Pesquisadora da USP questiona motivação por trás da divulgação de dados sobre o PCC

Na última sexta-feira, dia 11, o jornal Estado de S.Paulo publicou uma grande reportagem sobre o Primeiro Comando da Capital (PCC), com dados detalhados sobre a organização criminosa reunidos a partir de um mapeamento inédito feito pelo Ministério Público Estadual (MPE) em três anos e meio de investigação. Com as informações, o MPE denunciou 175 acusados e pediu à Justiça a internação de 32 presos no Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), entre eles toda a cúpula do PCC – hoje detida em Presidente Venceslau.

Apesar do grande barulho que se fez nos últimos dias acerca do material, tratado como inédito e extremamente revelador, há quem questione o que está por trás da divulgação dos dados, como a socióloga Camila Caldeira Nunes Dias, pesquisadora-associada do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) e professora da UFABC. Segundo ela, grande parte das informações do “raio x” do PCC são antigos, de modo que a grande questão que fica é: “A quem serve isso tudo nesse momento? A quem beneficia? Essa denúncia, por exemplo, de que o governador foi ameaçado, é de 2011. Então por que isso agora causa esse estardalhaço?”.

Dias é autora de “Hegemonia nas Prisões e Monopólio da Violência” (Saraiva),  livro que analisa a estrutura do PCC e como se deu o processo de expansão da organização nas prisões, e conversou com a Brasileiros sobre os dados divulgados pela reportagem do Estadão. Entre eles, que o PCC age em 22 Estados do País, na Bolívia e no Paraguai, domina 90% dos presídios de São Paulo, fatura cerca de R$ 8 milhões por mês com o tráfico de drogas e outros R$ 2 milhões com sua loteria. Leia a entrevista:


Brasileiros – O mapeamento divulgado pela reportagem do Estadão traz de fato muitas informações novas sobre o PCC?
Camila Dias – Na verdade, não há muita novidade. O que há é um detalhamento maior daquilo que já se sabia. Sobre a presença do PCC nos outros Estados, por exemplo, não é novidade que eles têm uma forte presença no Paraná, no Mato Grosso do Sul e cada vez mais no Nordeste. Também não sei o quanto esses números são tão exatos, porque é difícil medir. Os números são muito dinâmicos, mudam constantemente. Então, para mim, a maior novidade foi a divulgação em si. Eu acho estranho, não sei por que surge nesse momento, deve haver alguma razão. E, sobretudo, informações que as autoridades paulistas há muitos anos negam que existam… Reiteradamente as autoridades de São Paulo negam que o PCC tenha essa força, essa influência…

Brasileiros – Você acha que há alguma motivação política por trás dessa divulgação?
C.D – Não tenho informações para afirmar. Mas fica essa questão: A quem serve isso tudo? A quem beneficia? Essa denúncia, por exemplo, de que o governador foi ameaçado, é de 2011. Então por que isso agora causa esse estardalhaço?

Brasileiros – De qualquer modo, pelo que o MPE afirma, são cerca de 11 mil membros do PCC, com um arsenal de armas, dinheiro, bases em vários Estados e influência até mesmo na política oficial. Isso representa um poder paralelo no País, uma ameaça ao Estado?
C.D – Nós que pesquisamos o assunto não trabalhamos mais com a noção de poder paralelo, porque o “paralelo” dá a entender que são realidades que não se cruzam, não se tocam. E nesse caso a gente sabe que o PCC só existe porque há uma forte conexão com setores do próprio Estado, com atores e instituições… Então não são poderes paralelos; estão conectados, articulados, de uma forma que permite a existência da organização. Se não houvesse corrupção policial, corrupção dentro das prisões, interesses que permitem a lavagem de dinheiro, enfim, todo o funcionamento dessa máquina…

Brasileiros – Dos membros do PCC, o número de presos é muito maior do que o de pessoas em liberdade, o que significa que grande número dos integrantes está nas mãos do Estado. Então porque o Estado não consegue combater a organização?
C.D – De um ponto de vista, a existência do PCC, ao mesmo tempo que é um grande problema para o Estado, em muitos casos acaba sendo também conveniente. Por exemplo, em São Paulo, que tem uma política de encarceramento em massa desde os anos 1990, só é possível manter essa política, em um sistema prisional que não tem a mínima infraestrutura adequada para que os presos cumpram a pena com um mínimo de dignidade, porque existe uma instância de controle dentro das prisões. Então é o próprio PCC que dá as condições para a manutenção do processo do encarceramento. Nesse sentido, é muito funcional para o próprio Estado.

