Piauí abre passagem

O Piauí sempre atraiu a minha simpatia, pela modéstia da sua pobreza. O Maranhão também é pobre, mas tem o charme de São Luís, fundada pelos franceses, e, mais, tem gente muito poderosa na República. O Piauí não, é pura pobreza brasileira, sem padrinhos. Daí que eu sempre quis conhecê-lo por dentro. Também uma outra razão me puxou: é que tenho lá um amigo de 20 anos, atleta que venceu a Maratona do Rio quando eu era prefeito, ficou meu amigo pelo caráter, pela modéstia, pelo idealismo, e porque gosta de política deu ao filho o nome de Leon em homenagem a Trotski. Como são importantes os amigos.

Fui. Cheguei de avião a Teresina, capital construída pelo grande Saraiva que lá foi ser governador nomeado pelo imperador. O nome homenageava a imperatriz. Fui aprendendo. Charme não tem, a capital; tem é um trânsito infernal nas ruas já estreitas, algumas praças amplas com árvores, um museu que conta a história, e o recanto do encontro das águas, as do pequeno Rio Poti com o grande Parnaíba, um dos maiores genuinamente brasileiros, por onde transitou há tempos uma navegação de belas barcaças até a foz. Nesse recanto, onde viveu o lendário Cara de Cuia, que importunava as moças jogando-as na água, e hoje não existe mais, comprei uma estatueta dele talhada na pedra.
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Eu ia para o norte, ao delta do Parnaíba, maravilha, uma das jóias do Piauí e do Brasil, queria muito ver as dunas e a Ilha do Caju, ficar numa pousada na ilha que ainda tem as mesmas condições vistas pelos que chegaram a ela em expedições litorâneas no século XVI. Mas a pousada não aceita crianças; não sei exatamente por que, mas são irredutíveis. Eu estava com minha mulher, um filho e uma neta de 9 anos, a principal figura do grupo.

Ora, paciência. Fomos para o sul, nós e o meu amigo Joaquim, ele é de lá, e é lá no sul que está o bojo do Piauí, onde tudo começou com a criação de bois.

Fui aprendendo.

São José do Piauhy, terra extensa e perdida no sertão, a mil quilômetros do mar pelos dois lados, ao leste e ao norte, só começou a ser ocupada depois da expulsão dos holandeses, no meio dos 1600, e só foi capitania cem anos depois, no reinado de dom José I, por isso aquele São José no nome que depois desapareceu. Capitania, sim, mas muito precariamente – os governadores nomeados não queriam ir para aquele fim de mundo. E a metrópole colonizadora não insistia; não tinha nenhum interesse lá, nem ouro, nem açúcar, nem pedras preciosas.

Sertão do sertão, muito depois do São Francisco, passadas serras e chapadas, abria-se em enorme campo plano e verde para o gado – pouca gente e muito gado, foi assim desde o início, brasileiros, mamelucos aventureiros, homens rudes, enfrentando os índios e estabelecendo currais, só homens, as mulheres eram índias. Já era Brasil, mas foram 200 anos sem ordem e 300 sem progresso, até o meio dos 1900. Alguns jesuítas no começo, como sempre, mas principalmente bandeirantes que vinham de São Paulo para caçar índios: Domingos Jorge Velho, o mesmo que depois foi contratado para exterminar o Quilombo dos Palmares – sim, foi ele! -, juntamente com outro Domingos, Mafrense, também chamado Sertão, foram os principais que abriram aquelas terras, guerrearam com os índios, puseram gado, ficaram lá uns dez ou 20 anos estabelecidos. Veio também o gado grande da Casa da Torre da Baía, os D’Avila. A ordem era deles. Nenhuma vila, só currais esparsos. A primeira vila, Mocha, só veio na segunda década dos 1700 e foi única até o fim do século. O mando era inteiramente deles.

Só quase no meio dos 1800 chegou gente de mando em nome da Coroa: primeiro o barão de Parnaíba, piauiense mesmo, logo depois da Independência; depois o fluminense Zacarias de Góis e o baiano Saraiva, o Conselheiro. Com eles, alguns melhoramentos: o Liceu, a companhia de navegação, um certo comércio, e a nova capital, construída sobre a Vila do Poti, rebatizada de Teresina, para substituir a velha Oeiras, muito isolada. E depois algumas ajudas naturais: a borracha, o babaçu, a cera de carnaúba que fazia os primeiros discos, importantes para a região, mas pobres e fugazes. O principal sempre foi o gado, o boi do Piauí. A pecuária, aliás, foi a base da primeira economia verdadeiramente brasileira, isto é, que produzia para o mercado interno: o boi para mover os carros e as moendas, para dar a carne de comer e o couro das botas, dos chapéus e das vestimentas; o burro das tropas de carregar tudo, até o ouro que saía das minas.

