Pedagogia de emergência

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Quênia, 2012 – Em um campo de refugiados que abrigava 80 mil pessoas, crianças da Somália e do Sudão do Sul brincam de cabo de guerra

Parece inimaginável existir lugares em que a vida acontece de forma invertida, de ponta-cabeça. Lugares onde casas ruíram, meninos prometem não matar mais, pessoas assistem à morte de outras. Lugares cheios de gente sem trabalho e com comida controlada. Os remédios também são poucos. Onde o cheiro do ar é tão fétido que comprime as palavras. Em muitos deles, o que era para ser provisório às vezes dura anos, décadas. Vira permanente.

Essa espécie de mundo paralelo, que insistimos em deixar à distância, tem sido morada recorrente do paulistano Reinaldo Nascimento. Terapeuta social e educador físico de 38 anos, ele trabalha há cinco como voluntário, em regiões dizimadas às vezes por bombardeios pesados, às vezes por catástrofes naturais. Reinaldo é integrante da associação alemã Freunde der Erziehungskunst Rudolf Steiner (Amigos da Arte de Educar de Rudolf Steiner), que em pouco mais de uma década reuniu cerca de 400 voluntários do mundo todo para atuarem em áreas envolvidas em crises graves, aplicando a chamada Pedagogia de Emergência, um método fundamentado nos alicerces da pedagogia Waldorf – baseada na filosofia do austríaco Rodolf Steiner, a abordagem procura integrar de maneira holística o desenvolvimento físico, espiritual, intelectual e artístico dos participantes.

Reinaldo explica: “É uma técnica desenvolvida pelo pedagogo alemão Bernd Ruf, que criou a associação em 2006. Somos educadores, terapeutas, médicos, que entram em contato com uma população que, quase sempre, perdeu tudo, passou por medos enormes. As crianças e os adolescentes ficam desnorteados, sem rumo. Os adultos também, claro. Nosso trabalho é focado em todos. As crianças e os jovens são convidados a participar de brincadeiras de roda e atividades de arte, como música, desenho, teatro e dança. Uma maneira lúdica de superar traumas, readquirir a confiança no outro e ter a possibilidade de voltar a sonhar, transformando o trauma em uma via para o crescimento individual. Para os adultos, principalmente educadores e pais, ensinamos a nossa metodologia para que o trabalho com os mais novos tenha continuidade”.

A mais recente parada de Reinaldo fora de sua casa, no Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, foi em Zahko, a 80 quilômetros de Mossul, no Iraque, a terceira maior cidade do país, depois de Bagdá e Basra, que foi capturada pelo Estado Islâmico em 2014. Mossul é a peça mais importante no califado que o grupo terrorista tenta implantar com a ocupação e a consequente eliminação de fronteiras de parte da Síria e do próprio Iraque. Ele estava com outros oito voluntários, o único brasileiro.

Durante duas semanas, Reinaldo mandou, com exclusividade para a Brasileiros, notícias dos campos de refugiados em Zahko – leia o diário da Pedagogia de Emergência aqui. “Em dois anos, estive quatro vezes no Iraque. Na primeira, ficamos em Erbil, a capital da região do Curdistão iraquiano, que concentra grande parte do petróleo. Bombas foram lançadas a poucos metros de onde estávamos. Temos o poder de reunir duas mil pessoas em um só lugar e ficamos com medo de nos tornar um alvo fácil”, conta.

Depois esteve em Dohuk e Zahko. Foi lá que conheceu, em 2015, uma menina calada, de olhar desconfiado, com medo de fazer contato, arredia. Estava em choque depois de ter testemunhado a morte do pai, decapitado pelo Estado Islâmico. “Ela escapou com a mãe do grupo terrorista. Após várias insistidas, conseguimos fazer com que participasse de nossas ações. Eu não a encontrei nesta temporada, mas soube que ela está bem.”

A cada viagem para o Iraque, uma impressão nova. “No início, as pessoas sofriam muito, mas parecia que a situação seria controlada. Em 2014, o Estado Islâmico não era muito conhecido, mas em pouco tempo invadiu cidades, amedrontando as pessoas, usando-as como escudo. Desta vez, o governo não falou nada, as informações eram confusas. Na verdade, ninguém sabe o que vai ser do futuro.”

Quem é esse cara?

