Pedro Martinelli, um fotógrafo brasileiro

Martinelli já fotografou greves, revoluções, moda e futebol. Só não foi fotógrafo de turfe e coluna social. Em 1970, integrou uma expedição à Amazônia para contatar os índios Panará. De lá para cá, nunca mais conseguiu se afastar da maior floresta do mundo. Em seu terceiro livro, GENTE X MATO (veja algumas fotos ao lado), ele retrata uma Amazônia real, aquela onde viveu por três anos. Em entrevista a Juca Kfouri, com quem cobriu quatro Copas do Mundo, Ricardo Cassolari, o cabeleireiro e pintor com alma de fotógrafo, e Hélio Campos Mello, diretor da Brasileiros, ele fala sobre sua obra e outras histórias de bastidores. A foto da página ao lado e a da capa foram feitas por Cristiano Mascaro, seu vizinho e amigo de longa data.

Brasileiros - Por que o nome do seu livro é Gente X Mato?
Pedro Martinelli -
É uma associação com estádio de futebol. Tudo nesse país é futebol. O balanço que a burocracia ambiental faz dentro dos gabinetes é quantos campos de futebol foram destruídos por ano. Quantos Maracanãs. Como se a gente tivesse noção da dimensão de 180 Maracanãs. A gente não conhece a largura do Rio Negro. Ninguém acredita que tem oito quilômetros de largura.

Brasileiros - Você fotografou muito futebol. Você gosta de futebol?
[nggallery id=15526]

P.M. -Eu quase não ouço mais futebol. Olha, em 1970, Copa do Mundo, eu estava no mato, e tinha um rádio daqueles, grande, pesado, e nós fazíamos malabarismos para poder escutar os jogos. O Cláudio Villas Bôas tinha uma bússola, ele achava o rumo do sul e mandava os índios treparem em cima das árvores para pôr um fio de arame entre uma árvore e outra. Descia um fio que era enrolado na antena do rádio e aí nós ficávamos em volta ouvindo a transmissão do jogo do Brasil. Até hoje eu fico emocionado.

Brasileiros - Tem um filme maravilhoso, um documentário de um espanhol, que tem umas coisas parecidas com isso. (É o ótimo documentário A Grande Final, dirigido pelo espanhol Gerardo Olivares, que mostra três diferentes exemplos de etnias – nômades na Mongólia, árabes no deserto e índios brasileiros na Amazônia – tentando assistir à final da Copa do Mundo de 2002 entre Brasil e Alemanha.)

Brasileiros - Para você a Amazônia é um lugar tão familiar quanto uma Copa do Mundo?
P.M. -
Eu acho que a Copa do Mundo é mais familiar, sinceramente. Eu tenho noção do que pode acontecer numa Copa do Mundo, mas na Amazônia, não. Quanto mais você anda, mais você tem noção do quão insignificante você é perto daquilo.

Brasileiros - Quantas Copas você cobriu?
P.M. -
Quatro. Tudo com o Juca (Kfouri).

Juca - Bela dupla. O Pedrão é a pessoa mais solidária que existe na terra. Em 1994, estávamos hospedados em um hotel horrível perto de São Francisco e eu trabalhava de madrugada. Não havia serviço de quarto e eu normalmente acabava de escrever a matéria que ia mandar pro Brasil às três da manhã. A dois quilômetros do hotel havia um posto de gasolina aberto 24 horas com um lugar que vendia café. Eu ia lá tomar um expresso e fumar o último cigarro antes de dormir.

Brasileiros - Naqueles tempos todos nós fumávamos.

Juca - É. Fiz isso três noites. O quarto do Pedrão era ao lado do meu. Na quarta noite, Pedrão ouviu barulho e abriu a porta: “Aonde você vai?” “Eu vou lá tomar café.” “Espera aí, eu vou com você.” Tomamos café e voltamos fumando. Todos os dias às três horas da manhã nós íamos tomar café juntos. Para mim era um bálsamo. Agora eu vou acabar de escrever, vou sair com o Pedrão e vamos dar muita risada. No terceiro ou quarto dia que nós estávamos em São Francisco, fomos os dois juntos para um shopping center comprar um colete de fotógrafo. E ele me fez jogar fora uma bolsa a tiracolo.

