Foi aberta uma polêmica de grandes dimensões em torno do modelo de exploração das vultosas reservas de petróleo e gás encontradas no litoral brasileiro este ano. O potencial de energia mineral contido na camada encontrada – com cerca de 800 quilômetros de extensão, a mais de seis mil metros de profundidade, abaixo de uma camada de sal, daí o nome pré-sal – justifica o calor do debate. Há alguns meses, o presidente venezuelano comentou de forma irônica a eventual entrada do Brasil na OPEP. O fato é que, de acordo com as estimativas, o País poderá ficar com a sexta posição em reservas petrolíferas no mundo. As reservas brasileiras passariam a ser mais do que sete vezes superiores às atuais.
A exploração dessas reservas pressupõe investimentos na casa de centenas de bilhões de dólares, cujo retorno, apesar de difícil de projetar no presente, deve chegar a cifras substancialmente maiores, durante muito tempo. Pode estar ali no fundo do mar a fonte de prosperidade das nossas futuras gerações.
Além da definição da origem dos recursos para esses investimentos, veio à tona uma pergunta maior: será que o País precisa de novas estruturas institucionais e/ou empresariais nesse processo?
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No fundo, o que está em pauta é a eventual necessidade de reformar o marco regulatório que rege o petróleo a partir da nova realidade. O assunto é assustadoramente controverso, pois esbarra em várias questões simultaneamente: o papel e a posição da Petrobras; o grau e o formato da participação estatal em todo o processo; a distribuição dos ganhos entre a União e os demais entes federativos; a destinação ou utilização da riqueza originada nessa atividade. Isso, só para falar dos impactos diretos.
Pensando primeiro na Petrobras, a proposta de criação de uma nova empresa estatal ‘esvazia’ uma empresa muito produtiva, com expressiva atuação internacional e cujos resultados são melhores a cada ano. A dinâmica que ela adquiriu nos últimos tempos só pode ser benéfica ao conjunto do País. Sabendo que, efetivamente, a Petrobras não pode ter disponíveis os recursos necessários para o desenvolvimento do pré-sal, a arquitetura financeira a ser montada não deve apresentar, a priori, contradições com os interesses do governo e da sociedade. Ela já solicitou ao governo autorização para ampliar seu capital. Ademais, apenas as especulações acerca de possíveis mudanças podem ocasionar arranhões na credibilidade da nossa maior empresa multinacional aos olhos dos investidores e oscilações indesejáveis nos mercados de capitais. Com nova estatal ou com a Petrobras, não parece haver dúvidas de que a opção do governo está mais para manter o controle público. Mas controle não é exclusividade, mesmo porque não existem recursos públicos disponíveis na magnitude necessária para a exploração do pré-sal. Resta, então, definir as regras de participação privada, o que equivale a rever o marco regulatório vigente.
Quanto ao modelo de exploração, muito se tem falado sobre a experiência norueguesa. Lá foi criada uma estatal responsável pela administração das novas descobertas, enquanto a tradicional empresa pública de petróleo foi sendo aberta à participação privada – hoje ainda 62% do capital é público. A estatal que cuida das reservas recebe 30% da produção nacional de petróleo. O governo norueguês tem ainda os rendimentos de suas ações da petrolífera de economia mista e taxa os lucros das empresas privadas participantes. Lá, a estatal responsável pela produção faz investimentos diretos na exploração e fica sócia do empreendimento. O valor da participação estatal varia em função do risco.
Na Noruega, como em outros países com elevadas receitas de exportação, foi criado um fundo soberano. Os chamados fundos de riqueza soberana surgiram a partir de uma situação em que as reservas internacionais de alguns países ultrapassaram um nível tido como necessário e suficiente para enfrentar choques e emergências financeiras externas. As primeiras iniciativas datam já dos anos 1950 em países petrolíferos ou para administrar recursos oriundos de reservas naturais. O patrimônio em moeda estrangeira desses fundos é, em geral, aplicado fora do país. Os recursos podem ser administrados por um organismo estatal e são geralmente utilizados no apoio à produção nacional ou em projetos internacionais de interesse do governo que os detêm.
O governo brasileiro apresentou uma primeira proposta de criação de um fundo soberano em maio de 2008, em meio à continuidade da acentuada apreciação do real e à chegada do investment grade (a inserção do Brasil no grupo de países considerados sem risco de crédito). Naquele momento, chegou-se a uma proposta de fundo soberano diferente, nos moldes de uma poupança fiscal, com a finalidade de manter a capacidade de gastos do governo em episódios de reversão do ciclo econômico e correspondente a 0,5% do PIB. Agora, a eventualidade de ter de administrar um montante de recursos substancialmente maior dá vida nova à proposta enviada ao Congresso, apesar de nada estar ainda definido.
A verdade é que toda a movimentação em torno dos recursos originados pelas novas descobertas tem uma motivação econômica clara: haverá muito a receber no futuro e deve-se definir como será a partilha. Atualmente, as receitas sobre o valor total da produção dos campos (royalties) são distribuídas entre Estados e municípios onde se encontra o petróleo, a Marinha, o Ministério da Ciência e Tecnologia. Há ainda um fundo especial, com recursos adicionais transferidos para os mesmos municípios. Além disso, existem as participações especiais, que são compensações cobradas dos maiores campos. Isso tudo representa uma arrecadação importante para alguns Estados, em especial para o Rio de Janeiro. Governadores dos Estados que mais arrecadam hoje repudiam a proposta de mudança.
Outras opiniões ressaltam os avanços conquistados pelo marco regulatório que vigora hoje: o notável crescimento do setor petrolífero na economia nacional, o ganho de dinamismo e rentabilidade da Petrobras e sua capacitação técnica para explorar o que está no fundo do mar. Definido um modelo de exploração e participação do Estado, surge uma preocupação adicional, relacionada com a possibilidade de que as grandes entradas de divisas oriundas das exportações de petróleo possam produzir ainda mais apreciação de nossa moeda e ocasionar a famosa “doença holandesa”. Essa preocupação, no Brasil, já povoa as conversas dos analistas econômicos e as pautas de estudos acadêmicos desde que o real vem ganhando valor de forma sustentada. Denomina-se “doença holandesa” um fenômeno ocorrido na década de 1970 de perda relativa de competitividade da indústria holandesa frente à apreciação do florim em razão da descoberta, exploração e exportação de gás natural pelo país. O aumento das exportações levou a uma apreciação cambial e conseqüente barateamento das importações, o que teria estimulado uma diminuição da importância da indústria na produção nacional.
O grande temor entre nós seria o de intensificar esse processo, mesmo com resultados ainda inconclusivos de estudos feitos sobre o assunto no Brasil. Não é certo que a folga em moeda estrangeira desestruture a produção industrial doméstica e desemboque em desperdício ou consumo desenfreado. Tudo depende dos estímulos da política econômica e dos rumos que forem traçados para os investimentos. É certo que os recursos originados pelo pré-sal abrem uma extraordinária oportunidade para o País. Se forem utilizados para resolver desequilíbrios estruturais e ampliar o bem-estar social, não é exagero imaginar uma virada nos rumos do desenvolvimento.
O debate sobre o petróleo está apenas começando. Para além de acusações de aproveitamento político das boas notícias ou do debate acerca da participação estatal, está aberta uma janela para olhar o País a longo prazo. Se muitos participarem das discussões, tanto melhor para o Brasil!
*Economista, professora da PUC/SP e consultora da FGV Projetos
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