Breu total, nem lua, nem estrelas, nenhum sinal de luz elétrica. Somos cinco caminhando à noite, em silêncio, sobre um areião de afundar os passos: uma engenheira florestal, uma tratadora de zoológico, um veterinário, um mateiro e uma jornalista. Os dois homens levam espingardas com dardos sedativos; as três mulheres, câmeras fotográficas. Os cinco levam lanternas.
Os fachos de luz cruzam inquietos o ar escuro, iluminando a mata e as baías do Pantanal. De vez em quando, apagamos as lanternas e ficamos em total para ouvir melhor. Procuramos antas. Não as antas urbanas, claro, antas de verdade, o animal de nome científico Tapirus terrestris, que chega a pesar 300 kg.
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Quem decide o caminho é Patrícia Medici, 37 anos, 15 dedicados ao maior mamífero terrestre brasileiro, na tentativa de conhecer melhor o bicho, seu papel ecológico e os impactos das atividades humanas em sua sobrevivência. Patrícia é doutora em antas, literalmente: estudou Engenharia Florestal; terminou o mestrado em Ecologia, Conservação e Manejo de Vida Silvestre em 2001; e acaba de defender sua tese de doutorado sobre as antas da Mata Atlântica na Universidade de Kent, Inglaterra.
Ganhou diversos prêmios por seu entusiasmo, criatividade e dedicação integral ao estudo e à conservação das antas brasileiras como integrante da equipe científica do Instituto de Pesquisas Ecológicas – IPÊ. Em 2004, levou o Harry Messel Award for Conservation Leadership, outorgado pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) e, em 2008, a dose foi dupla: ganhou o Golden Ark na Holanda (acompanhado de um cheque de 50 mil euros) e o Whitley Award na Inglaterra, direto das mãos da Princesa Anne (junto com outro cheque de 30 mil libras).
Outra medida de quanto o trabalho de Patrícia tem interesse internacional é o apoio financeiro de 24 instituições diferentes da Europa e dos Estados Unidos, sendo 17 zoológicos. Sem contar as doações periódicas de 12 pessoas físicas e a vinda de estagiários voluntários para contribuir nos levantamentos de campo.
Lá no areião, portanto, todos sabem quem é a expert. E acatamos as decisões dela sem questionar, apesar de a chuva fina começar a molhar de leve e os mosquitos chegarem em nuvens para disputar com os micuins nosso sangue impregnado de repelente. Achamos rastros. Checamos as armadilhas fotográficas, montadas ali há alguns dias. O aparelho tem um sensor de movimentos e dispara – com flash e tudo – quando um animal passa em frente. Boi, cavalo, boi, boi, cavalo, cavalo… Apenas a última foto tem o brilho de um olhar de anta!
Pronto, agora temos a certeza de que elas estão por perto. Mesmo assim, não vemos nem sombra. Também não ouvimos nada. E antas andando no mato não são nada discretas… Paciência, não foi dessa vez. Antas são boas de faro e, à menor mudança de cheiro, alteram suas rotas para evitar desconhecidos. Precisamos surpreendê-las e nem sempre é possível…
Deixamos a tentativa de avistagem para o dia seguinte, a fome já dá sinais de alarme e precisamos dormir cedo para acordar antes do sol. Vamos visitar as cinco armadilhas de espera, abertas em diferentes pontos da fazenda Baía das Pedras, em Nhecolândia, Pantanal do Mato Grosso do Sul. O objetivo é capturar antas para tirar medidas corporais; estimar idade pelos dentes e patas; coletar amostras de sangue, tecido, urina, pelos e carrapatos para estudos de saúde e genética; depois, colocar uma coleira com radiotransmissor para ver por onde ela vai andar, seguindo os sinais de rádio com uma antena.
As armadilhas são “caseiras”, desenvolvidas pela própria equipe: um cercadinho com uma porta móvel que cai quando a anta pisa em uma ripa. Quase como uma arapuca de pegar passarinho, tamanho GG. A “isca” é sal e a abertura da porta é calculada para deixar de fora o gado, veados e cervos. Só não consegue evitar os porcos do mato “bicões”, eternos candidatos a uma lambida no sal alheio…
Em nossa semana de reportagem, duas antas caíram na armadilha, ambos machos, um adulto e um jovem. E conseguimos avistar mais um belo exemplar ao entardecer. Juntas, todas as informações fornecidas pelas amostras colhidas, fotos, registros de pegadas e dados de telemetria compõem um quadro da situação da anta no Pantanal brasileiro e da forma como ela usa o espaço e a vegetação. E permitem sugerir ações de conservação e políticas de boa convivência entre fazendeiros e animais silvestres.
Ah! Tem mais uma fonte de informações: as fezes das antas. Patrícia não pode ver um montinho fresco sem parar para coletar um pouquinho. As fezes revelam a dieta de cada animal, alguma coisa de sua saúde e até os graus de parentesco entre as várias antas habitués da mesma “latrina”, via análise de DNA. Pois é, isso mesmo, uma análise semelhante à investigação de paternidade…
O maior problema de Patrícia, no momento, é encontrar um estudante de pós-graduação disposto a fazer a interpretação dos – com o perdão da má palavra – dados da merda. Ela já acumulou uma geladeira inteira de fezes de anta em sua casa, em Campo Grande, todas conservadas em saquinhos plásticos, devidamente geocodificadas e etiquetadas com data e local de coleta. Mas ainda falta um candidato para se debruçar sobre elas.
