Não foi fácil entrevistar o nosso primeiro imperador. Esteve um tempo meio arredio com a imprensa brasileira, depois que os seus restos mortais e das suas duas esposas (dona Leopoldina e dona Amélia) vieram literalmente à luz, feita pela excelente arqueóloga Valdirene do Carmo Ambiel. Nada contra a pesquisa da moça, disse ele até envaidecido. Mas os brasileiros – disse-me – ficaram um pouco decepcionados porque entre os objetos encontrados havia apenas medalhas e insígnias de ordens de Portugal. Nem uma mísera medalhinha de Nossa Senhora Aparecida.
– Eu não tenho culpa se não tinha nenhuma medalhinha brasileira. Não fui eu quem me enterrei, pois-pois –, teria ele dito ao Chalaça, quando do convite para esta entrevista que você está agora lendo com exclusividade para a revista Brasileiros.
Tive de tomar muito vinho tinto Pera-Manca com o Chalaça (Francisco Gomes da Silva , 1791-1852), português, sete anos mais velho que Pedro, amigo, assessor de imprensa e, dizem, proxeneta, cáften, rufião. Depois de quase três meses de Pera-Manca, Dom Pedro cedeu. Mas dois assuntos não poderiam surgir na conversa: suas constantes gonorreias e a veracidade ou não da crise de disenteria (síndrome infecciosa caracterizada pela eliminação de matéria fecal com muco e sangue, acompanhada de cólica intestinal, segundo os dicionaristas de plantão), justamente na hora da Proclamação da Independência brasileira, às margens plácidas do ex-Ipiranga, na moita.
Isso posto, nos encontramos. Não é um homem bonito, nem feio. Tem cara de antigo. Muito simpático, bem constituído, cabelos pretos e anelados, nariz aquilino, olhos pretos e brilhantes, como eu já havia lido nos compêndios. Grosseiro e sedutor ao mesmo tempo. Mal educado, de vez em quando. E o que mais me surpreendeu, contra a escravatura: “Eu sei que o meu sangue é da mesma cor que o dos negros”. Não é um homem muito alto como o seu filho D. Pedro II, que tinha 1,90 m de altura. Uma leve, bem leve, barriguinha.
A entrevista foi num bar em Portugal, no Bairro Alto, em Lisboa, chamado Pavilhão Chinez (assim mesmo, com “z”), sugerido pelo Chalaça. Pedimos caipirinha (“com pouco açúcar”) e começamos pelo começo.
Brasileiros – O senhor não acha o seu nome, Pedro de Alcântara Francisco António João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon, meio gay?
Pedro I – (Não entendendo.) Gay, alegre, jovial, em inglês? Não estou a perceber, pá! Alegre, feliz?
Brasileiros – O senhor fala inglês? (Eu me surpreendi com o fato de ele saber inglês.)
Pedro I – Mas ora, pois. Inglês, francês, espanhol e italiano! Como é que o senhor acha que eu falava com a minha mulher, a Dina, que era austríaca? Em turco? E a segunda, italiana, a Meméia? Em chinês? Mas aquele negócio que o senhor falou de gay, eu ainda não estou a perceber.
Brasileiros – Esquece, esquece, foi apenas uma brincadeira.
Pedro I – O senhor não está a insinuar alguma coisa a ver com paneleiros, pois não?
Brasileiros – Vamos em frente. Como é que foi a história do Hino da Independência que o senhor compôs e parece que teve um processo por plágio… O senhor proclamou a nossa independência com 23 anos. E fez o hino com 24. Precoce, o senhor. Como foi o processo por plágio?
Pedro I – Não foi bem assim, meu senhor! Vamos esclarecer. Houve uma ameaça de processo de plágio por parte do Vavá, mas tudo foi resolvido de maneira civilizada.
Brasileiros – Vavá?
Pedro I – Evaristo da Veiga, o autor da letra. (Cantarola um pedacinho.) Já podeis, da Pátria filhos, ver contente a mãe gentil. Já raiou a liberdade no horizonte do Brasil. O que aconteceu é que o Evaristo fez a letra com uma música muito da ruim. Então, eu fiz outra música. Ele concordou. O problema é que a mídia não citava o nome dele. Sempre só o meu. Aí ele se irritou. Mas foi tudo resolvido. Não chegou a ir aos tribunais.
Brasileiros– De quem o senhor herdou o dom musical? E tem outras músicas?
Pedro I – Vovó, que vocês cá no Brasil chamam maldosamente de Dona Maria I, a Louca, mo ensinou. Era musicalmente muito lúcida. Tanto que dei à minha filha o nome de Dona Maria II. Sim, tenho várias músicas. Se quiser, posso cantar algumas. Tem um pianinho aí, Chalaça?
Chalaça – Melhor não, alteza. Melhor não. Não é o local.
Pedro I – Mas eu quero cantar, raios!
Chalaça – Depois, depois.
Pelo olhar que Chalaça me deu, entendi que não deviam ser lá essas coisas.
Pedro I – Tem o Samba do Fico!
Brasileiros – Vamos em frente. Lá no Rossio, em Lisboa, praça também conhecida como D. Pedro IV – que era como o senhor se chamava por lá – tem uma imensa estátua do senhor, em cima de um obelisco de uns 30 metros.
Pedro I – Sim, pois. A receber merdas dos pombos!
