Papo de artista

Wagner x Wagner Malta

Tavares entrevista Morales

Wagner Malta Tavares – Sua formação acadêmica foi determinante na sua produção inicial?
Wagner Morales –
Meu primeiro documentário é de 1992, mesmo ano em que me formei na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Foi na faculdade que aprendi a ler um texto como deve ser lido e entrei em contato com Marx, Weber, Lévi-Strauss, Foucault, aqueles caras que todos citam e poucos lêem. Tínhamos uma disciplina chamada sociologia da arte que era ruim de doer. Aquelas aulas eram capazes de matar o futuro cineasta ou artista que poderia haver nas pessoas. Resisti. A minha sorte é que com 8 ou 9 anos eu gostava do Chaplin, do Buster Keaton, de Jerry Lewis e dos westerns, via tudo. Já na adolescência, nos cineclubes, descobri os caras de que gosto até hoje: Jean Rouch, Godard, Lynch, Buñuel, Jarmusch, Wenders, Bressane, Bresson… Isso me facilitou sair ileso das fatídicas aulinhas de sociologia da arte.

W.M.T. – Quando começa sua passagem do documentário para o vídeo de arte?
W.M. –
Não fiz escola de cinema nem de artes plásticas e comecei a fazer documentários na mesma época em que comecei a fazer os ditos “vídeos experimentais”. Não faço muita distinção entre os dois tipos de produção. O que sei é que, cada vez mais, sinto que os meus cacoetes estéticos vão ficando para trás na mesma medida em que uma pesquisa maior sobre o meio e o suporte videográfico e cinematográfico ganham corpo. A “vídeo de arte”, prefiro “vídeo de artista”, o produto do trabalho daquele que se utiliza do vídeo para fazer seu trabalho, assim como poderia se valer da fotografia, do desenho, do cinema, da escultura etc.

W.M.T. – Muitos dos seus vídeos parecem ser construídos de imagens e sons que você vai coletando. As coisas estão todas no mundo e o artista cria ao organizá-las?
W.M. –
Engraçado isso, faço justamente o oposto. Apesar de parecer que sim, o acaso raramente faz parte do meu trabalho. Geralmente gravo e filmo pouco. Não gosto de produzir imagens à toa e, sinceramente, me irrito com pessoas que saem sempre com uma câmera na mão como se fosse necessário estar sempre a postos. É o mito “uma câmera na mão, uma idéia na cabeça”. Quando se está o tempo inteiro com uma câmera na mão, é muito difícil ter idéias na cabeça. Hoje em dia isso ficou insuportável, todos têm uma câmera nos celulares e todos produzem imagens e elas são mais ou menos como os sacos plásticos no supermercado: ninguém pensa que aquele material vai ficar no mundo por muitos anos.
Quando eu penso num trabalho, fico meses com ele na cabeça e só depois saio a campo em busca das imagens. Muitas vezes, ocorre de a trilha sonora ser feita e pensada antes da gravação das imagens. Em muitos dos meus trabalhos, o som serve de roteiro para as imagens.
Trabalhos como Não Há Ninguém Aqui #1, Ficção Científica aparentam ter a espontaneidade da imagem coletada ao acaso, mas, se eu for comparar o processo criativo, eles não diferem em nada de vídeos como Seven Graces for a Boy, Wild Life ou Filme de Foda, nos quais é evidente o preparo das cenas.

W.M.T. – Você nunca fez algo abstrato. Isso se deve a uma raiz documental?
W.M. –
O abstrato é difícil para mim. Eu até realizei alguns trabalhos mais formais como os Desenhos de Água e As Miras expostos na Galeria 10,20X3,60, mas eles tinham uma pretensão de reenquadrar o espaço, o que é uma ação totalmente cinematográfica, a da escolha do quadro, do campo e do contracampo. Em vídeo, nunca embarquei na onda das superposições de imagens, das abstrações, da intervenção no pixel, essas coisas puramente formais que são chamadas de videoarte – um rótulo que é limitador. Ao contrário, meu trabalho é “pão, pão, queijo, queijo”: o que você vê na tela é o que estava na frente da câmera no momento da gravação. É a montagem e o som que vão dar forma. Eu não tenho raiz documental.

W.M.T. – O que te levou a usar outros suportes nos trabalhos mais recentes?
W.M. –
Depois de 2004 e das duas residências artísticas que fiz na França, comecei a pesquisar outras possibilidades, principalmente no campo da instalação, da fotografia e do som.
Em Cinema em Casa/Homevideo, minha individual deste ano na Galeria Virgílio, mostrei uma instalação e uma série de fotografias. As fotos eram imagens de filmes projetadas em ambientes cotidianos, nas quais tentava “encaixar” as cenas desses filmes nos espaços de uma casa. É uma intenção escultórica, de encaixar uma coisa em outra, e uma tentativa de subverter a sua bidimensionalidade, usando-as como volumes, corpos no espaço. Nós vivemos com os filmes a que assistimos, eles ficam na memória, são assunto no café-da-manhã, nos bares, nas conversas com amigos, ou seja, os filmes estão sempre em nós, então, naquelas fotos, eu tentei traduzir essa idéia: colocar as cenas desses filmes, que até então estavam na prateleira de casa, literalmente “dentro” da minha casa. Uma homenagem a esse tipo de relação estreita que temos com o cinema.
Nessa exposição, mostrei também uma grande pintura nas paredes, no chão e nas colunas da galeria. Ela retratava duas cenas de felação.
O tema se explica: é fato que com a internet temos acesso aos filmes a qualquer momento. No entanto, o que mais se faz na internet é entrar em sites pornôs. Em conseqüência, nunca se produziu tanta imagem de boquete. Em meio a bilhões de imagens de boquete, escolhi duas clássicas: um vídeo caseiro da talentosa Heather Brooks e seu estilo deep throat, e Chloë Sevigny no filme Brown Bunny, de Vincent Gallo. Na instalação, a pintura nas paredes é feita com base na projeção de cenas desses dois filmes, não há julgamento de valor ou moral. É como aqueles cartazes de cinema antigo e o que se vê é quase um momento sagrado. As atrizes parecem estar rezando: olhos fechados, de joelhos, como se fossem afrescos em um espaço religioso. Talvez fosse essa aura religiosa dos clássicos que eu quisesse evocar nesse trabalho. Falando assim, parece que só falo de cinema. O cinema é apenas um dos modelos de pensamento, uma matéria-prima. Pode-se partir do cinema para a feitura de um vídeo, de uma instalação. Partir de uma foto para a realização de uma instalação, de uma música para um filme. Um é desvio ou atalho para o outro.

Wagner Morales realiza trabalhos em vídeo, fotografia, cinema, instalação e música. Seus trabalhos foram premiados em festivais, salões e bienais e têm sido exibidos em mostras e exposições em galerias e instituições no Brasil e em países como Alemanha, Cuba, Estados Unidos, Finlândia, Grécia, Inglaterra, Romênia e Uganda. Entre 2004 e 2006, realizou duas residências artísticas na França, uma no Le Fresnoy – Estúdio de Arte Contemporânea, na cidade de Tourcoing, e outra no programa Le Pavillon do Palais de Tokyo, em Paris. Neste ano, Morales realizou uma exposição individual na Galeria Virgílio, em São Paulo, e participou de diversas coletivas em instituições no Brasil e no mundo. Coordena o projeto Cinema de Corredor e é o curador responsável pelo espaço de vídeo da
28a Bienal de São Paulo.

*WAGNER MALTA TAVARES Artista de múltiplas linguagens, que harmoniza vídeos, fotos, esculturas, desenhos, colagens, performances e instalações.


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