cá, saboreia, em parceria com Arthur Nestrovski, nova modalidade de espetáculo: o que chamam de aulas-shows. Aí, eles podem ser o que são: ao mesmo tempo eruditos e populares.

A dupla se apresentou no Culturgest de Lisboa, ali perto do Campo Pequeno, para uma dessas habituais aulas-shows de MPB, dois dias antes daquele Brasil versus Portugal, primeiro turno da Copa. No jornal O Público, o crítico Nuno Pacheco elogiou “o admirável tempo sem tempo de Wisnik”. O compositor José Miguel Wisnik acabaria assistindo ao jogo lá, na casa dos adversários. A partida foi tão entorpecente que o torcedor Zé Miguel dormitou no embalo de tanta mediocridade. E foi o ensaísta José Miguel Wisnik quem uma vez escreveu, citando Pasolini, que o futebol pode ser jogado em prosa (os europeus, predominantemente) e em verso (os sul-americanos). Naquele dia, o que os dois times fizeram foi maltratar a linguagem da bola.



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