Perto do coração selvagem

Sul de Angola, 300 km da capital Luanda. O carioca Fred d’Orey e alguns amigos chegam a uma pequena vila. Observados com curiosidade, eles entram no mar. Ao ficarem em pé sobre suas pranchas, causam uma reação inesperada. Com os olhos vidrados nos surfistas, a comunidade festeja. Uns jogam chapéus para o alto; outros, gritam e aplaudem. O primeiro e último registro de um surfista na região data de 1974. Para muitos, andar sobre as águas era um “feito” inédito.

Aos 40 anos, não era a primeira vez que Fred, hoje com 47, presenciava aquele choque de civilizações. O empresário, que cresceu no Arpoador e surfa desde os sete anos de idade, gosta de ir longe quando o propósito é a busca da onda perfeita. Enquanto a maioria dos surfistas ruma às praias da Indonésia e ao Havaí – onde as ondas são reconhecidamente de qualidade para a prática do esporte -, Fred d’Orey prefere a incerteza do desconhecido. Libéria, Angola e Índia são alguns destinos que ele carrega na bagagem. Já esteve em 37 países. “Gosto muito desses lugares em que você não vai encontrar ninguém com bermuda de surfe, apenas com roupas tradicionais. Lugares aonde ninguém nem os surfistas chegaram ainda”, diz ele.
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O risco da aventura já resultou tanto em preciosas descobertas, como ondas jamais surfadas nos arquipélagos Andaman e Nicobar, no Golfo de Bengala (Índia), como em grandes “roubadas”. “Na década de 1980, fui para Jacarta atrás de uma lendária onda chamada Ombak Tujuh. Não havia carro para alugar no aeroporto naquela época, então peguei um táxi, o motorista me disse que sabia chegar à costa. Ele desceu uma estrada muito íngreme e, em certo momento, na escuridão da noite, foi rio adentro. Conseguimos tirar o carro do meio do rio e, no dia seguinte, segui viagem. Ao chegar lá, não havia nada. Nenhuma onda. Era um lugar fantasma cheio de malária”, lembra. Ombak Tujuh foi “encontrada” no final dos anos 1980. Hoje, é uma onda famosa no meio do surfe e considerada a maior da Indonésia (com cerca de 8 m de altura).

Filho de um piloto de Fórmula 1 (veja quadro) e de uma decoradora, Fred cresceu em Ipanema em uma época em que a contracultura ganhava o mundo, inclusive as praias do Rio de Janeiro. Ainda garoto, observava fascinado os surfistas de cabelos parafinados e espírito libertário, que mais tarde se tornariam personagens da história do esporte, como Cauli Rodrigues, Daniel Friedman e José Artur Machado, o Petit (que ficou conhecido por inspirar a música Menino do Rio, de Caetano Veloso). “Pensava que um dia queria fazer parte daquilo”, diz.

Começou a surfar com uma prancha velha que havia trocado por uma bicicleta no mesmo estado e não parou mais. Tornou-se um atleta bem-sucedido – venceu uma etapa do campeonato brasileiro, em Saquarema (RJ), em 1987 – e chegou a ser o surfista mais bem pago do Brasil. Mas logo abandonou as competições. “Sinceramente, eu odiava campeonato”, argumenta.

Abriu um jornal de surfe, com tiragem de 15 mil exemplares e distribuição nacional, e também chegou a ser editor de uma revista segmentada – as viagens que faz rendem artigos até hoje para publicações especializadas. Fred d’Orey também é autor do livro Outras Ondas (Editora Gaia).

O insight para se tornar um empresário de moda – ele é proprietário da marca de roupas Totem – veio, claro, quando estava na praia, mais precisamente na Guarda do Embaú (SC). “Percebi que as pessoas se vestiam de forma muito careta, as meninas de shorts jeans e os caras de calção preto e cinza. Quis inserir cor e estampa, que eu sempre gostei”, diz. “Foi uma forma de construir minha vida para que eu pudesse ir sempre para a Indonésia. É um sonho que realizei”, completa. Fred já esteve 40 vezes no país. Atualmente, ele vai à Indonésia ao menos duas vezes por ano a negócios.

Os destinos insólitos das viagens que ele costuma fazer normalmente surgem quando toca o telefone e seu amigo John Callahan, fotógrafo norte-americano especializado em surfe, autor do retrato que abre esta reportagem, está do outro lado da linha. “Eu o considero o ‘Indiana Jones’ do surfe. A vida dele é montar essas expedições. Ele sempre está em busca dos lugares mais remotos, onde nunca ninguém surfou”, conta.

O convite mais recente – uma viagem ao Gabão que, segundo ele, é a “Indonésia da África”, em termos de onda – aconteceu justamente durante a semana do Fashion Rio, e Fred teve de recusá-lo, já que sua marca participa do evento de moda.

Apesar de serem grandes aventuras, as viagens exigem planejamento. Uma das que demandaram maior preparação foi a expedição para os arquipélagos Andaman e Nicobar, na Índia. Fred d’Orey e Callahan esperaram 10 anos pela autorização para ter acesso aos locais, que abrigam base militar. “É uma área muito bem guardada, acredita-se que também seja uma base nuclear”, afirma. “É o lugar mais remoto do planeta, onde há as tribos mais intocadas. Para se ter uma ideia, um cinegrafista foi morto na região por flechada”, completa.