Brasileiros - Por quê?
P.M. -
Ela dava azar. Aquela bolsa de couro esteve na Igreja da Consolação, na greve dos jornalistas. Ela dava azar.

Juca - Fizemos uma cerimônia e joguei a bolsa no lixo do shopping. Temos fotos, temos uma seqüência de três fotos.

Foto: Cristiano Mascaro
RETROSPECTIVA
Em seu novo livro, Pedro Martinelli mostra 168 fotos da Amazônia registradas desde os anos 1970 até os dias de hoje

Brasileiros - Copa do Mundo rende muita história de bastidores.
P.M. -
No primeiro jogo, no campo da universidade, fizemos o seguinte: fizemos o trajeto do hotel para o campo sete vezes de madrugada, cronometrando quanto tempo ia dar. Os prazos de fechamento das matérias no Brasil eram muito apertados devido ao fuso horário. Então não podia perder tempo, não podia errar o caminho.

Brasileiros - Era jogo-treino?
P.M. -
Não. Brasil e União Soviética. Foi num campo da Universidade de Stanford (O jogo foi no Stanford Stadium, em Palo Alto, Califórnia, dia 20 de junho de 1994. Foi 2 a 0 para o Brasil, com gols de Romário e Raí.)

Juca - Estava indo tudo direitinho. Só que havia um policial colocando dois cavaletes bloqueando o caminho para o hotel. Daí eu vejo o Pedrão discutindo com o policial pedindo para abrir o bloqueio. E o cara não abria e eu via que aquilo não ia dar certo. Peguei o meu laptop, estava praticamente escrevendo as últimas cinco linhas, coloquei o laptop em cima do painel, desci e fui conversar com o cara. Fiz cara que eu ia chorar e disse para ele: “O senhor vai arrasar nossa vida, nós estamos nesse hotel, não custa nada o senhor abrir essa porta, somos do Brasil e não sei o quê”.

P.M. - Você já viu ele dramático?

Juca - Ele olhou para mim e falou: “Cry baby, cry”. E abre o bloqueio e o Pedrão já entra e vai pro quarto do hotel, revelar os filmes do jogo. O guarda fechou o meu laptop e eu perdi todo o texto. Tive de começar toda a matéria de novo. Me gozaram uma semana. Fui ser solidário com o Pedrão e me ferrei.

P.M. - Eu estava prestes a bater no guarda.

Brasileiros - Voltando à Amazônia: não teve nenhum momento em que você achou que fosse morrer?
P.M. -
Nunca senti esse perigo. Eu tenho alguns medos, mas eu nunca senti esse perigo.

Brasileiros - Mas a maior emoção jornalística da sua vida não foi a descoberta dos índios Panará?
P.M. -
É. A maior emoção continua sendo aquele índio aparecendo na minha frente.

Brasileiros - Como é que foi?
P.M. -
Eu e o Mamprin (Luigi Mamprin, fotógrafo italiano – Veneto – trabalhou por muito tempo na Editora Abril, faleceu em 1995.) acompanhamos a expedição praticamente uns três anos. E nós fomos os únicos que ficamos lá esse tempo todo. Mas teve uma época do contato que a gente ia e voltava porque os índios desapareciam no mato. E nós estávamos em São Paulo quando os índios reapareceram. Foi uma loucura porque o Orlando me ligou e disse assim: “Pedrão, os índios apareceram”. E meu companheiro era o Etevaldo Dias e ele estava em Brasília. E eu falei: “Etevaldo, eu vou me mandar hoje à noite no vôo da Vasp, imediatamente, e vou fazer um plano de vôo falso de Cuiabá para Peixoto de Azevedo (município no extremo norte do estado de Mato Grosso)”, porque a gente sabia que Peixoto Azevedo ia ser interditado.

Brasileiros - Por quê?
P.M. -
Porque a imprensa internacional estava inteira em Cuiabá e a Funai não dava autorização para eles entrarem na área indígena.

Brasileiros - Isso por quê?
P.M. -
Virou um assunto internacional, o primeiro contato com uma tribo isolada, não havia notícia disso. E aí atraiu toda a imprensa para lá.

Brasileiros - Em que ano foi isso?
P.M. -
Foi em 1973. Em abril de 1973.

