“Para saber o que é ser negra, fique 24 horas negra”

A boa notícia é que pela primeira vez, desde o primeiro censo, em 1872, os negros são declarados maioria no Brasil. Agora, formam uma multidão de 96,7 milhões (mais de 50% da população) contra 91 milhões de brancos (47,7%) – o restante é formado por amarelos (1,1%) e indígenas (817,9 mil indígenas). A má notícia é que, embora estejam se assumindo, ainda enfrentam uma marcha cansativa de preconceito e discriminação. A começar pelas estatísticas que dão conta do mercado de trabalho: os negros ainda ocupam a base da pirâmide.

Só para ter ideia da encrenca, nas 500 maiores empresas brasileiras, eles somam 23,4% assim distribuídos: 13,5% em cargos de chefia, 8,8% gerentes e 1,8% executivos. No recorte por sexo, as negras ficam em situação pior: não chegam a 0,5% em cargos executivos.
Luislinda conseguiu virar esse jogo. Mas, nem do alto de sua autoridade como juíza, essa mulher de 69 anos está livre de ser vítima de discriminação racial. A seguir, ela e outras três negras contam como lidam com a própria negritude.

“Até hoje recebo três chibatadas por dia”
Luislinda Valois dos Santos, juíza

A primeira juíza negra do Brasil nasceu, segundo ela sentencia, no estado mais racista da federação: Bahia. Filha de pai motorneiro de bonde e mãe lavadeira, Luislinda foi batizada assim por causa de uma mania nordestina “É a combinação do nome do meu pai, Luís, com o da minha mãe, Lindaura.” Pelo o que ela conta, um casal criativo não apenas para batizar mais três filhos – Ladisvaldo, Lusvaldino e Lauzalina -, mas para dar sustento a uma família de “origem miserável”.

A luta de Luislinda começou cedo. Aos 5 anos, ela já lavava as roupas de uma criança recém-nascida para pagar seu curso de datilografia, antes mesmo de aprender a ler. Aos 9, na escola, um episódio, ela diz, marcou sua vida para sempre. Ao chegar à sala de aula com um conjunto de réguas de madeira – as de plástico eram muito caras -, o professor disse: “Se não tem dinheiro para comprar o material, vá aprender a fazer feijoada na casa dos brancos”. A menina saiu aos prantos, mas rebateu: “Um dia vou ser juíza e mandar te prender”.

Humilhada, traçou seu destino com as réguas que tinha e, em parte, a profecia se realizou. Boa datilógrafa, trabalhou como secretária nas docas de Salvador e no Departamento Nacional de Estradas de Rodagem para pagar o curso de Direito na Pontifícia Universidade Católica. Ela e Lígia Couto, procuradora da Bahia, eram as únicas negras da classe.

Aos 42 anos, Luislinda tornou-se juíza e foi uma das primeiras a dar ganho de causa a um processo motivado por discriminação racial. Em outubro de 1993, condenou um supermercado baiano a indenizar em R$ 184 mil a doméstica Aíla Maria de Jesus, acusada injustamente de furto por um segurança. “Não admito discriminação de nenhuma espécie. Pode ser branco, preto, índio, gay, cobra, papagaio.”

Só que não admitir não significa estar livre de discriminação. “Para saber o que é ser negra, fique 24 horas negra. Ainda hoje, recebo uma chibatada de manhã, outra ao meio-dia, e a da noite já fica pronta.” A mais recente, conta, aconteceu quando visitou um condomínio de luxo, interessada em comprar uma casa. “Na portaria, fui recebida como assaltante. Depois, os seguranças me seguiram o tempo todo. É desagradável, a gente sabe e sente que não é uma gentileza. É uma desconfiança. Mas comprei a casa.”

Sobrinha de mãe de santo e filha de Iansã, senhora dos ventos e das tempestades, Luislinda se orgulha do filho, Luis Fausto, promotor de Justiça, e da força que carrega. Por isso não abre mão do que é seu. “Sou mulher e negra. Mas sou competente e tenho meu trabalho fixado na retidão das letras da Constituição. O que Deus e meus orixás me deram, vou buscar.”