DE PAI PARA FILHO
Ir além é um legado de família. Fritz d’Orey, pai de Fred, hoje com 72 anos, também gostava de ultrapassar os limites – no caso, os de velocidade. Ele foi um dos principais pilotos de Fórmula 1 do Brasil na década de 1950.
Sua carreira foi meteórica. Estreou nas pistas aos 19 anos, com vitória no Autódromo de Interlagos, pilotando um Porsche; dois anos mais tarde, estava na Europa – levado pelo pentacampeão de F1, o argentino Juan Manuel Fangio -, onde debutou na modalidade pela Scuderia Centro Sud. Era o Grande Prêmio da França, em Reims; Fritz correu com uma Maserati 250F e ficou em 10o lugar. No total, chegou a disputar três provas de Fórmula 1.

Foto: Arquivo pessoal

Fritz d’Orey
O pai de Fred, com sua Ferrari em Le Mans, em 1959

Em 1960, o piloto foi contratado pela Ferrari, mesmo ano em que encerrou prematuramente sua carreira, aos 22 anos. Durante o treino das tradicionais 24 Horas de Le Mans (França), sofreu um grave acidente. Seu carro saiu da pista a 270 km/h e bateu em uma árvore, partindo-se ao meio. Sofreu traumatismo craniano, além de diversas fraturas, que o deixaram oito meses hospitalizado. Ao se recuperar, afastou-se das pistas e passou a trabalhar nas empresas do pai – uma construtora e uma revendedora de automóveis – até se aposentar.

Além de estarem localizados a mil km da costa indiana, os arquipélagos são distantes entre si. São 22 horas de barco para viajar de um a outro. “Conseguimos autorização apenas para Andaman, mas, mesmo assim, não resistimos e, com o risco de sermos deportados, fomos conhecer também Nicobar”, afirma.

A impressão ao pisar em Andaman e Nicobar foi a de ter voltado no tempo – não apenas décadas, mas milênios. Fred descreve que a mata densa, fechada e exuberante lembra as imagens que conhecemos do período jurássico. “É muito diferente de tudo que já havia visto”, diz. Em Nicobar, os membros das tribos têm traços malaios (a Malásia está mais próxima da ilha que o continente indiano, a qual pertence). “Já em Andaman, eles parecem negros africanos”, completa.

Para encontrar as ondas que tanto procuravam, eles caminharam pela areia da praia seguindo a direção do vento, até chegar a um canal (zona marítima onde a correnteza se movimenta em direção ao alto-mar). Colocaram as pranchas em um pequeno barco e, mesmo sem sinal de ondas no horizonte, navegaram mar adentro. Centenas de metros adiante, “elas” apareceram. “Antes de o barco ancorar, eu já pulei na água. Tinha encontrado ‘a onda’. Faltava uma hora para anoitecer e eu tinha pressa. Sabia que as ondas estavam excepcionais. Foi uma das melhores sessões de surfe da minha vida”, lembra.

Hoje, Fred carrega o mérito de ter sido o único brasileiro a ter desbravado as ondas de Andaman e Nicobar, que continuam quebrando solitárias. E de ter batizado uma delas. Escolheu o nome de sua confecção, Totem Re.

As maiores ondas de sua vida ele pegou no Havaí, mas é na Libéria que estão algumas de suas melhores lembranças. “É um país de um surfista só.” Relata que esse surfista descobriu o esporte enquanto saqueava o porto em busca de um saco de arroz, após a guerra, e viu um bodyboard (prancha menor e mais macia que a de surfe) abandonado. “Ele pegou essa prancha e começou a surfar deitado, até que a ONU chegou àquela região do país”, conta ele, que explorou a costa Norte da Libéria em 2006. De acordo com Fred, foi um funcionário das Nações Unidas, que pegava onda, que introduziu o surfe na Libéria. “Ele deu a prancha dele ao menino, que chamava o surfe de slide (deslizar, em português), e o ensinou a surfar em pé”, diz. “Quando cheguei à Libéria, esse menino era o único surfista do país. Não sabia quem era Kelly Slater (nove vezes campeão mundial de surfe) nem nunca tinha ouvido falar em Havaí. Ele surfava de blazer e short, porque era a única roupa que tinha.” E as ondas? “Descobrimos cinco ondas na Libéria. Elas foram nossa recompensa, mas o mais sensacional dessa viagem foi essa troca, a experiência de conhecer a história em seu estado puro.”

Fred constatou que o continente africano era mesmo como descrevia um de seus escritores favoritos, o polonês Ryszard Kapuscinski, em Ébano: “A África é um planeta diferente, composto de várias nações, um cosmo múltiplo. Na verdade, a não ser pela denominação geográfica, a África não existe.”

Antes de por o pé na estrada, Fred d’Orey visita as páginas dos livros. Ele conheceu a Angola de António Lobo Antunes, enquanto arrumava as malas para viajar ao país. E uma expedição para o Peru foi desculpa para se dedicar às obras completas de Mario Vargas Llosa.

Enquanto um novo destino não bate à sua porta e, com ele, sua inspiração literária, o empresário, que gosta de ler vários livros ao mesmo tempo, se diverte com Patti Smith (Just Kids), Tennessee Williams (Collected Stories), Peter Doggett (There’ a Riot Going On) e Caetano Veloso (O Mundo Não é Chato). Para não perder o costume de continuar sempre viajando.

Sebá, fotógrafo no limite

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