Com tranças afro salientes enfeitadas com lã azul, Reinaldo Nascimento carrega um discreto sotaque alemão. Filho de pai eletricista e mãe babá, é o mais velho dos três filhos do casal criados na favela Monte Azul, na zona sul de São Paulo. Foi lá que entrou para a Associação Comunitária Monte Azul, que oferecia atividades extraescolares com educadores que conheciam os fundamentos da pedagogia Waldorf. “Desde os meus 7 anos frequentei a associação e muitos educadores sociais me incentivaram a seguir em frente, a melhorar a minha vida com os recursos que eu tinha.”

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Um dia, ele teve a sorte de ir trabalhar como voluntário em uma fazenda na Alemanha, localizada em uma pequena cidade perto de Lüneburg. A ideia era aprender agricultura biodinâmica. Partiu falando muito pouco alemão, o “mínimo”.

Lá encontrou umas pessoas que abraçavam árvores e cantavam para as vacas. “Eu não sabia que tinham limitações, como autismo e esquizofrenia. O fato é que me dava bem com elas. O coordenador da fazenda percebeu e, depois de um ano, sugeriu que eu fizesse um curso de terapia social em outra cidade, na Dorfgemeinschaft Tennental, que fica perto de Stuttgart. Fiquei um mês em teste e, em seguida, fui convidado para fazer o curso de formação. Foram mais três anos na Alemanha.”

De volta ao Brasil, cursou Educação Física. Mas Reinaldo continuou sem muita parada. Em 2007, por conta própria decidiu voar para a Irlanda para conhecer de perto ações voluntárias e novamente trabalhar com pessoas com deficiências. No ano seguinte, passou a integrar a equipe da Amigos da Arte de Educar.

De lá para cá, ele já participou de 11 intervenções pelo mundo. Esteve no Quênia, em 2012, em um campo de refugiados que abrigava 80 mil pessoas da Somália e do Sudão do Sul, e se emocionou com um menino de 11 anos que lhe disse: “Se você me adotar, prometo nunca mais matar ninguém”. No Líbano, em 2013, atendeu refugiados da Síria. Nas Filipinas, também em 2013, conviveu com as vítimas do furacão Haya. Na Faixa de Gaza, em 2014, encontrou aquele trecho de terra destruído, inclusive a rede de esgoto – “o cheiro era horrível”–, por causa do conflito entre Israel e Palestina. Também foi duas vezes para o Nepal, em 2015, depois do terremoto de 7.8 graus na escala Richter, e se chocou ao ver centenas de mortos serem cremados em uma espécie de linha de produção – “era um corpo atrás do outro”.

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Cenas de destruição na Faixa de Gaza registradas por Reinaldo Nascimento em 2014

Hoje, Reinaldo é o braço brasileiro da associação alemã, recebendo voluntários que vêm ao País por meio da instituição e preparando jovens brasileiros que vão para a Alemanha. Também organiza palestras e seminários no Brasil sobre a Pedagogia de Emergência. “Nas periferias brasileiras, vivemos uma guerra não declarada”, ele diz.

nsando nisso, ele acaba de fundar junto com outros pedagogos, terapeutas, assistentes sociais e médicos a Associação Brasileira da Pedagogia de Emergência no Brasil, que capacita educadores para lidar com crianças em situação de vulnerabilidade social no País, nas favelas brasileiras.

O espírito de Reinaldo, no entanto, é inquieto. Ainda está com a alma no Iraque, onde não há números exatos, mas estima-se que, antes da ocupação do Estado Islâmico, Mossul tinha uma população de mais de dois milhões de pessoas – segundo a ONU, um milhão e meio lá permanecem. Ainda segundo a ONU, um milhão de habitantes devem ser desalojados pela guerra e 700 mil pessoas vão necessitar de abrigo.
Os campos de refugiados no país crescem aceleradamente. Entre as vítimas do conflito, milhares de crianças e adolescentes que passaram por experiências traumáticas. Elas sofrem opressões étnicas, vivenciam guerras e são torturadas. Algumas ainda são usadas como soldados. Reinaldo deve voltar para o Iraque em maio. “Mas, se a situação piorar por lá, talvez eu volte antes.”

Segunda-feira, 12 de Dezembro, às 15h30 acontece o Debates!Brasileiros “Pedagogia de Emergência e os Refugiados pelo Mundo”

Reinaldo Nascimento conversará com Patricia Pata Campos Mello, repórter da Folha de São Paulo sobre a crise de refugiados e os traumas de crianças e adolescentes em regiões de conflitos. A mediação será de Hélio Campos Mello, editor da Revista Brasileiros.


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