Brasileiros - Vocês estavam lá desde quando?
P.M. -
Nós estávamos lá desde 1970. Para chegar ao rio foi um ano a pé. Só saímos de lá depois para um campo de pouso. Dessa vez eu cheguei e o Mamprin já estava lá. Você vê que coisa maluca. O Mamprin saiu de Brasília com um táxi-aéreo fretado e deixou o táxi-aéreo dele lá esperando à disposição dele e eu mandei o meu táxi-aéreo embora.

Brasileiros - Por quê?
P.M. -
Acho que foi para economizar dinheiro para o jornal.

Brasileiros - Nessa época você trabalhava no Globo?
P.M. -
Eu no Globo e o Mamprin na Veja. A Realidade fechou no meio do contato com os índios e o Mamprin continuou lá pela Veja. Então o Mamprin deixou o avião dele lá e eu, talvez pensando em custo ou não acreditando que o contato fosse sair imediatamente, mandei meu avião embora. Dormi lá uma noite e no dia seguinte os índios apareceram. A uns 150 metros do acampamento havia dois índios que participavam da expedição dos Villas Bôas espiando, quando os Panará apareceram do lado de lá, ficaram gritando, enquanto alguém vinha chamar. Eu subi nas canoas, eu e o Mamprin e uns quatro, cinco índios, era uma corredeira. E aquela aflição. Eu tinha visto vulto, rastro, tudo menos a figura de um Panará. E eu tinha visto, já do lado de cá, dois parados na beira do rio. Fotografei, mas era uma foto do outro lado do rio; rio de 150 metros. Eu fiz essa grande, mas perdi uma maravilhosa. Quando o Cláudio está chegando, um dos índios estica o arco na cara dele. E o Cláudio sem camisa, sem arma, sem nada, só fazendo gestos de corpo limpo. E eu fiquei tão paralisado que essa foto eu não fiz e era uma coisa excepcional, esticou o arco na cara dele. Eu falei “puta, matou o Cláudio”. Aí ele desesticou, foi uma sacanagem. Nesse momento saiu um correndo pela lateral naquele meio de mato e eu vi o cara e fiz a primeira foto. Eu fiz dois fotogramas. Bom, quando eu estou voltando com a canoa, com os filmes…

Brasileiros - O Mamprin não fez?
P.M. -
O Mamprin fez, mas ele estava fotografando cor e eu preto e branco.

Brasileiros - Mas o Mamprin também não fez a foto do cara do arco?
P.M. -
Não. Ninguém fez. Porque foi uma cena que paralisou todo mundo. Aí voltamos, os índios da minha canoa começaram a pular na canoa, eufóricos, e a minha canoa virou com todos os filmes dentro. Todos. E os índios com o pé assim, apalpavam o fundo do rio e pegavam com os dedos do pé, um por um, os filmes e iam me dando. E eu cheguei a pedir para o Cláudio que eu não queria mais ir embora, eu falei “vão me matar, três anos depois”. Eu só lembrava da frase do meu chefe na fotografia do Globo, o Erno Schneider: “Você só sai de lá quando você fotografar esse índio”. Aí o Mamprin falou para mim: “Pedrão, põe as câmeras dentro do tambor de querosene de aviação”. E o Mamprin pegou o avião dele e partiu. Eu pedi que ele levasse meus filmes para Brasília e ele falou: “Nem a pau”.

Brasileiros - Não levou?
P.M. -
Não. Você vê que não tinha negócio. Amigo, amigo… Aí eu virei para o Mamprin e falei: “Não acredito que você não vai levar os meus filmes para Brasília, leve e deixe na sucursal do jornal”. Ele falou: “Nem a pau”. Eu disse: “Mamprin, se eu sair a pé daqui eu vou dar (publicar) na sua frente”. Era uma quarta-feira. Eu voltei com o avião da Funai, preso, porque resolveram que não podia ficar mais ninguém lá. Não paguei táxi-aéreo, cheguei no aeroporto, o vôo lotado. O Etevaldo Dias tentando convencer alguém a ficar em Cuiabá por qualquer dinheiro, hotel, tudo que ele podia oferecer, não teve jeito. E o comandante da Vasp deu uma mão. O Etevaldo foi na cabine de comando porque tinha de escrever a matéria. O Erno Schneider foi o salvador da minha pátria esse cara, era meu chefe. Se não fosse ele provavelmente eu não estaria contando essa história hoje. Seria um fotógrafo…