Por sorte, o marido da Patrícia das Antas é compreensivo. Mais do que compreensivo: o francês Arnaud Desbiez é biólogo, pesquisador da Royal Zoological Society of Scotland e realizou um estudo com animais domésticos e silvestres – bois, porcos, ovelhas, veados, catetos, queixadas e capivaras – do Pantanal, com base na composição das fezes. Ao avaliar a presença de plantas consumidas pelos animais domésticos e silvestres, ele identificou preferências e necessidades nutricionais, sugerindo opções de manejo das terras, de modo a beneficiar a todos sem depauperar os ecossistemas.
“Além de ser uma boa indicadora ambiental – lugar que tem anta, tem matas em bom estado -, a anta é uma jardineira da floresta”, defende Patrícia. “Ao se alimentar, ela ‘poda’ ramos e brotos de árvores e plantas, contribuindo para o equilíbrio entre as espécies da flora.” A anta também costuma engolir frutos grandes com caroços inteiros, depois sai ‘plantando’ e andando pelas matas, contribuindo para a renovação natural da vegetação. Como acontece com a maioria dos animais dispersores, as sementes germinam melhor depois de passar por seu trato digestivo. E já caem no solo adubadas!
Quando não está em campo – procurando, medindo, marcando ou monitorando nossas antas -, Patrícia Medici está diante do computador, cuidando das antas dos outros. Há 10 anos, ela é presidente do Grupo de Especialistas em Antas da União Internacional para a Conservação da Natureza (TSG/IUCN, na sigla em inglês). E, como tal, organiza simpósios internacionais, coordena discussões on line e põe “muita lenha” nas pesquisas com as outras três espécies conhecidas: a anta-de-Baird (América Central), a anta-da-montanha (Andes) e a anta-malaia (Sudeste Asiático). Ela só gostaria de ter a participação de mais pesquisadores para dar conta de uma missão autoimposta: repetir o estudo feito no Pontal do Paranapanema em todos os biomas do Brasil e colocar em prática o Plano de Ação para a Conservação da Anta Brasileira. Se depender da energia que ela põe em tudo que faz, não faltarão interessados.
Vamos de GPS ou de ZéPS? | |||
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ZéPS é melhor. Além de hábil navegador em estradas de asfalto, areia ou terra, José Maria de Aragão nunca perde o rumo nas trilhas, no meio do mato ou em capoeiras emaranhadas de cipós. Mesmo se for para seguir uma anta com água pelo peito, pela lama de um brejo ou rasgando um caraguatá (planta cheia de espinhos).Zezinho, como também é chamado, é assistente de campo de Patrícia Medici há 15 anos, desde o primeiro estudo dela sobre os micos-leões-pretos. Nascido em Teodoro Sampaio, no extremo oeste de São Paulo, cresceu com um pé no mato, logo virou especialista em armadilhas, usadas para caçar tudo que se pudesse por na panela. Só depois de grande, ao trabalhar no Parque Estadual Morro do Diabo, veio a perceber a importância de cada espécie para o equilíbrio da mata e a necessidade de preservar tanto as matinhas de assentamentos e de fazendas, como a floresta do parque (que ele só conhecia de fora, nunca havia entrado).
Passou a usar sua habilidade em construir armadilhas para ajudar pesquisadores a capturar animais para estudo, e seu notável senso de direção para apontar aos doutores o caminho certo. Trabalhou no salvamento de animais silvestres durante o enchimento de reservatórios do Pontal; acompanhou o diretor científico do IPÊ, Cláudio Pádua, em sua pesquisa com os micos-leões-pretos, e eventualmente sai com outros pesquisadores, nos intervalos das expedições atrás de antas. Como um disputado coringa, José Maria já saiu atrás de onças, jaguatiricas, macacos, cuícas, gambás, catetos e queixadas. Já prestou serviços bem estranhos em nome da Ciência, como catar pernilongos vivos usando a si mesmo como isca ou andar pelo mato arrastando um feltro branco para |
capturar carrapatos. Com frequência, a necessidade o faz adaptar velhas práticas de moleque a novos propósitos, como subir em árvores altas para coletar flores ou derrubar frutos ainda mais altos na base do estilingue (bodoque). “Mas prefiro trabalhar com uma pessoa só, é mais fácil se organizar, cada um já sabe o que tem de fazer”, diz. “Além disso, no IPÊ não tem isso de chefe: todo mundo é igual e dá seu palpite sobre a melhor maneira de fazer as coisas.”Patrícia também prefere trazer o Zezinho do Pontal para o Pantanal, todas as vezes que vai a campo, a contratar um mateiro local. Tamanho nível de confiança e entendimento profissional faz muita diferença quando se enfrenta uma situação difícil no meio do mato, como a vez em que os dois estavam em uma longa espera, tentando observar antas, e apareceu uma onça-pintada, caminhando direto na direção deles. A impressão é que ela não havia percebido os dois e só correu (felizmente!) quando ambos se levantaram do esconderijo, batendo palmas e fazendo barulho. Fora do expediente, Zezinho apronta, brinca e conta muita histórias. Mas quando está em campo e é preciso trabalhar em silêncio, não tem distração. As decisões são tomadas em poucas palavras e em troca de olhares rápidos com Patrícia, cada um sabendo exatamente como o outro vai reagir. Quando a anta é capturada e cai, sedada, o trabalho de coleta é eficiente, sincronizado e rápido, para evitar estresse e devolver o animal ao seu ambiente o quanto antes.
Na hora de rastrear as antas com o rádio, não tem limite de horário, nem reclamação: enquanto todos os pontos não são plotados no mapa, ninguém volta à base. E aí entra novamente em ação o ZéPS. Além de saber se localizar, José Maria parece conhecer o pensamento de cada anta e aponta sempre a melhor direção para encontrar os sinais emitidos pelo transmissor. |
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