Morreu um dos últimos grandes mestres da arte da cantaria no Brasil. Seu nome: José Raimundo Pereira, o “Seu Juca”, de Ouro Preto (MG). Cabe uma explicação. Nem todo mundo sabe o que é cantaria. A técnica consiste em beneficiar, aparelhar e lavrar pedras artesanalmente em formas geométricas ou figurativas, para uso em construções como parte estrutural ou ornamental – e, muitas vezes, com as duas funções. Eis aí uma arte milenar. Está presente nas pirâmides egípcias e maias, em construções e monumentos erguidos pelos gregos, etruscos e romanos. Também tornou-se fundamental na arquitetura do barroco mineiro. Resta a dúvida: será que a delicada profissão, que aportou por aqui com os primeiros descobridores, no século XVI, corre o risco de extinção no Brasil?
Não, se depender do filho de Seu Juca. Inspirado nos ideais e no exemplo do pai, Carlos Alberto Pereira está por trás de um projeto que pretende não só contribuir para descobrir talentos na arte da cantaria como sensibilizar os habitantes de Ouro Preto para a importância de conservar o acervo histórico. Engenheiro, doutor em Tecnologia Mineral e chefe do Departamento de Engenharia de Minas da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), ele é mais conhecido por Carlão. Um apelido coerente com o seu 1,90 m, sua popularidade e a dimensão do trabalho que realiza.
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Quem anda com Carlão pelas ruas percebe a admiração de gente de todas as idades e classes sociais ao cumprimentá-lo, querendo agradecer pelo que vem fazendo pelo patrimônio histórico. O professor tem uma história singular. Logo que se formou na UFOP, em 1981, embrenhou-se na Floresta Amazônica em uma mineração de cassiterita, onde ficou até 1995, tempo em que contraiu malária, hepatite B e recebeu um diagnóstico que lhe previa apenas seis meses de vida. Voltou a Minas Gerais para o tratamento, recuperou-se e decidiu prestar concurso para professor assistente da Escola de Minas de Ouro Preto, onde fez carreira.
Como coordenador de projetos de extensão e pesquisa, preocupou-se, em especial, com a preservação do acervo histórico de Ouro Preto. “Foi muito frustrante ver a Ponte de Marília pichada, no dia seguinte ao término de um minucioso trabalho de restauração feito pelo meu pai”, diz. “Daí surgiu a ideia do projeto da Escola de Cantaria de Ouro Preto para ensinar o ofício para crianças e adolescentes de comunidades carentes e promover a educação patrimonial.”
Todos os semestres, a Escola de Cantaria recebe cerca de 35 crianças da 5a série do ensino fundamental de escolas públicas e privadas. Conta com uma equipe que envolve professores e estudantes de diversos cursos da UFOP. Cabe às professoras das dezesseis escolas municipais e particulares de Ouro Preto selecionar os alunos, em geral aqueles com dificuldades de aprendizado e problemas de disciplina.
Após a morte de Seu Juca, o trabalho na escola, que funciona anexa ao Departamento de Engenharia de Minas, passou a ser feito por seu assistente, Francisco Bárbara de Oliveira, o Chico, que tem obras expostas no Museu de Ciência e Técnica de Ouro Preto. Ele se queixa da dificuldade em conseguir serviços de cantaria: “Há muito monumento em Ouro Preto precisando de conservação. Várias das restaurações já realizadas foram muito malfeitas”.
Recuperação da autoestima
Diogo Prata e Clarissa Carvalho, estudantes de Engenharia de Minas, são dois dos estagiários que participam das atividades da Escola de Cantaria. Para eles, não dá para fazer mágica, mas o projeto tem mostrado bons resultados, sobretudo na recuperação da autoestima, socialização e na melhoria do desempenho escolar de muitos alunos, com reflexos positivos na área da educação patrimonial. Os dois se sentem realizados participando de atividades comunitárias e têm a oportunidade de apresentar os resultados de suas experiências em congressos de extensão universitária.
No Brasil, a arte da cantaria pode ser admirada em fortalezas, edifícios, igrejas, museus e outras construções de cidades como São Luiz, Recife, Olinda, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, São Miguel das Missões e Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul, entre outras.
Em Minas Gerais, ela foi implantada por influência de artífices portugueses e adquiriu peculiaridades graças ao uso de rochas locais, como o quartzito retirado na região do Pico do Itacolomi. Por se tratar de uma forma onerosa de construção, a cantaria teve desenvolvimento, em especial, nas vilas e cidades ligadas à mineração de ouro e outras atividades econômicas, onde moravam governadores, bispos, nobres e ricos comerciantes.