Brasileiros - Frustrado?
P.M. -
Não. Seria um fotógrafo de coluna social como ele mesmo dizia, ou de turfe. Porque era assim: você ia fotografar o Fla-Flu, se tivesse três gols do seu lado, onde você estava fotografando, e você não fizesse nenhum, ele dizia: “A chance de você ir fotografar turfe com o Brederodes (fotógrafo de turfe do Globo) é grande”. Porque o turfe é o seguinte: se você não fizer a foto, a gente pega a foto do fotochar (aquele aparelho que fotografa as chegadas das corridas de cavalo). Era a pior canalhice. Ou então vai trabalhar com colunista social.

Brasileiros - Mas deixa eu entender…
P.M. -
Aí o Erno chamou todos os laboratoristas, pegou os filmes, decidiram colocar tudo dentro de uma banheira, amoleceu a gelatina, tiraram de dentro porque grudou tudo, revelaram, não manchou um filme, eu tenho até hoje.

Foto: Luís Carlos Alves Melo
DESCONTRAÇÃO
Hélio Campos Mello, Juca Kfouri, Ricardo Cassolari e Pedro Martinelli (da esq. para a dir.)

Brasileiros - Saiu no Globo quando?
P.M. -
O Globo deu a primeira foto na sexta-feira.

Brasileiros - Ou seja, furou a Veja.
P.M. -
Furou a Veja. E o Estadão deu essa foto do fotógrafo aí muito ruim, do repórter, do Zé Marques… Aliás, tem uma confusão aí que nem vale a pena, mas quem fotografou foi um médico. Deu até uma briga judicial de autoria. O médico que estava com o Cláudio, que foi com o Orlando daqui para lá, fez a foto. Esse rapaz pegou a foto e deu na primeira página com o nome dele. Mas, enfim, a foto não é legal. Aquela chapa emblemática do cara parado preto com duas penas aqui e uma aqui, é aquele fotograma da vida. Quer dizer, revelaram os filmes e estava lá na primeira página do Globo, na sexta. Só que a Veja não saía; o Globo deu no sábado, maior ainda, e no domingo maior ainda, uma estocada final, que é quando a Veja saía. Quer dizer, ficou repicando.

Brasileiros - Em 1970 existia essa consciência ecológica que existe hoje?
P.M. -
Não. Além de ser fotógrafo eu era mateiro. Eu andava com o meu pai na Serra do Mar. Eu caçava junto com ele desde moleque, então eu aprendi a andar no mato com meu pai. O mato, a mata virgem deslumbrante, até hoje me tira o fôlego. A gente matava macuco e preparava lá com palmito, passava a noite na Serra do Mar. Quando cheguei na Amazônia eu atirava. A caça fazia parte da minha cultura. Os padres da catedral de Santo André, todos italianos, vinham na minha casa almoçar, tomar vinho e falar de caça com meu pai, porque todos os padres eram caçadores. Eu vivi num meio onde se repartia a caça de domingo; a minha mãe me ensinava a refogar. Meu pai tinha açougue, tinha cachorro de caça. Quer dizer, era um meio que não é muito diferente desse que eu vivo hoje na Amazônia. Na verdade, a fotografia de hoje é uma fotografia doméstica do cotidiano das pessoas que moram lá, não tem nada de mais. Porque você não fica três anos fotografando todo dia. Fotografando o quê? Todo dia? Não há o que fazer. Ou você dá uma mão para a expedição, que foi o que eu fiz, ou você não faz nada durante o dia. Eu cuidava dos doentes de malária, pescava, caçava. Então, eu atirei em tudo o que eu pude atirar na vida, por necessidade. Os outros não entendem isso. Eu falo isso porque essa é a minha cultura, eu nasci nisso.

Brasileiros - Você acha que isso vale hoje?
P.M. -
Eu acho que hoje isso não combina mais; não dá.

Brasileiros - Por quê?
P.M. -
Porque não tem regulamentação e aqui para virar uma gandaia é um minuto. As pessoas atiram por atirar e é uma maldade que se faça isso. Agora, eu acredito numa regulamentação como na Europa, nos Estados Unidos, que é supercivilizado, uma caça consciente.

