Paulo Mendes da Rocha, um arquiteto cidadão

Não foi diante de um belo edifício, monumento ou casa por ele projetados que desci do carro para a entrevista com Paulo Mendes da Rocha, hoje um mito na arquitetura brasileira. E por que não dizer um dos grandes arquitetos do mundo, já que dois dos maiores prêmios internacionais de arquitetura, o Mies van der Rohe e o Pritzker, foram a ele conferidos?

O local marcado foi em seu escritório, numa rua pequena e no quinto andar de um prédio clamando por ser restaurado, o do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-SP), um projeto de Rino Levi nas cercanias da Praça da República, região desconsiderada pelos que partiram para os lados ditos mais nobres da cidade de São Paulo. A porta estava aberta – Dulcinéia, a secretária, guardiã e protetora, faltara devido a um contratempo. Paulo Mendes da Rocha estava só. Parecia confortável. Mais tarde iria ouvir dele que “a dimensão artística, ou a obra de arte, só existe na absoluta solidão”.
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Primeiro gostou que eu não estivesse munida de gravador. “Bom, assim vamos poder de fato conversar.” Vi que brincava, ou melhor, seus dedos ágeis e hábeis completavam a maquetinha de um navio. Contou que acabara de ser levada dali a maquete grande, a de um ganhado de mar no Espírito Santo, um projeto em gestação para a entrada do Porto de Vitória. O pequeno navio era parte dessa possível futura paisagem. “A arquitetura não é mais que isto: o que podemos fazer com a mão e que depois vai ganhar a dimensão de coisa.”

Muitas maquetes espalhadas. As de madeira, feitas por ele mesmo, frágeis, delicadas e cobertas por um acrílico transparente. As de chapa de ferro, verdadeiras esculturas que já compuseram uma sala em sua homenagem numa Bienal de Arte de São Paulo, foram-lhe oferecidas por Otávio, já falecido, dono de uma metalúrgica e admirador.

Debruçada sobre uma delas, passo pela primeira vez a realmente entender o projeto do Museu Brasileiro da Escultura (MuBE), localizado no sofisticado bairro paulistano dos Jardins, e o que significa uma obra estar aparentemente não-estando e o que é fazer alguma coisa a partir apenas da percepção do que não deve ser feito.

“Como levantar ali, no meio de tantas edificações sem sentido, mais uma?”

Tendo entendido que a finalidade do museu era expor esculturas e concluindo que a área externa seria o hábitat necessário àquelas maiores e destinadas ao espaço aberto, Paulo Mendes da Rocha aproveitou o talvez imperceptível declive de quatro metros entre um lado e outro do terreno de 7 mil metros quadrados para permitir miradas sob diferentes perspectivas e espaços internos que, rebaixados, não se sobrepusessem ao terreno. Assim, a parte ao ar livre deixava de ser, como de costume, uma sobra do terreno ou um daqueles pátios internos que carregam a opressiva imagem colonial. Uma retilínea e simples marquise no meio do concreto é o que faz o gesto, a união entre o dentro e o fora, e serve de parâmetro ao olhar do visitante.

Preferência pelo concreto
O concreto é seu material por excelência. Seria a nova pedra das velhas catedrais. Gostou quando viu o concreto ser chamado nos Estados Unidos de “the liquid stone”, ou pedra líquida.

“É o que vai traduzir a realidade atual dos nossos desejos, o traço que fazemos no papel. Trabalhamos com a memória das catedrais, mas com técnicas novas, cálculos matemáticos e máquinas. Por que usar a pedra se podemos usar o concreto? É um material como qualquer outro e pode ser revestido ou pintado se quisermos.”

Embora possa preferir deixá-lo natural, acha bobagem essa coisa de o concreto ter de ser aparente. Não vê sentido em apenas nos preocuparmos em proteger as árvores e a madeira da extinção:

“Por que quebrarmos montanhas de pedras para colocar nas construções? Não seria a mesma coisa? Nada guardado no freezer, nada antes disponível há de fazer parte de meus projetos”.