Será que vão me aceitar?
Cláudia Nunes, 27 anos, auditora sênior da Ernst & Young, em Madri

Desde menina, Cláudia Nunes queria “viver e não apenas sobreviver”. Filha de uma doméstica e de um pedreiro, estudou em escolas públicas do Jardim Amália, bairro periférico paulistano, sonhando em trabalhar de tailleur em lugares sofisticados, como via nos filmes da TV. “Não queria o destino das meninas do meu bairro, que engravidavam aos 15 anos, paravam de estudar, moravam com os pais e ainda apanhavam do marido.”

Só aos 14 anos, Cláudia saiu da periferia pela primeira vez. Acompanhada da mãe, foram de ônibus a uma unidade do CAMP (instituição que ensina informática, técnicas comerciais e inglês a jovens carentes). “O ônibus passou pela Avenida Paulista e eu vi aquelas executivas na rua. Na hora, decidi: ‘É assim que vou ser’.” Estudando e trabalhando no CAMP, entrou em Ciências Contábeis na Universidade Ibirapuera, à noite. “Acordava de madrugada, levava marmita, era puxado”, lembra.

A vaga de trainee na empresa de auditoria financeira Ernst & Young foi a porta de entrada para o mundo que sonhava. “É uma empresa com sede em 147 países, tem gente de todas as cores e nacionalidades”, diz a auditora, embora seja sempre uma das únicas negras do escritório. “Será que vão me aceitar?” é a pergunta que ecoa a cada processo de seleção ou promoção.

Há seis meses, Cláudia terminou seu MBA na Espanha e chefia uma equipe de oito auditores na filial de Madri, na Espanha. Pediu transferência para ficar perto do noivo espanhol, branco, auditor na mesma empresa. Ela acredita que, tanto lá como no Brasil, o preconceito é mais social que racial. “Se você se veste mal, não sabe falar ou se comportar, as pessoas não respeitam”, diz. Não é o caso dela, que não dispensa um visual atraente e cabelos absolutamente lisos. “Não adianta ir de dreads e roupa africana a uma entrevista que pede visual clássico. É questão de bom senso.” No dia a dia, ela garante que “bloqueia” qualquer discriminação. “Acredito que minha postura determina o comportamento dos outros. Se tenho uma desavença, prefiro pensar que foi por alguma atitude minha, e não pela cor da minha pele.”

Eu queria ter outro cabelo
Chris Oliveira, 35 anos, empresária

Cristina Oliveira nasceu em 25 de dezembro e todos os anos pedia ao Papai Noel o mesmo presente: “Quero um cabelo novo”. Em outras palavras, a menina queria um estilo liso e sedoso. Passou a infância sonhando com esse visual, enquanto criava penteados em uma boneca loira. Mais tarde, começou a trançar o próprio cabelo, o da irmã, das primas e das vizinhas, na tentativa de produzir um look diferente. Não só conseguiu o que queria, como passou a assumir sua negritude e seu cabelo cacheado. Melhor que isso: transformou o sonho do passado em um negócio. Há dez anos, ela comanda um salão de cabeleireiro onde só trabalham negras, dez ao todo.

Filha de um segurança branco e uma metalúrgica negra, Chris é a caçula de cinco irmãos, criados no Jardim Ângela, periferia da cidade de São Paulo. Estudou em escolas públicas e sonhava em ser estilista. Até chegou a pagar metade da bolsa da faculdade de moda na Universidade Paulista (UNIP), trabalhando como secretária e fazendo bicos de artesanato. Única negra na sala de aula, conquistava os professores pelas roupas que customizava. “Transformava calça em colete para compensar as grifes das colegas.”

Um dia, arrumou uma vaga de “estagiária da estagiária” no Projac, a central de produção da Rede Globo, e foi para o Rio com a esperança de mudar de vida. Lá, para ganhar “algum”, trançou o cabelo de um amigo atleta, que a indicou para fazer o cabelo do jogador de basquete Anderson Varejão. Topou na hora e teve uma baita sorte. Enquanto preparava o atleta, a equipe do Jornal Nacional apareceu para entrevistá-lo. “Anderson disse na entrevista que eu era a cabeleireira dele há anos. No dia seguinte, meu telefone não parou de tocar”, diz Chris. Ela, então, montou um estande em um evento afro em São Paulo e não parou mais. Fez até a cabeça das modelos de Alexandre Herchcovitch em uma das edições da SPFW. Tornou-se, sobretudo, uma consultora de imagem que defende a diversidade. “Se as brancas podem ser crespas, as negras podem ser lisas. Por que não?”

