O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, carioca de 73 anos completados em 30 de outubro, é um dos mais respeitados pensadores e formuladores de políticas públicas do Brasil, tanto em termos de política externa quanto de política econômica (o diplomata tem doutorado em Economia pela Boston University). Junto com essa formação acadêmica e profissional, Samuel, dentro da tradição cara a um respeitado intelectual de esquerda, gosta de uma boa polêmica. Foi assim em 2001, quando era diretor do Instituto de Políticas Internacionais do Itamaraty e proferiu uma palestra a uma plateia predominantemente de militares. Usando argumentos e dados irretorquíveis, desancou a ideia de o Brasil entrar para a ALCA, área de livre comércio das Américas, bolada pelos Estados Unidos e incensada no Brasil durante o período tucano no poder.
O chefe de Samuel, o então chanceler brasileiro Celso Lafer (o mesmo que, em visita oficial aos Estados Unidos, tirou os sapatos, submisso a um funcionário da imigração), demitiu-o do cargo. O troco veio um ano depois, quando eleito presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o embaixador Celso Amorim foi escolhido chanceler. E levou para o segundo posto no Itamaraty, a Secretaria Geral, exatamente Samuel, seu amigo e parceiro desde os bancos do Instituto Rio Branco.
A nova polêmica, ou melhor, a nova empreitada a que Samuel dedica sua capacidade criativa – depois de sete anos na Secretaria Geral, 14 meses como ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos (durante os dois mandatos de Lula) e um ano como Alto Comissário do Mercosul –, está dentro de uma linha de ação semelhante ao documento Brasil 2022, projeto encomendado por Lula que imaginasse o futuro do Brasil para o Bicentenário da Independência. Junto a uma comissão de notáveis (Luiz Pinguelli Rosa, Luiz Soares, Marcio Pochmann, Pedro Celestino, Renato Guimarães, Roberto Amaral e Ubirajara Brito), lançou o manifesto A Crise Mundial, a Defesa do Brasil e da Paz. Divulgado no boca a boca e pela internet, já conseguiu, em poucas semanas, a adesão de dezenas de intelectuais preocupados com os rumos que o País precisa tomar para que as conquistas já obtidas, especialmente após 2003, com o início da primeira gestão de Lula, sejam mantidas e ampliadas.
Samuel, que foi entrevistado por Brasileiros no 28 (novembro de 2009), poucos dias depois ter tomado posse como ministro com a tarefa de, segundo Lula, “pensar o Brasil para nosso netos”, acha que o manifesto reflete um sentimento de preocupação de pessoas com expressão no cenário político e intelectual do País com o “momento de grave perigo que vive o mundo e ameaça degenerar em guerras e destruições de grande escala”.
O manifesto destaca que o agravamento da crise do capitalismo pode resultar em conflagrações capazes de causar danos “terríveis, inclusive para nosso País”. Mas, assim como o documento aponta linhas de ação que podem fazer o Brasil se proteger das crises, Samuel acredita que o balanço dos últimos cinco anos – testemunhados por Brasileiros – é positivo.
“É evidente que o balanço dos fatos de 2007 a 2012 é muito favorável. Afinal, durante 502 anos o Brasil foi governado por determinadas classes hegemônicas, situação que só mudou com a eleição de um operário para a presidência da República. A eleição de Lula é, sem dúvida, o fato mais importante de toda a história do Brasil.” Samuel lembra que, no final de 2007, já no segundo mandato de Lula, a crise internacional, que explodiria em 2008, já começava a dar sinais. “A crise afetou o Brasil de maneira extraordinária, em todos os sentidos. E só foi possível enfrentá-la com sucesso porque as políticas neoliberais dos tempos de FHC – que incluíam a entrada na ALCA e as privatizações maciças de empresas, como a Petrobras e o Banco do Brasil – foram abandonadas.”
As políticas sociais – Bolsa Família, cotas, aumento programado ano a ano do salário mínimo, gerando aumento de emprego e ampliando o mercado interno a níveis nunca antes alcançados – são destacadas por Samuel. Segundo ele, elas foram fundamentais para proteger o Brasil da crise financeira internacional e permitir que milhões de pessoas saíssem da linha de pobreza e passassem a ter acesso melhor a alimentação, conforto, lazer e saúde. “Esse conjunto de medidas, programas e ações do governo Lula contribuíram decisivamente para que, contrariando os interesses das classes hegemônicas, acontecesse o fato mais notável dessa década, a eleição da primeira mulher presidenta da República.” Vencedor do Prêmio Juca Pato em 2006 (um dos mais importantes do País), Samuel lembra que Dilma Rousseff, além de ser a primeira mulher a presidir o País, ganha força por seu passado de combatente do regime militar.