Será com a geometria estrutural que Paulo Mendes da Rocha conseguirá o que lhe parece ser uma adequada “disposição espacial da coisa em questão”. Não vê falta de emoção ou estética na obra de puro concreto. Para ele existe, sim, uma dimensão lírica da arquitetura:

“A arquitetura é na verdade uma técnica associada à emoção, à execução de uma coisa, entre a imagem da coisa feita e dessa coisa feita em enorme dimensão. É a recepção da coisa no espaço. A necessidade social é uma das maiores dimensões estéticas do futuro de uma cidade. Vivemos o atual, o inexorável, a continuidade do moderno, a possibilidade do espanto, de nos surpreendermos”.

Saudosismo não é com ele. Sim para a memória e para as lições do passado colonial, mas de modo sempre crítico, pensado. “Não podemos ter um apego saudosista a um passado que nem vivemos.” Para Paulo Mendes da Rocha, tudo é questão de estrutura. E estrutura é forma. Mesmo a poesia, diz, citando João Cabral de Melo Neto e seu poema “Uma Faca só Lâmina”, é pura construção.

“Para um poeta, as palavras são como as pedras de uma catedral – é o que vai estruturar o poema. Mexer numa delas pode desarticular o todo, fazer ruir. E a arquitetura é esse discurso, leva a uma conversa, a Shakespeare, a Dante e a tantos outros que tanto fizeram com apenas 26 letras.” Paulo Mendes da Rocha tem sempre em mente que o hábitat humano é a cidade e não a natureza: “A gente vem, sim, do macaco, mas você há de convir que é melhor ir ao freezer pegar a comida do que buscá-la na árvore. Nosso ascendente também não dispunha de bibliotecas”. Uma cidade, para ele, é essencialmente moradias: “Uma cidade não é só museus, teatros, locais públicos. O que vai desencadear a ação de construir uma cidade são as necessidades e os desejos humanos”.

Apesar dos pais baianos – um descendente de portugueses, outro, de italianos -, e ele próprio nascido em Vitória, no Espírito Santo, em 1928, sente-se inexoravelmente brasileiro. Sua cidade é São Paulo e não viveria em nenhuma outra. Diz ser a cidade ideal apesar de “monumental, contraditória e com aspectos de desastre”. Sente-se bem morando com a mulher Helene Afanasieff, russa, arquiteta e designer de jóias, num apartamento na Avenida Angélica.

“Se a cidade se degenerou é porque já foi boa. O que é ruim não degenera. Não devemos é deixar que isso aconteça. Essa questão agora da revitalização das áreas centrais é complexa. Pode ser um instrumental de intrigas, pode mesmo desmoralizar um arquiteto. A cidade já deveria ser percebida, em seu todo, como um centro cultural.”

Vê toda e qualquer construção como pertencente à cidade. Além de estádios, museus, capelas, sedes de clubes e edifícios, faz também casas, mas sempre com esse conceito claro e bem presente. Quem está pagando a casa, o morador, estará ali apenas de passagem. Obviamente que Paulo Mendes da Rocha vai levar em conta o que chama de “demandado”, ou seja, certas exigências do cliente, mas arremata: “O que mais é preciso numa casa do que quarto, sala, banheiro e cozinha?”. Daí, a seu ver, embora tenha construído e vivido por muitos anos na bela e tão fotografada casa projetada por ele no Butantã, hoje habitada pelo filho Lito, acha que mais e mais, nas grandes cidades, temos de assumir que o ideal seria morar em edifícios.

“A grande virtude passa a ser o endereço, a acessibilidade à escola, aos serviços. Ninguém vai se preocupar, achar que é melhor ou pior, se você diz que mora em Ipanema.”