Brasileiros - O que te levou a voltar para lá? Foi uma necessidade pessoal de fechar essa história?
P.M. -
Não só fechar. Tem outra coisa, não teve continuidade, com a falta de visão da imprensa, dos jornais, as pessoas não acompanharam nunca mais. Eu fiz uma suíte 20 anos depois. Todo mundo que eu perguntava como que estavam os índios, ninguém sabia me dizer.

Brasileiros - Você ficou três anos lá, quando voltou, você tinha três anos de salário acumulado no Globo?
P.M. -
Tinha. Eu dava uma mão para minha mãe. E era muito engraçado. Eu era baseado na sucursal do Globo em São Paulo, mas eu não vivia em São Paulo, eu não tinha nem casa, eu vivia no mundo por aí. Mais no Rio do que aqui. Eu ficava lá no meio do mato e eles lançavam para mim cigarro, cartas. Quando não tinha campo de pouso, vinha um aviãozinho, abria a janela e jogava correspondência, comida. Ele carregava dois sacos de 60 quilos em cada asa, a gente fazia uma clareira, imagina fazer uma clareira na floresta de cinqüenta por cinqüenta, ele dava um rasante e jogava as sacas com arroz, feijão e só, porque carne tinha lá. A gente vivia de caça. E cigarro e cartas. Minha mãe levava um bolo na sucursal do Globo e o Renato Lombardi, o Cássio Loredano, o Cândido Garcia, o William Waack, eles escreviam mil cartas para mim, mandavam para Cuiabá, parava no batalhão do Exército, pegavam as cartas e lançavam para mim junto com o cigarro. Era uma coisa de maluco.
E a minha mãe tinha autorização para tirar o dinheiro na cidade. E naquela época o Globo pagava, além do salário, uma diária e sobre essa diária 25%. Ou seja, eu ganhava um salário mais um salário e sobre esse salário 25%. Então tinha uma bela grana quando eu voltava.

Ricardo Cassolari - O que você aprendeu sobre proteção espiritual na selva?
P.M. -
Eu passei longe disso. O máximo que eu cheguei a ter contato foi com os pajés. Mas eu nunca me interessei muito. Eu li todos os livros do Darcy Ribeiro menos o que fala dos Xamãs e dessa coisa toda.

Brasileiros - Você não tinha medo de cobra?
P.M. -
Eu tenho medo de cobra, sempre tive. Mas na Amazônia não é só ter medo de cobra, porque aquilo ali é muito complicado. Eu sou muito diferente, porque as pessoas não sabem dessa vida pregressa de mateiro que eu sempre fui. Quando eu cheguei lá eu já sabia que eu ia ficar na mata. O meu pai que me ensinou assim: “Pedrinho, isso aqui é um estrepe, cuidado, não faz barulho porque senão a gente não ouve o pio do macuco, silêncio, presta atenção”. Quer dizer, toda essa leitura de mato…

Brasileiros - Que mato era esse?
P.M. -
Na Mata Atlântica encostada na minha casa, em Santo André. Nós íamos a pé. Para se ter uma idéia, nós saíamos de casa, pegávamos o trem na estação de Santo André, o meu pai com a espingarda nas costas, e nós íamos até Campo Grande, Rio Grande da Serra e ali a gente caçava o macuco. E ali era um matão deslumbrante, e o mato acabou, não tem mais nada, é uma periferia absurda, uma favela absurda. Quando eu cheguei na Amazônia eu encontrei o cara que arredondou a minha cabeça.

Brasileiros - Quem, o Cláudio Villas-Bôas?
P.M. -
Sim, o Cláudio, revolucionário, comunista, antimilico, antiestrada, anticontato, antitudo. Ou seja, puseram um sujeito para fazer o contato que não gostava das estradas, dos milicos e nem que mexesse com os índios. E ele não tinha com quem falar porque a expedição do Cláudio era composta por 30 índios xinguanos, eu e o Mamprin. O Mamprin tinha a mesma idade do Cláudio, não tinha muita paciência para ouvir os discursos dele. Então eu fui a vítima do Cláudio, graças a Deus. Ele tinha uma rede, um banquinho, os dois chinelos dele, uma pilha de livro assim, só filosofia, livro de 40 anos, livro lido. Ele me punha sentado ali naquele banquinho e fazia todos os discursos que ele queria fazer pra mim. Em 1970 eu já sabia o que ia acontecer no Brasil. O Cláudio já tinha me falado. Sabe o que o Cláudio me falava toda hora no final do discurso dele? “Pedrão, o dia que eu fizer assim na barriga desse índio, ele morreu.”