Ela está presente em praticamente todas as construções coloniais mineiras, das mais requintadas aos pobres muros de canga. Mas foi deixada de lado no século XIX por motivos ainda pouco conhecidos. Uma hipótese é que a substituição da rocha por outros materiais e a perda da prática no trato com as pedras, em parte atribuída às mudanças estilísticas, tenham contribuído para um processo de decadência. É o que registra o trabalho apresentado no 2o Congresso Brasileiro de Extensão Universitária pela equipe da Escola de Cantaria da UFOP.
Os efeitos da perda dessa prática foram sentidos a partir dos anos 1930 pelo antigo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), que realizou o inventário, tombamento e restauro do conjunto de monumentos do barroco mineiro. Ficou constatada a necessidade de reutilização da cantaria, uma vez que grande parte do patrimônio edificado em Ouro Preto conta com algum tipo de rocha lapidar na composição. Na falta de mão de obra qualificada na região, as reformas realizadas naquele período exigiram a vinda de profissionais de outros lugares, inclusive do exterior, assinalando a extinção do ofício de mestre canteiro em Minas Gerais.
Somente na década de 1980, Seu Juca, mestre de obras, encarregado de restaurar uma cruz da Ponte do Pilar, em Ouro Preto, passou a empregar novamente técnicas de cantaria com uso de pedra da região. Foi uma iniciativa audaciosa. O único contato dele com a milenar arte aconteceu quando trabalhava como servente de pedreiro na reforma do Museu da Inconfidência. Seu Juca via, sem maior interesse, o trabalho de canteiros espanhóis e portugueses, sem suspeitar que se tornaria um deles.
No momento, há grande preo-cupação quanto a conservação e restauro de peças históricas confeccionadas em cantaria. A tarefa exige o olho experiente de um competente conhecedor do ofício, capaz de determinar a natureza da pedra utilizada e a localização da jazida que forneceu o material original. Para que sejam preservadas as características da obra, a nova pedra deve atender a requisitos de resistência mecânica, durabilidade e semelhança em textura e cor.
Segundo Clarisse Villela, professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFOP, não existem dados precisos, mas estima-se que em Ouro Preto, a cada ano, pelo menos um bem de grande valor histórico é destruído, avariado ou necessita de reparos, sendo a solução mais imediata e cômoda a confecção de peças em cimento. “Sem o trabalho dos mestres canteiros, em um futuro próximo te-ríamos nossa arte barroca substituída por inexpressivos blocos de concreto”, adverte. “Nenhuma intervenção que tenha por finalidade salvaguardar as condições físicas de um monumento poderá ser considerada como trabalho de restauração se não proporcionar a leitura da mensagem histórica.”
Em Ouro Preto, Mariana, Congonhas, São João del-Rei e Tiradentes estão os mais completos conjuntos arquitetônicos do barroco mineiro. Mas é em Ouro Preto, um dos maiores, que a ameaça do desaparecimento dos mestres canteiros está sendo mais sentida. É o que afirma a historiadora Simone Fernandes, há 25 anos especialista do IPHAN, os 15 últimos nessa cidade.
“Um bom mestre canteiro não se acha na esquina”, argumenta. “É preciso um longo tempo de aprendizado e prática, somado a conhecimento histórico, técnica e um talento notável. Poucos se interessam em investir numa profissão de formação demorada e que não garante acesso ao mercado de trabalho. É preciso maior sensibilidade e preocupação com o assunto.” Ela reconheceu a competência do trabalho de Seu Juca quando, em 1979, participaram de um projeto para reparar os danos provocados pelas fortes chuvas que desabaram naquele ano em Ouro Preto.
Eles estiveram juntos em outra ocasião, quando houve o abatimento do Arco do Cruzeiro (área que separa a nave da capela-mor) da Igreja de São Francisco de Assis, uma das mais importantes de Ouro Preto, provocando risco de desabamento do teto com afrescos de Manuel da Costa de Ataíde, o mais famoso pintor barroco brasileiro e contemporâneo de Aleijadinho, mestre canteiro-mor do Brasil. Simone Fernandes cita que Seu Juca, vendo a preocupação dos especialistas chamados para fazer a restauração, explicou que não havia risco de queda, pois estava ocorrendo uma acomodação natural do material.
“Na vida tudo se mexe, inclusive as pedras”, tranquilizou o mestre, com sabedoria. Além de resgatar um ofício em vias de extinção, Seu Juca tinha pendores de filósofo.
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