Da dona de uma casa feita por ele nos Jardins, ouço só elogios à inteligência e ao bom senso do arquiteto. Posso perceber in loco como é o modus vivendi de uma família numa casa assinada por Paulo Mendes da Rocha que já foi tema de matéria do The New York Times. De fato, em sua estrutura nada é de pedra ou madeira. Há colunas de concreto pintadas de branco, o chão é de ladrilho hidráulico em tons claros de azul e branco e se estende por todo o andar social desde o salão até a cozinha bem planejada e confortável. Apesar de muito ampla e de acolher em grandes espaços sob pilotis muitas instalações de artistas, a casa pede que boa parte da coleção do jovem casal permaneça em depósito. Acolherá, no entanto, com generosidade e todo o conforto, qualquer pessoa em cadeira de rodas ou com algum problema físico. Degrau nenhum será tropeço à circulação. Existem apenas nas escadas. Um elevador foi bem pensado, assim como estudada a largura das portas. Fácil agora acreditar que os moradores de fato ouviram do arquiteto que esta casa, mais do que de seus donos, pertence à cidade de São Paulo.

Embora não deseje o que possa acelerá-la, acredita na passagem da natureza, essa que é totalmente objetiva e tanto nos surpreende com suas verdades: “Nosso pequeno planeta não é tão estável assim. Certas saudades são exageradas. Ser contra o progresso é bobagem. O problema é a política que rege esse progresso, se é aquela das terríveis leis especulativas do mercado. Urbanismo é pura política”. À pergunta que lhe faço sobre a arquitetura neoclássica tão ao gosto do paulistano, diz não poder explicar, a não ser como mais uma aberração promovida pelo dito mercado.

Cátedra cassada
Livros, sim, são necessários e fundamentais na vida deste arquiteto, formado em 1954 pela Mackenzie e que, ao lado de João Batista Villanova Artigas, militou na Escola Paulista de Arquitetura, sempre dando ênfase ao aspecto social e humanitário da arquitetura. Ali influiu sobre várias gerações de artistas e arquitetos, teve sua cátedra cassada pela ditadura em 1969, foi reintegrado em 1980 e lecionou até a aposentadoria em 1999. Lê o que pode – a crítica, os filósofos da Escola de Frankfurt, Michel Foucault. Lê e se vira bem em inglês, francês, italiano e espanhol. Diante da história do século 20, prefere, se necessário for, ser rotulado de esquerda a de direita. Mas que não se confunda com a esquerda oportunista e destituída de ética. Acha que todos sabemos muito mais do que deixamos parecer. Come qualquer coisa. Viajando, prefere a comida do lugar, pois há a chance de que seja maravilhosa. Tem cinco filhos, Pedro, Paulo, Renata e Joana, do primeiro casamento, e Nadiejda, do segundo.

Além da palavra “coisa”, que para Paulo Mendes da Rocha resume muito bem o construído, o que virou estrutura e passou a existir no espaço, ele parece gostar também muito da palavra “trem”. Levanta, acende outro cigarro e traz o dicionário. Trem não é só aquele que anda, é transporte e é de ferro, trem é tudo o que a gente carrega e acumula. Trem pode ser treco, apetrecho, muita coisa que temos de jogar fora, mas às vezes não jogamos, o que enche a casa ou a gaveta: “São trens arrumados do nosso jeito”. É como ele responde à pergunta sobre como decorou a própria casa. E conta que nas paredes há um único quadro, uma colagem do amigo Flávio Motta. A palavra “decoração” não faz parte de seu vocabulário. Acha que as estantes e os armários já pensados no projeto é o que em grande parte vai conferir ao interior de uma casa a disposição espacial destinada ao seu uso humano e doméstico. Em 1956, chegou a desenhar móveis e cadeiras. Hoje alguns desses modelos são produzidos e vendidos em Paris e Nova York.

