Do atendimento às medidas sanitárias e produção acadêmica, a saúde brasileira convive com uma carga de cinismo que leva a contradições e prejuízo aos indivíduos. Qual é a origem desse mal? Por que se perpetua e, ao mesmo tempo, passa desapercebido, como fosse natural? Para dissecar essa ideia,os doutores em saúde pública Luis David Castiel e Danielle Ribeiro de Moraes e o doutor em antropologia social Caco Xavier fizeram uma grande investigação sobre a presença do cinismo no discurso científico, acadêmico e na saúde coletiva.
O resultado dessa busca, que revela fragilidades e incongruências, está reunido na obra À Procura de um Mundo Melhor: apontamentos sobre o cinismo em saúde, lançada pela Editora Fiocruz. “Não se trata de seguir adequadamente argumentações lógicas, mas de dissipar de diante dos olhos a fumaça que nos oculta o óbvio”, indicam os autores.
“Cientistas primam pelo cinismo quando se autopromovem e, a serviço do mercado da saúde, impõem ao público consumidor, e aos ‘colegas’, o uso das tecnologias de melhoramento”, afirma o pesquisador Gil Sevalho, da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) no prefácio da obra. Sevalho prossegue: “A homilia que descontextualiza os fenômenos da saúde e lhes atribui uma falsa natureza desinteressada e apolítica nada mais é do que o discurso cínico da ciência médica em sua sórdida composição com o neoliberalismo.”
Armadilha do autocontrole
A obra descreve situações em que o cinismo influencia os rumos da saúde. Uma delas é o chamado constante feito aos indivíduos para se responsabilizarem pessoalmente pelo cuidado com a própria saúde. Por essa lógica, as pessoas têm a obrigação moral de se autocuidar, sem levar em conta as injunções do contexto dominante.
Os indivíduos devem seguir comportamentos que se caracterizam, sobretudo, pelo autocontrole que os “especialistas” indicam como as “medidas certas”. Esses mesmos indivíduos são também alvo dos apelos midiáticos para consumir serviços e produtos para ter saúde e das facilidades de acesso aos fastfoods e bebidas alcóolicas, por exemplo. E são ainda, em geral, intensamente expostos a fontes de desgaste e sofrimento no trabalho e na vida urbana, sem que essas situações potencialmente causadoras de adoecimento sejam, de fato, levadas em conta. No máximo, recebem orientação ‘especializada’ sobre como administrar o próprio estresse.
“Sem dúvidas, há um processo reiterado de naturalização dos mal-estares na nossa civilização”, assinalam os autores.
Outro exemplo de cinismo acontece em relação à automedicação. As críticas feitas ao problema, segundo os autores, não consideram aspectos como a transformação dos médicos em prestadores de serviços e dos pacientes em consumidores; e a influência que as indústrias farmacêuticas e as empresas de planos de saúde exercem sobre as prescrições médicas.
Os autores observaram ainda a interferência do cinismo na esfera acadêmica. Eles citam como exemplo a escolha de diferentes técnicas analíticas para avaliar o mesmo conjunto de dados, o que pode produzir resultados e conclusões diversos. Ao mencionar a possibilidade de gerar evidências passíveis de acobertar interesses mercadológicos, os doutores em saúde pública e antropologia social se dizem especialmente preocupados por causa do momento atual. “Predomina agora um modelo de universidade operacional utilitário-competitiva que evita criticar de modo estrutural o presente estado de coisas”, afirmam.
Ao lançarem luz sobre essas contradições, na maioria das vezes negligenciadas pelos discursos dominantes, os textos que compõem o livro têm em comum “a preocupação com a proliferação de enunciados cínicos no campo da saúde que, inapelavelmente, se relaciona a muitas das precariedades presentes”. Com destaque para as iniquidades em saúde.
* Com informações da Agência Fiocruz de Notícias
Deixe um comentário