Brasileiros – Mas fique tranquilo porque descobriram que a estátua não é do senhor. Seria de Maximiliano, do México. Conta a lenda que um navio lusitano naufragou no Tejo e acharam a estátua. Estavam fazendo a praça, fizeram um obelisco bem alto, colocaram lá em cima e embaixo escreveram seu nome.
Pedro I – Estás a brincar. É melhor deixar de fazer aldrabices comigo, pois encerro logo esta conferência de imprensa! Pede outra, Chalaça, com menos açúcar.
Chalaça – Exatamente! Encerramos! Mude de assunto. E o senhor está muito mal informado. Vários historiadores já confirmaram que se trata mesmo de Pedro IV, seu aldrabão! Garçom!!!
Pedro I – E saiba que o Maximiliano vem a ser meu primo por parte de mamãe, dona Carlota!
Brasileiros – Procede a informação que a dona Domitila, a Marquesa de Santos, nunca foi a Santos?
Pedro I – Mas, Chalaça, não estava combinado que não se falaria da Titília e nas gonorreias e… Mas que porra de revista o senhor está a trabalhar? Que imprensa marrom é esta? Você não disse que era para a Veja, Chalaça? Que cazzo, como diz a minha segunda esposa! Que cazzo!!! E cadê as caipirinhas, Chalaça, cadê as caipirinhas??? E não me venha com caipirinha de grapa! Quero de cachaça! E, se possível, cachaça das Minas Gerais!
Brasileiros – Senhor Imperador, só uma coisinha: a sua primeira esposa, a dona Caroline Josepha Leopoldine Franziska Ferdinanda von Habsburg-Lothringen – que, não sei se sabe, virou cidade na Zona da Mata, em Minas, de onde vem essa cachaça – era sobrinha da rainha Maria Antonieta, não é?
Chalaça – (Virando um copo de cachaça pura.) E o que o cu tem a ver com as calças, meu jovem?
Pedro I – Calma, Chalaça! Sim, era sobrinha. O que você quer saber?
Chalaça – Estou a me apoquentar!
Brasileiros – É que a cabeça da dona Maria Antonieta rolou na França. E a da rainha Leopoldina rolou pela escada. O senhor a empurrou mesmo? Lá na Quinta da Boa Vista.
Chalaça – Vamos embora, senhor!
Pedro I – Quem é o dono desta revista, Chalaça? É o Chateaubriand ou o Samuel Wainer? Olha aqui, rapazinho. Na exumação ficou muito claro que ela não tinha nenhum fêmur quebrado. E ela morreu de tuberculose. Saiu até no Fantástico. E saiba que ela foi muito importante para que eu tornasse o seu país independente. Perdão, o nosso país.
Brasileiros – Por falar em Independência, o boato…
Pedro I – Está vendo, Chalaça, rodeia, rodeia igual mosca de merda. Quer saber das minhas defecações às margens plácidas. Quer saber? Obrei mesmo! E daí? Tu nunca obraste, por acaso?
Chalaça – Vamos parar de beber, Pedro! Pura, não.
Brasileiros – Antes, durante ou depois do Independência ou Morte? O senhor gritou antes, durante ou depois?
Pedro I – Jamais disse essa frase na beira daquele riozinho. Foi de noite, depois do jantar, que falei a frase que entrou para a história.
Brasileiros – O senhor não me respondeu. Foi antes ou depois.
Pedro I – Nada a declarar. Mas antes que passemos para a terceira garrafa, Chalacinha, tenho a declarar o seguinte. (Tirou um pedaço de papel impresso do bolso e começou a ler.) Copiei isto aqui do Wikipédia, citando a cândida Isabel Lustosa. É isso aqui o que importa, meu jovem: Dom Pedro I não acreditava em diferenças raciais e muito menos em uma presumível inferioridade do negro como era comum à época e perduraria até o final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Era também completamente contrário à escravidão e pretendia debater com os deputados da Assembleia Constituinte um jeito de acabar com ela.
Brasileiros – Quanto a isso, senhor Imperador, fique tranquilo, porque sua neta, a princesa Isabel, aboliu a escravatura em 1888.
Pedro I – Soube, soube. Isabel, a filha do Pedrinho. Como ficou velhinho o meu filho. Aquela barba… Parecia meu avô, né mesmo? Deixei ele aqui menino, desse tamanho. Nunca mais vi. (Vai se emocionando, começa a chorar.) Tão pequeninho, foi ficando velho. Olho as fotos e não acredito que aquele possa ser o meu Pedrinho. (Chora mais, dá um gole.)
Chalaça o ajuda a se levantar. Chora de soluçar. Vão saindo.
Pedro I – Como que o meu filho pode virar aquele velhinho? Eu não entendo, Chalaça. Não entendo. (Vira-se para trás, me aponta o dedo, em riste.) A Marquesa de Santos, meu filho, a Domitila, a Titília, carregou aquele velhinho no colo! Fez carinho nos cabelos loiros e encaracolados dele. Ele ficava olhando para ela, para aquele mulher linda, com aqueles pequenos olhos azuis e austríacos. (Chora mais.) E foi ficando velhinho… E eu nunca soube como era a cara do meu filho quando ele tinha a minha idade. Vi pequeno e velhinho. Você tem alguma foto, algum retrato dele, que não seja daquele velhinho? Será que aquele velhinho era mesmo o meu filho, Chalaça? A gente precisa parar de beber essas coisas das Minas Gerais…
E foram saindo do Pavilhão Chinez. Abriram a porta e eu ouvi o barulho dos bondes nos trilhos. E a chuva. E a voz do Chalaça:
– Táxi!
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