O embaixador destaca também que a continuidade das políticas do governo Lula por Dilma Rousseff representa uma garantia de que as conquistas (sociais, programas de estímulo, medidas econômicas e redução da desigualdade ainda existente no Brasil) vão continuar. “Para os próximos cinco anos, e mais além, é necessário que se ampliem os mecanismos de geração de emprego, o crescimento do mercado interno com novos programas sociais que deem meios aos mais pobres de melhorar seu padrão de vida.”
A educação, para Samuel, será o ponto-chave para que o Brasil siga crescente. “Os programas educacionais, a política de cotas, o financiamento à educação superior, tudo precisa ser ampliado de modo a permitir o acesso da população pobre à educação como um todo.” Ele considera que, junto com a saúde, a educação – incluindo o prosseguimento do programa de expansão de Escolas Técnicas – são fatores fundamentais para que o trabalhador tenha melhores salários, mais capacitação e condições de vida e trabalho. “É um absurdo que só 51% da força de trabalho tenha carteira assinada. Isso quer dizer que 49% dos trabalhadores estão hoje na situação anterior a 1930. Isso precisa ser mudado com urgência.”
O diplomata considera ainda ser preciso adotar, “o mais rápido possível”, o horário integral nas escolas públicas. O governo já estuda essa medida. “Nenhum país conseguiu crescer, se modernizar, progredir, dar condições de vida a seus cidadãos sem a adoção do ensino em tempo integral, desde a primeira infância”, cobra. Para ele, todo o processo de desenvolvimento exige a melhoria do nível de formação, da qualificação profissional e, “evidentemente, o aumento significativo dos salários dos professores, em todos os níveis. Além disso, precisamos implantar padrões de qualidade em todos os níveis do ensino”.
Para Samuel, não é possível admitir uma instituição de ensino com deficiências na qualidade do serviço. “O ensino precisa ser de alta qualidade e deve estar sob um sistema de análise e fiscalização que impeça que instituições ofereçam uma educação precária. Seria interessante que outras categorias profissionais adotassem um sistema de provas como a OAB. Seria uma maneira de impedir que médicos, engenheiros e outros profissionais chegassem despreparados ao mercado de trabalho.”
O embaixador defende que o Brasil estimule a pesquisa científica e aplicada nas instituições de ensino no País e no exterior, como se pretende com o Programa Ciência Sem Fronteiras, em que o governo dá bolsas para estudantes brasileiros estudarem em universidades estrangeiras. “Esse programa é fundamental para o nosso desenvolvimento científico e tecnológico. Mas temos de atuar aqui dentro, ampliando os centros de pesquisa, dando a infraestrutura de trabalho, de pesquisa, para que os jovens formados em centros de excelência no exterior, ao voltarem para o Brasil, possam prosseguir com seus projetos. Se não fizermos isso, eles terminarão indo de novo para fora por conta própria ou atendendo a boas ofertas de emprego.”
Segundo Samuel, o Brasil precisa também aproveitar a vinda de capitais estrangeiros para o País, por causa da crise financeira internacional, especialmente na Europa e nos Estados Unidos. “É curioso. Falam que o ambiente dos negócios no Brasil é ruim, que o custo Brasil é alto e coisas semelhantes. No entanto, o que se vê são empresas estrangeiras programando investimentos maciços nos setores industriais, aproveitando o bom novo regime automotivo definido pelo governo da presidenta Dilma Rousseff. Na verdade, eles sabem que aqui vão conseguir lucros extraordinários, como as remessas de lucros enormes que as empresas estrangeiras praticam regularmente.”
Apesar da crise internacional e das necessidades de o Brasil investir mais em energia – no projeto Brasil 2022, ele defende que, em dez anos, 50% da produção energética do Brasil venha de fontes renováveis, como a energia eólica, a solar, a biomassa, além de manter os investimentos em hidrelétricas e usinas nucleares –, o que preocupa o embaixador em relação aos próximos cinco anos são as articulações que as classes dominantes, amparadas pela mídia, começam a fazer, impedindo a continuidade dos governos de Lula e Dilma. “A direita já iniciou um processo de desconstrução de Lula e de seus oito anos de governo que, para esse grupo, não existiram ou teriam acontecido há muito tempo. O processo no STF, por exemplo, foi um sinal claro desse tipo de estratégia, de pressão, com todos os desvios de procedimento, de excessos, como considerar que alguém é culpado não porque se provou alguma coisa contra, mas porque deveria saber o que outros estavam fazendo.”
Samuel conclui: “O novo alvo é Dilma, que começa a ser atacada no que sempre foi considerado seu grande mérito, a capacidade de gestão. Tudo para impedir a sua reeleição que, entre outros motivos, como a aprovação crescente do desempenho da presidenta e também por falta de candidatos reais, a direita já vislumbra no horizonte. Enfim, os setores hegemônicos se apavoram em imaginar que uma nova maneira de governar, em beneficio da população, dos menos favorecidos, caminha para ficar pelo menos 16 anos no poder”.
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