Brasileiros - Não era uma contradição? Não era melhor evitar o encontro?
P.M. -
Foi o que ele fez. Ele evitou três anos. Nesse livro aqui eu comecei a juntar as coisas, tanto que tem foto de 1970 até hoje. De uns anos pra cá o que aumentou foi essa contradição imensa, do que eu ouço aqui e do que eu vejo lá.

Brasileiros - O que você ouve, até mesmo, por parte dos ecologistas?
P.M. -
Tudo, principalmente dos ecologistas, ambientalistas, do ambientalismo formal, de gabinete. Essa linguagem específica em que eles são especializados, mas que é pouco compreensiva. Quem está lá no mato não entende nada, ninguém sabe o que é sustentabilidade. Eu uso um exemplo que é o seguinte: o caboclo precisa saber o que é isso, porque a moeda lá para comprar um litro de diesel que serve para acender a lamparina ou pra ver duas horas de televisão, que é um geradorzinho pequeno, custa uma tartaruga, quatro reais. Então a sustentabilidade significa o seguinte: o que nós vamos fazer para esses caras não matarem mais a tartaruga para poder ver televisão? Uma paca custa trinta reais. Com uma paca ele compra cinco, seis litros de óleo diesel, compra uma sandália havaiana, um vidro de dipirona, sal, açúcar, ele vive disso. É a moeda do bicho-do-mato. Os caras ficam falando um negócio aqui de auto-sustentabilidade. O que é auto-sustentabilidade? Nós vamos pôr uma padaria lá pra eles, com quê você compra pãozinho? Com que dinheiro? Você vai montar um açougue para ele não matar mais? Com que dinheiro ele vai ao açougue? Não existe essa moeda. Então nada de novidade. Essa moeda existe desde 1500, desde quando a gente se conhece aqui, é a mesma moeda. É do extrativismo, é do tomar. Por isso que o livro começa com esse anúncio aí: vamos faturar, chega de lendas. Estamos faturando até hoje. A máquina registradora está comendo solto. E aqui fica esse papo que dá muita mídia, muito retorno, mas pouco compreensível e pouco efetivo, não é prático, tem zero efetividade, só gera um alarde que não tem prática.
E outra coisa também terrível que está ficando ruim lá, a caboclada já está desconfiada faz tempo. Como você explica para o cara lá que nós daqui ficamos tentando nos meter na vida deles tendo um rio péssimo? Você passa do lado do Rio Tietê agora, você chora. Aí nós vamos ficar preocupados porque estão jogando lata de óleo diesel dentro do rio lá no Rio Negro. E esse rio está aí há centenas de anos.

Foto: Pedro Martinelli
HISTÓRICA
Foto que Martinelli fez de um
dos índios Panará em 1973

Brasileiros - Em última análise, tem o governo americano, que é o mais poluidor do mundo, querendo preservar a Amazônia.
P.M. -
Exatamente. A gente não consegue ser limpinho aqui no entorno da nossa casa. A minha rua, os meus vizinhos não conseguem separar o lixo, não conseguem fazer o lixeiro pegar o lixo sem estourar o saco. O meu problema é esse. A gente não faz um saco de lixo resistente o suficiente para quando o lixeiro pegar não estourar o saco. Porque ele estoura, a rua fica cheia de lixo e nós ficamos preocupados com o aquecimento global que daqui a cem anos vai aumentar um grau. Quer dizer, é porque é mais fácil você falar do aquecimento global.

Brasileiros - Porque é uma coisa distante.
P.M. -
Agora, a minha questão é a seguinte: e o Tietê e o Pinheiros? O Rio Pinheiros passa do lado da Universidade de São Paulo que é onde estão as melhores cabeças deste País. Na Amazônia eu ando nas bordas do mato. A maioria vai lá e fica no hotel fazendo conferência três dias sobre biodiversidade, então não anda onde tem de andar. Se você anda, você vê. E aqui também eu ando na universidade de sábado. Anda atrás das faculdades para você ver as lixeiras. É só ir lá e dar uma volta no campus para ver as lixeiras atrás das universidades.

