Ao terminar minha leitura de jornais e revistas neste sábado, lembrei-me de um velho amigo que era muito engraçado. Ele criou um personagem chamado Paulo Francis, que representou com muito talento e graça até o final da vida.
Mas engana-se quem pensa que Paulo Francis morreu. O personagem que ele criou está mais vivo do que nunca. Nem nos seus melhores momentos ele teve tanto espaço na imprensa brasileira. Cada publicação tem hoje em seus quadros de colunistas pelo menos uma contrafação, quer dizer, alguém que pretende ser como ele foi, criador de um estilo desbocado, debochado e sempre polêmico.
“Eu sei que você esteve em Nova York e não me ligou!”, cobrou-me certa vez na redação da Folha, falando alto para todo mundo ouvir. Francis parecia estar sempre num palco, mas estes rompantes só tinham graça com ele. Qualquer outro fazendo aquele papel ficava ridículo.
No final dos anos 70 do século passado, nos encontramos em Bonn, a antiga capital da então Alemanha Ocidental, para fazer a cobertura de uma reunião de cúpula, que naquele tempo acho que era só G-8.
William Waack, na época correspondente do Estadão, e eu, do Jornal do Brasil, ficamos assustados quando vimos o Francis entregar para a senhora do telex uma enorme matéria sobre a reunião que só começaria no dia seguinte.
Ele tinha acabado de chegar à cidade, não havia ainda ninguém importante para entrevistar e ficamos preocupados em levar um furo de alguém que veio de Nova York para a cidade em nós éramos correspondentes. Com aquela cara de quem nos diz “como vocês são bobinhos”, deu uma gargalhada e nos ensinou:
“Vocês acham que eu preciso entrevistar alguém aqui para saber o que vai acontecer? Já trouxe minha matéria pronta de Nova York ha, ha, ha”
Bastou apenas colocar a procedência Bonn na abertura da matéria e todo mundo iria pensar que escreveu a matéria na Alemanha. Francis transitava entre os fatos e a ficção com facilidade, como passou do teatro para o jornalismo, sem escalas.
Uma noite, na minha casa, ele e o William resolveram discutir Marx, aquele mesmo, o Karl. Cada vez mais empolgados, um mais cheio de razão do que o outro, a certa altura o hoje apresentador do Jornal da Globo perguntou a Francis:
– Você leu “O Capital” em qual tradução?
Não me lembro o que Francis respondeu, mas William deu-lhe um xeque mate no queixo:
– Pois é, o problema é este Eu li no original
Foi a única vez que vi Francis recolher os flaps durante uma discussão. Hermano Henning, que era correspondente da TV Globo e eu demos boas risadas, mesmo sem entender nada do que eles estavam falando.
Com o tempo, Paulo Francis foi ficando cada vez mais Paulo Francis, esculhambando com tudo o que hoje chamam de politicamente correto – um franco atirador que criou seu próprio nicho de mercado.
A diferença entre ele e seus muitos clones na imprensa atual é que Francis foi caminhando para a direita com o tempo e seu desencanto cada vez maior com o mundo, enquanto este pessoal de hoje já começou onde ele terminou.
Lei Antifumo
Um dos melhores repórteres que conheço é o mineiro Ricardo Amaral, que já rodou por quase todas as redações e hoje está na sucursal da revista Época, em Brasília. Ele me enviou a mensagem que transcrevo abaixo, com seu artigo sobre a Lei Antifumo que a revista publica esta semana. Vale a pena ler. É mais uma boa contribuição ao debate sobre este assunto bastante polêmico.
Xará,
Cheguei atrasado ao debate sobre a lei antifumante do Serra, mas acho que tem aí uns argumentos novos, que interessam a fumantes e não fumantes.
O que me preocupa é o ovo do facismo por trás dessa cortina de fumaça. Vai aí o link da coluna na Época, se você quiser passar para os leitores do Blog, e também o texto em letras grandes pra gente que já fuma há muito tempo.
Um abraço do Ricardo Amaral
Por que não proíbem logo fabricar cigarros?
A lei antifumo de Serra não combate o cigarro: ela estigmatiza o fumante e envenena a sociedade
Ricardo Amaral
É difícil apontar o pior defeito da lei antifumo que o governador José Serra fez aprovar na Assembleia Legislativa de São Paulo. Ela consegue ser iníqua, demagógica e ineficaz ao mesmo tempo. Serve pouco ou nada para reduzir os males ou combater o vício do tabagismo, mas contribui, e muito, para fomentar uma histeria discriminatória que anda envenenando as relações sociais. Não é uma lei contra o cigarro. É só mais um instrumento, com o peso do Estado, para estigmatizar o fumante.
