Se recordar é viver, o que falar de um poeta que se recorda de mundos inconclusos, de fatos difusos, da rima que se embute dentro da prosa, das sensações de “parecença” ou de parentesco entre os reinos animal, vegetal e mineral? Como dizer que recordar é viver quando o poeta em questão se derrama em olhares renovados, todos os dias, sobre um Pantanal infinito e, ao mesmo tempo, se fecha nas copas do tempo, dando um zoom na lente sobre um beija-flor, uma abelha, a terra fecundada?
Manoel de Barros recorda tempos idos e vividos, mas também tempos ocultos e escondidos. Um olhar diferente sobre o chão que se planta e sobre o planeta que se refunda. E afunda em lenta e doce agonia poética, pois essa é a matéria da qual são feitas as linhas de Manoel que, muitas vezes, pode soar piegas ou pueril, mas é um artista de primeira grandeza da sensibilidade humana.
Seu mais recente livro, Escritos em Verbal de Ave, deixa sólida a impressão de que em poesia tudo é possível. Melhor assim. E ele faz bom uso dessa regra desregrada ao nos trazer de volta e matar seu já conhecido personagem Bernardo, que percorre de maneira natural os estranhamentos do mundo, traduzindo-os de uma maneira factível para os mortais que não estão imersos no incenso da poesia. E como incenso a poética de Manoel é forte, toma conta do ambiente, cheira menos doce, mas tão pronunciado quanto um café de coador que se passa ao final da tarde quando olhamos o pôr do sol.
Nesse pôr de sol, podemos contemplar quando o sereno ainda não baixou, os “desobjetos” de Bernardo que estão listados no livro e vão desde um improvável martelo de pregar água a um besouro de olhar ajoelhado. Pois perante tanto desamor e insensibilidade é preciso ficar de joelhos diante do pouco de boa poesia que existe no mundo, em particular nesse “Brasilzão” que tanto valoriza o asfalto, o cimento, a oca poesia abjeta que esfria nas paredes refrigeradas dos shopping centers.
Para quem acompanha a poesia de Manoel de Barros, Bernardo já foi visto em O Guardador de Águas, Livro de Pré-Coisas e, o mais recente, Menino do Mato. No Escritos em Verbal de Ave, a morte dele vem com a marca da sutileza que sempre está presente no poeta nonagenário. Em uma manhã, feito um passarinho, Bernardo deixa a vida e aos leitores a descoberta de que também escrevia em “verbal de ave”. E sua palavra transcende, deixa para trás um lírico saudosismo contemplativo, que é aliás a marca d’água de toda a poesia de Manoel de Barros.
“De tarde o deserto já estava em nós“, sentencia o livro. A frase poética reverbera como ferro quente quando pensamos como o mundo se ressente de poesia e de coisas simples. E como dizia outro grande poeta, Rubem Braga, esse em prosa, o maior cronista que o Brasil já teve, as melhores coisas da vida são as mais simples. Como a receita de molhar os pés nas águas do Pantanal, tomando uma cachacinha na barranca de um rio a contemplar a paisagem, o “rebojo” com a voz da mítica mãe d’água a declamar Manoel de Barros.
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