Brasileiros - No capítulo final do seu livro você faz várias perguntas. Você tem respostas paras elas?
P.M. -
Não, por isso que eu perguntei. É o que eu gostaria de saber. Por exemplo, o cara tem um cacho de banana que ele plantou na roça dele. Para ele plantar essa banana ele teve de fazer uma derrubada; para plantar mandioca tem de fazer derrubada. As pessoas não se dão conta do dia-a-dia do cidadão lá, que é o que eu conheço bem. Porque para plantar mandioca tem de fazer uma baita derrubada, porque não tem adubo. Porque o que fertiliza a terra é a queimada que corrige o solo que é ácido. É a fumaça, é a brasa, por isso que metem fogo no Brasil inteiro. O índio faz a mesma coisa, ele detona, ele quebra, ele faz tudo. E aí, meu amigo, o que acontece? Não tem jeito, se você não entender essas especificidades…

Brasileiros - Naquela época era interior, hoje não é mais.
P.M. -
Era interior. Ou você pegava o estilingue e dava pedrada em passarinho, ou você ia caçar com o seu pai, pescar numa represa, nadar numa lagoa, ou ia pro clube. Eu fiz isso.

Brasileiros - Eu posso deixar o meu filho dar umas estilingadas em passarinho hoje em dia?
P.M. -
Eu acho que isso está embutido em qualquer criança. Não precisa ser passarinho. Qualquer criança pega um gato e quer estrangular ele pelo pescoço. Eu acho que pode. Eu acho que tem de deixar ele dar uma pedrada no passarinho. Você vai falar o quê? Para cuidar do passarinho? O problema é esse. Isso faz parte de uma cultura nossa, de um país como este. Um moleque que nunca fez uma arapuca, que nunca fabricou uma ronqueira em casa, tentou dar tiro, comprar pólvora, espoleta, fazer uma ronqueira. O moleque que não está fazendo isso vai ser difícil a compreensão desse cara.

Brasileiros - A cidade mudou.
P.M. -
Nós vamos criar um conflito pior, a coisa vai ficar muito pior. O menino que mora hoje aqui acha que é um crime matar tartaruga, comer tartaruga, e o cara de lá fica puto porque chamam ele de criminoso todo dia na televisão porque ele come tartaruga. E o dia que esses caras se encontrarem e um falar “eu adoro uma tartaruga muquiada, eu como sarapatel de tartaruga, que é um clássico na culinária brasileira” o outro vai dizer “você é um filho da p…” e eles vão brigar. Porque nós não integramos. O País tem de ter o estado cultural mais bem acabado do que nós estamos. A gente não consegue entender essas coisas. Quando eu falo que eu comi um macuco na serra, que para mim faz parte da minha essência, as pessoas não entendem. Hoje você não tem um pai que te pega pelo braço “papai trabalhou ali, o nono morava ali, o tio morava ali”; morreu. O papai era ali, o teu tio morava ali, vamos na casa do nono. Eu ia lá, meu avô italiano falava assim “Pedrinho, vamos comer um coelhinho? Vamos escolher”. Eu ia lá, escolhia e comia. Imagina fazer isso com uma criança hoje, você matar um coelho. Agora, paranóia, porque comer um franguinho é supersaudável, e ninguém lembra que o franguinho ficou 50 dias com a luz acesa sem dormir uma noite. E você vem falar que eu matei macuco? Que eu matei um jacu? É claro que eu dei o tiro no jacu, com muita dignidade, eu comi uma carne orgânica, natural. Você entendeu?
Então hoje quando você vai na academia, come franguinho, filezinho de frango grelhado de um franguinho que ficou sem dormir 50 dias com a luz acesa, isso não é maldade? Isso pode e dar pedrada no passarinho não pode.
Uma pedrada no passarinho, se acertar, morreu o passarinho. Acerta uma a cada 50. Provavelmente os que atiraram pedra no passarinho são muito mais conscienciosos dos que os que nunca vão atirar uma pedra. Eu atirei pedra, eu cacei, eu dei tiro. Hoje eu não tenho mais coragem. Para mim isso é ao contrário, eu ando no mato pra ver se eu consigo. Entendeu?


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.