Brasileiros – Agora, você acha que faz sentido a afirmação do Marcola (chefe do comando) de que o número de homicídios caiu em SP por conta do PCC, não do governo?
C.D – Acho que há muitos fatores que podem explicar a queda dos homicídios nas últimas décadas. Mas o fato de que o PCC tenha adquirido uma hegemonia no mundo do crime, sobretudo no tráfico, e o fato de que ele tenha passado a regular as relações e mediar os conflitos nesse universo, na minha concepção isso é fundamental. Porque uma queda de 70%, 80%, é muito forte, não há como justificar essa queda só através das políticas de segurança. O que houve foi uma nova forma de articulação que fez surgir uma nova dinâmica criminal, na qual os homicídios tem menos espaço.

Brasileiros – E ao mostrar tanta força, o PCC aumenta também o seu poder de barganha. A Folha publicou matéria nesta segunda-feira que diz que o grupo ameaça agir se for reprimido, por exemplo. Como fica o Estado numa situação dessas?
C.D – Essa relação do Estado com o PCC é como um cabo de guerra, ou um jogo de xadrez. Os atores dos dois lados vão dando cartadas, definindo estratégias para fazer valer seus interesses. É claro que agora, com esse noticiário todo, e com as ameaças claras do Ministério Público, que está pedindo Regime Disciplinar Diferenciado, eles têm todo interesse de querer evitar esse regime a todo custo. Porque o RDD é o maior receio dos membros do PCC, porque isola de fato. Então é natural que vai haver uma tentativa de resposta agora, e o Estado sabe disso. Se o Estado sabe disso, então por isso minha pergunta é: por que isso agora? Por que divulgar informações que vão causar uma desestabilização, e que têm potencial de trazer conflitos?

Brasileiros – Como você interpreta a recusa da Justiça de Presidente Prudente de decretar prisões e internar a cúpula no RDD da penitenciária? É muito absurdo dizer que pode haver rabo preso aí? Parece algo suspeito?
C.D – Eu penso que não. Acho que o acesso do PCC a esse nível de poder de Estado é muito localizado, pontual. A organização não está enraizada no Poder Judiciário. Se existe uma relação de corrupção, é um ou outro juiz ou desembargador comprado, casos pontuais. Acho que o Juiz que negou o RDD foi, inclusive, exposto de um modo covarde, porque o nome dele foi apresentado, e ele fica como responsável por um cenário de insegurança. E caso mude de ideia e conceda o RDD, vai ser marcado também, pelo próprio PCC. E fico pensando… Há uma investigação de mais de dois anos, e ao que me parece não há nenhum fato novo. Então por que esse pedido de RDD nesse momento? Então por que o Juiz teria que decidir mandar todo mundo pro RDD agora? Por que a urgência neste momento?

Brasileiros – Quando você fala dessa exposição do nome do Juiz, há também o papel da mídia. A imprensa deveria ser mais cuidadosa?
C.D – A mídia, em boa parte, está preocupada mais em ter audiência do que em qualquer outra coisa. Mas a questão é de onde partiu esse material, pois a mídia apenas passou adiante.   

Brasileiros – Para concluir. Em uma entrevista você afirmou que “o perfil do PCC não tem paralelo. Não é um cartel, não se parece com a máfia e nem tem as características das gangues americanas tradicionais”. O que você diria que é o PCC?
C.D – Ele tem algumas especificidades. Surge dentro das prisões, como uma tentativa de reação por parte da população carcerária em relação à opressão do sistema prisional. Claro que nesse 20 anos, o PPC se tornou uma organização “de criminosos”, porque tem como forma de manutenção financeira e econômica atividades ilícitas, como o tráfico, assaltos etc. Mas o que ele tem de diferente é a parte ideológica, política, que é muito forte para entender a sua existência. Apenas a parte econômica não é suficiente para entender o porque de o PCC permanecer forte hoje. E esse lado ideológico/político se alimenta justamente desse discurso que toma o Estado como seu inimigo, opressor, violador do direito. É um discurso de legitimação construído sobretudo com base na experiência do encarceramento, também na experiência cotidiana no que se refere à polícia, violenta, opressora… Então são elementos que fazem parte do cotidiano das pessoas, o que acaba dando legitimidade para o PCC exercer seu controle sobre a população carcerária. Por isso, apenas com repressão não se consegue desarticular a organização.
O discurso deles têm ancoragem na experiência dessas pessoas. Enquanto o Estado continuar encarcerando do jeito que faz, nas condições sub-humanas que apresentam as prisões de SP, ele vai estar fortalecendo o PCC.

Brasileiros – E a afirmação que a reportagem do Estadão faz de que o PCC quer entrar na vida política oficial?
C.D – O que já se sabe é que eles financiam alguns vereadores, deputados. Acho que, assim como você tem muitos policiais militares no Legislativo, que fazem lobbies pros seus interesses, o PCC também deve ter interesse nisso. Mas não acho que haja uma coisa muito sistematizada, pelo menos nesse momento. Parece meio delírio isso.



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