Vou logo avisando: fumo, desde os 15 anos de idade, uma quantidade razoável de cigarros por dia. Não menos do que 15, às vezes até 30 ou mais, depende. Ao longo dos anos, prejudiquei a saúde e o bem-estar de quem conviveu comigo em salas, gabinetes, redações – e, pasmem as novas gerações, também em cinemas, teatros, ônibus e aviões (em elevadores, só na Europa). O tempo do tabagismo selvagem e estúpido passou. Meu passivo hoje é com minha própria saúde e com a estabilidade emocional dos meus filhos, minha mulher e de todos que gostam de mim, apesar do cigarro. Não são poucos motivos para parar de fumar. Posso dispensar o concurso do governador e dos senhores deputados.
Se o leitor continuar disposto a considerar os argumentos de um fumante, mesmo suspeito de parcialidade, vamos a eles. Basta um teste simples para saber se uma iniciativa é realmente eficaz para reduzir o consumo de cigarros: conferir a reação dos fabricantes. A Lei Serra nem sequer fez cócegas na indústria do fumo. Os sindicatos dos hoteleiros e dos donos de bares e restaurantes é que anunciam ações judiciais contra a nova lei. Devem ganhar, mas vão pagar o desgaste de uma ação considerada politicamente incorreta. A indústria do cigarro só se mexe quando é atingida no cofre, pela elevação de impostos, ou no balcão, pelo controle dos pontos de venda.
Há um detalhado estudo sobre a relação entre impostos, preços e consumo de cigarros feito pelo economista Roberto Iglesias para a Aliança de Controle do Tabagismo no endereço http://actbr.org.br/uploads/conteudo/200_Precos-impostos-ACTBR.pdf. Ele demonstra como a indústria brasileira viveu os últimos dez anos num paraíso fiscal de tabacaria, sob o pretexto de combater o contrabando, e como essa política aumentou o consumo interno. Entre 1998 e 2007, o peso relativo do IPI sobre os cigarros caiu de 36,3% para 20,5%, enquanto o número de maços vendidos no país passou de 4,8 bilhões para 5,5 bilhões. Aumentar imposto e preço é também a forma mais eficiente de reduzir a adesão de jovens ao vício.
Nada disso é novidade para o governador José Serra. Ele enfrentou a indústria do fumo e lhe impôs grandes derrotas quando foi ministro da Saúde. Proibiu a propaganda de cigarros na televisão e nos carros de Fórmula 1, obrigou os fabricantes a estampar aquelas fotografias repugnantes nas embalagens, colocou o Brasil na vanguarda da prevenção contra os males do fumo. Trabalhei na equipe do Ministério da Saúde em 1999 e sou testemunha do antitabagismo sincero de Serra. E me recordo de ter convivido com um ministro tolerante. Serra tinha até cinzeiros em casa.
A lei pode estar inspirada em boas intenções, mas o resultado é uma violência – não só contra o fumante. Ela começa pela abolição do livre-arbítrio. A pretexto de garantir o direito da maioria, ela proíbe o exercício da racionalidade. O cidadão é considerado incapaz de decidir sobre o que pode ou não pode fazer em espaços privados. Provavelmente é essa lógica autoritária que define o erro seguinte da lei: o desobediente não sofre sanção alguma, no máximo será removido por força policial. O fumante torna-se inimputável, como os índios e os loucos. Por fim, a aberração mais perigosa de todas: as multas previstas na lei recaem sobre o proprietário, responsável ou preposto que tolerar o fumo em locais de uso coletivo. É a terceirização da pena pelo crime que outra pessoa cometeu.
A lei é perniciosa na forma e perversa nas consequências porque estimula a delação. Ela envenena a convivência, a pretexto de limpar o ambiente. Se o Estado quer mesmo combater o vício, por que não proíbe logo a produção de cigarros e dispensa uma arrecadação anual de R$ 6 bilhões em impostos?
Não sei aonde o governador José Serra quer chegar apagando cigarros pelas ruas de São Paulo. Se ele olhar em volta, verá que o ex-presidente Fernando Henrique corre o mundo defendendo a legalização da maconha.
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