Paulo Mendes da Rocha já fez também incursões pela cenografia. Há alguns anos, a convite de Bia Lessa e Emilio Kalil, aceitou participar dos esforços de encenar Suor Angélica no Teatro Municipal, a história da moça que engravida e é escondida num convento pela família depois do parto. Aproveitando a mão-de-obra de uma empresa então ocupada na restauração do teatro, e utilizando o mecanismo que faz descer e subir o piano no palco, criou um cenário rebaixado que, como as paredes de pedra dos claustros, nos impedem de ver mas não de supor o que se passa ali dentro. Assim, a cena das freirinhas brincando no recreio era sugerida pelas bolinhas que apareciam voando de um lado a outro no cenário. Na parede do escritório, um pequeno cartaz é a lembrança que ficou dessa prazerosa experiência teatral.

Sobre Niemeyer, diz que as curvas de sua arquitetura são menos as da mulher amada e mais o resultado de seu grande talento e capacidade de construir a forma: “Ele trabalha com absoluto rigor estrutural. Tem a incrível capacidade de impregnar suas construções com uma dimensão lírica e poética sempre surpreendente. Você vai descobrir depois, no que ele faz, o inexorável da construção, o extraordinário de ter feito aquilo ficar em pé”.

Com uma folha de papel, tenta demonstrar como algo pode, ou não, se manter de pé. Aprendo que, na estrita construção das geometrias estruturais, uma figura extraordinária é aquela do círculo, que, mesmo submetida a esforços uniformemente distribuídos, vai manter a sua suprema virtude, que é ser indeformável.

Prêmio inesperado
Apesar de ser obrigado a viajar seguidamente ao exterior para supervisionar projetos, como o Plano Diretor na Universidade de Vigo na Galícia, dar palestras ou participar de seminários, Paulo Mendes da Rocha prefere o conforto da rotina diária. A notícia do Pritzker Prize conquistado em 2006, que, exceto por Oscar Niemeyer em 1998, nenhum outro brasileiro ganhou, caiu-lhe no colo de surpresa: “Foi totalmente inesperado. Você não se candidata, não está preparado e de repente se vê desalojado de seus hábitos. Tem de encarar como uma questão política, tem de ao menos passar a pensar de onde vem o interesse do outro. Impossível não se perguntar por que diabos me deram esse prêmio. Num primeiro momento não é nada confortável. Você está quieto no seu canto e se diz: E agora? Tem de pensar na viagem a Istambul para a cerimônia de entrega do prêmio, no protocolo, no smoking, no jantar, no discurso. De repente você se vê cheio de responsabilidades”. Se o telefone tocasse, sem Dulcinéia, o jeito seria atender. Em nada um Dom Quixote em apuros. Aproveitaria para acender outro cigarro. Depois de três horas de conversa, fez-se a minha de ir embora, deixá-lo descansar. Saio tendo descoberto que Paulo Mendes da Rocha é um homem de muito bom humor, de doçura, que sabe rir de si mesmo. Acha divertida a palavra “cobogó”, versão em concreto do muxarabi árabe. Descubro também que anda de metrô. Que está muito bem ali entre aquelas paredes amareladas, manchadas, quem sabe também do cigarro que nunca deixou de ser vício, entre arquivos velhos e estantes com pastas e papéis, fios enroscados pelo chão, maquetes e gavetas cheias de trens ou apetrechos. Paulo Mendes da Rocha não parece se importar com o barulho que vem da rua. Conforme o trabalho em curso, vai fazer parcerias com diferentes escritórios. Sua cadeira de trabalho não tem rodinhas. Percebe-se que não gasta tempo com o irrelevante ou com o que assim lhe pareça, que está feliz ali, com vista para o Copan, próximo ao Edifício Itália, “região que tem serviços, pelo menos uns 50 restaurantes e que muita gente estupidamente abandona, negando assim a cidade”. Não se vê como mito ou celebridade. Diz que para isso não teria paradigma. Ego? Desconversa: “Os egos estão sendo jogados fora, pelo ralo. O que hoje anda faltando é respeito pelo ego. O que vemos são egos se defendendo o tempo todo do mau comportamento”.


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