Na segunda metade do século XX tudo mudou, o Piauí teve universidade, deu piauienses muitos que brilham por aí, ou que brilharam, como Petrônio Portela, Carlos Castelo Branco. E hoje a capitania abre suas passagens e mostra aos forasteiros suas jóias: o delta que acabei não vendo, o próprio Parnaíba (que poderia ter uma navegaçãozinha turística); Oeiras, a velha capital que homenageava o grande Pombal; a primeira cidade da capitania, que antes se chamava Mocha e hoje é tombada pelo Patrimônio; as Sete Cidades, um majestoso conjunto produzido pelos elementos da natureza; os jatos de água surgentes da terra no Vale do Gurgueia; e a jóia das jóias, o Parque Nacional da Serra da Capivara, impecavelmente cuidado, preservado, organizado para receber visitas. As escavações encontram hoje vestígios humanos que datam de 100 mil anos! E prosseguem primorosamente. Parabéns à doutora Niède.

Rumamos para o sul e chegamos a Floriano, mais de 200 quilômetros, a terceira cidade do Piauí, também na margem do Parnaíba, onde há um cais, algumas barcaças que atravessam para o Maranhão, e um restaurante flutuante. A carne de bode é o prato local; um pouco dura mas dá pra digerir; a buchada eu não experimentei, era demais. Excelente é a cajuína, um refresco natural de caju que só tem lá.

Lá em Floriano chegou a notícia, falsa mas terrível, da febre amarela na Serra da Capivara, onde quatro macacos haviam morrido. O filho e a neta não eram vacinados, tiveram de desistir, não se podia arriscar. Grande tristeza, pelo interesse que ela tinha no parque; enorme frustração. Seguimos nós, eu e minha mulher, e o meu amigo, que não acreditava em febre amarela.

Nunca houve febre amarela na Serra da Capivara; os macacos tinham morrido de disenteria, laudos comprovavam, nós soubemos quando chegamos lá, mas já era tarde para a Isabel. No caminho para o parque, que fica bem ao sul, passamos em Itaueira, a terra do meu amigo Joaquim, de sua casa, de sua família, sua gente simples, brasileira, hospitaleira, comovente. Uma cidade pequena e limpa, e trabalhadora, ruas bem conservadas e lavouras bem cuidadas, muita lavoura, mais do que no resto do caminho, milho principalmente, arroz também, e gado no pasto, meio magro, o capim estava seco, depois que nós passamos choveu bem, nós soubemos.

Demos uma pequena volta no caminho para ir a Eliseu Martins, ver os tais jatos de água surgente, uns frios, outros quentes, jorrando espontâneos da terra, com força, realmente interessantes, bonitos, e chegamos finalmente à terra do parque. São Raimundo Nonato, se chama assim o município, nome esquisito, de santo espanhol, não nato, não nascido, esquisito, lá bem no fundo do Piauí.

Dois dias estivemos lá dentro do parque, de manhã e de tarde. Caminhando em silêncio. De respeito e de espanto, respiração suspensa de admiração. A beleza portentosa das formações rochosas, arenitos e agregados que estavam no fundo de um mar que se levantou há milhões de anos com suas camadas depositadas. Aqueles estupendos castelos gigantescos formando abrigos naturais, cavernas, fendas, desfiladeiros, cascatas, e um vergel entre eles, com trilhas para se caminhar em silêncio ouvindo os pássaros, ao lado de pequenos animais silvestres, seguindo as placas que indicam os sítios, as tocas, onde o mais primitivo dos americanos cultivou a sua arte há mais de 10 mil anos, fabricando suas tintas com óxido de ferro, vermelho, com calcário, branco, com cinzas, fazendo seus pincéis de penas, e pintando com capricho nas pedras lisas, representando sua vida, seus afazeres, seus sentimentos. Emocionante. Não existe em nenhuma outra pintura rupestre em todo o mundo uma cena de beijo humano; só ali, no Piauí. Realmente emocionante.

Saímos cheios daquela sensação do extraordinário na alma. Brasileiros, os primeiros a deixar sua marca artística. Os primeiros. Saímos indo inda mais para o sul, entrando na baía, estrada muito ruim, naquele sertão que foi o domínio de Lampião, e fomos chegar a Petrolina, terra da lavoura mais progressista do País, toda irrigada, tecnicamente, na beira do São Francisco, já em Pernambuco. Valeu a viagem, era o sentimento.

O Piauí. Valeu a pena das estradas esburacadas que enfrentamos depois de Floriano. Tem gente boa e acolhedora entre essas jóias de se ver, gente como o meu amigo Joaquim, seu filho Leon, sua mulher, sua família. É ainda um nome pobre no Brasil, o Piauí, e tem pobreza, sim, para mostrar e até suscitar solidariedade de brasileiro. Esteve perto de se separar, ir junto para um outro país, do Maranhão e Grão-Pará, mas felizmente ficou tudo Brasil, é bem Brasil no jeito de ser, de falar e de sentir. Vale a pena passar um mês por lá e voltar com uma bela imagem da terra. Como eu acabo de fazer. Vale muito a pena.


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