Negra fashion que é, ela ainda enfrenta situações claras de preconceito, como passar meia hora invisível em loja de grife, mesmo sendo a única cliente, ou ser intimidada na porta de um restaurante, por um segurança: “Tem certeza de que é aqui?”. “Nesse dia, me bateu um orgulho bobo. Primeiro, demorei para escolher o prato. Depois, pedi o mais caro e paguei em dinheiro, com notas altas.” Para mudar esse cenário de preconceito, Chris acredita nas políticas de inclusão, mas também em lutar individualmente contra o que chama de “síndrome da senzala”. “Faça parte, se coloque, não aceite o papel de vítima que o outro te coloca.”

Vivemos o mito da democracia racial
Adriana Barbosa, 34 anos, produtora cultural

Faz dez anos, Adriana Barbosa criou a Feira Preta, um dos maiores encontros da cultura black da América Latina. A proposta é reunir, em um só ponto de São Paulo, espetáculos de teatro, shows de música, literatura, moda e até gastronomia, tudo afro. Na época que bolou a feira, a cena negra fervia em São Paulo, embalada por bandas como Clube do Balanço. “Eu vestia terninho durante o dia para captar patrocínio, e boné à noite, para divulgar minha ideia nos bares”, ela se lembra. O evento, que começou com 40 estandes e cinco mil visitantes, espera para a 10a edição, em 17 e 18 de dezembro no Pavilhão Imigrantes, zona sul de São Paulo, cem expositores e cem mil pessoas.

Criada em um clã feminino, composto por bisavó, avó doméstica e mãe secretária, Adriana sofreu como única negra nas escolas públicas do bairro da Saúde, na zona sul da cidade. “Eu olhava para o lado e não encontrava pares.” Na adolescência, virou o tipo “tímida crônica”, mas logo descobriu a força da cultura negra (e a própria) e entrar em uma fase “xiita”. “Eu só ouvia música black e via filmes americanos, como Panteras Negras.” A autoimagem da moça começou a mudar quando seu pai, contador de uma grande rádio paulistana, conseguiu para ela uma vaga de recepcionista. Lá, ela conheceu muita gente do mundo musical e foi parar na Trama, gravadora de João Marcelo Bôscoli, como divulgadora de artistas. “Finalmente, encontrei minha turma e ainda por cima ganhava para isso.”

Dali, foi para a faculdade de gestão de eventos e, já produzindo a feira, cursou pós-graduação em Arte e Cultura na Escola de Comunicações e Artes da USP. Hoje, quando chega a uma reunião com patrocinadores, Adriana não se chateia quando alguém pergunta: “Sua chefe não veio?”. O pior tipo de racismo, segundo ela, é o institucional. Explica: “Aquele em que você vai a um hospital e sente que o médico evita te tocar”.

Com a Feira Preta, ela se orgulha de estar contribuindo para a disseminação da cultura negra. Acredita, contudo, que o grande passo seria a conscientização de que o racismo é real. “Vivemos o mito da democracia racial. O preconceito é abafado com panos quentes. Todo mundo diz que não tem, desde que o filho não se case com uma negra. Quando houver inclusão e esclarecimento em todas as esferas, aí sim teremos a verdadeira ‘consciência negra’.” A propósito: a Feira Preta deu origem ao Instituto Feira Preta, ONG instalada em um simpático sobrado na Vila Madalena, onde acontecem cursos, palestras e eventos sobre, é claro, negritude.


Comentários

2 respostas para ““Para saber o que é ser negra, fique 24 horas negra””

  1. ola boa tarde eu tenho uma amiga baiana que escreveu uma poesia para sra.luislinda e gostaria de divulgar. como devo fazer? desde já agradeço a atenção.

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