Como já escrevi na edição no 27, vim ao Brasil pela primeira vez (1965) com o Peace Corps. Eu tinha de morar numa favela e trabalhar em “desenvolvimento e organização de comunidade” – organizar os moradores a defender os seus direitos e a sua dignidade. Só que o governo militar não apreciava tais atividades nas favelas do Rio de Janeiro, especialmente quando exercidas por gringos. Restou-me a tarefa de ser simpático e mostrar que americano não era bicho de sete cabeças.

A vida na favela era, no mínimo, interessante e os acontecimentos no meu dia a dia davam muito material para comentário e reflexão. Eis algumas tiradas da minha vida como “gringo favelado”.

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A chegada: A minha primeira visita à favela foi numa tarde quente e ensolarada. A primeira coisa que senti foi o cheiro do esgoto a céu aberto. Era mesmo marcante. Fui conduzido por um delegado local (a favela tinha uma delegacia própria) para uma praça onde estavam a minha espera um padre e alguns moradores. O delegado estava com um discurso preparado e desandou a falar em voz alta que eu estava lá, como americano, representante daquele colosso do norte, desenvolvido e cheio de pessoas trabalhadores, para ensinar “vagabundo a trabalhar”! Eu sabia pouco português na época, mas isto entendi! Senti que a minha vida naquela comunidade ia ser um pouco menos fácil do que eu havia pensado. Após o blá, blá, blá do delegado, ele pegou a bandeira brasileira que estava ao lado de uma mesa colocada para a ocasião, abriu a bandeira sobre o meu peito e bradou: “Viva o Brasil”. Terminado esse ato, abriu uma garrafa de “champagne” bem gelada e serviu uma taça para mim, uma para o padre, e uma para ele próprio. Fez um brinde para o grande povo norte-americano, e em seguida para a revolução de 1964 que ia acabar com os comunistas e vagabundos. Vi aquele povo olhando para as taças de “champagne” bem gelada naquele calor boçal e concluí que eu teria alguma dificuldade em superar esta “maravilhosa” apresentação à comunidade. Mas o delegado não parou aí! Ele fazia questão de me mostrar a favela. Ao adentrar na favela, deparamos com alguns caras jogando cartas em um mesa improvisada de caixa de laranja e uma tábua de madeira. O delegado chegou perto e com o seu sapato imaculadamente engraxada, chutou a tábua. “Vagabundos! Reparem bem seus vagabundos, este cara está aqui para fazer vocês trabalharem!” Olhei para o meu relógio. Eram 14 horas e esses caras jogavam cartas. Ou não tinham trabalho ou não precisavam trabalhar. A minha experiência em New Jersey me dizia que quando se vê um cara jogando cartas às 14 horas num dia da semana, não se deve chutar a mesa! Os quatro fizeram uma cara para mim que não era de boas-vindas. Atrás do delegado eu já fazia sinal de “não, não é bem assim” que eu esperava convencer os rapazes dos meus “bons antecedentes”. Mas o delegado continuou. Pegando-me pelo braço, fomos para a “rádio” da favela que era nada mais que um sistema de alto-falantes que, durante a hora da “Patrulha da Cidade”, transmitia as notícias policiais. Ele mandou interromper a transmissão para anunciar a minha presença para todos que não haviam testemunhado aquele esdrúxulo show na praça perto da igreja! Consequência: levei meses para recuperar alguma credibilidade como pessoa decente e não capataz do delegado! Belo começo!

Criando uma nova imagem: Após a introdução do delegado, fiz questão de sempre passar a largo da delegacia na favela. Nunca mais fui visto batendo papo com o delegado. Mas, quando eu andava pelas ruas do morro, as pessoas falavam nada mais que “bom dia” ou “boa tarde” na maior formalidade, como se eu fosse alguma autoridade. Um dia, passei perto do bar do Sr. João, um português simpático. O bar era frequentado pelos “malandros” da favela. Tinha um grupo lá e alguém gritou: “Ei, americano, tu toma uma branquinha com a gente?”. Sem saber que “branquinha” era cachaça – embora já tivesse provado -, calculei que tomar qualquer coisa com os malandros não podia fazer mal, desde que não fosse formicida. Entrei no bar e imediatamente um copo (desses de geleia) foi colocado na minha frente, meio cheio de “branquinha”. Todos tomamos. “Mais um!”, gritou um dos meus anfitriões. Mais uma rodada e percebi que os caras começavam a sair do bar aos poucos – à francesa mesmo. No fim, fiquei eu e o Sr. João, que apresentou a conta. Isto aconteceu mais umas duas vezes quando decidi que estava na hora de ser malandro também. A próxima vez que passei no bar, ouvi de novo o famigerado: “Ei, americano, vem tomar um branquinho!”. Entrei no bar, olhei para quem eu calculei que havia feito o “convite” e disse: “Hoje, a conta é tua!”. Bebemos muito pouco, mas a minha aceitação ali foi selada. Um para mim, zero para o delegado! Com o tempo (e após bastante cachaça), acabei conquistando a confiança dos “malandros” do morro. Impressionante como o “mé” cria e sela uma amizade.

A bênção dos malandros: Depois de alguns meses e, o que calculo, seriam alguns danos irreparáveis ao meu fígado, acabei conquistando a confiança dos malandros. Mas, digo de passagem, malandro que é malandro sempre desconfia! Como eu era americano que fez faculdade, eu também aos poucos criei amizades com alguns estudantes universitários. Na praia, cheguei a conhecer algumas moças da Zona Sul e havia sempre o ônibus 474 que ia direto para Ipanema. Como eu morava na favela, eu era uma curiosidade e podia aproveitar da minha condição para conversar com as meninas. Aproveitei! Tinha 22 anos e curtia a praia de Ipanema sempre que podia. Às vezes, tinha festas que me obrigavam a ficar até altas horas de madrugada antes de voltar para a favela. A primeira vez cheguei com receio e fui recebido com uma voz dizendo: “Ei, onde vai, cara?”. Me deu um aperto no estômago – “Sou o gringo que mora na Rua das Palmeiras, tô indo para casa”. Como já havia feito as minhas amizades com os malandros, o cara me reconheceu. “Tá legal, fala baixo cara” (uma gíria da época que significava “tudo ok”). “Se tiver algum problema no caminho, é só avisar e a gente passa chumbo!” Embora me sentisse seguro, só rezava para que ninguém aparecesse para fazer a “turma” mandar chumbo. Mas que conhecer os malandros tinha suas vantagens, tinha!

O meu vizinho “Zé”: Na favela, eu morava num quarto dos fundos de uma casa. Havia um pátio na frente do meu quarto, de modo que eu tinha privacidade e um lugar para sentar nas noites quentes. Na minha rua morava um operário chamado “Zé”. Eu só o conhecia por este nome. Naquela época, era comum o patrão pagar salário às vezes com “vale”, como se o operário fosse o seu sócio. No dia de pagamento, se o “Zé” recebesse um vale, ele tomava todas, ficava puto, e saía atirando na rua. Todos os vizinhos fechavam as janelas e esperavam o “Zé” terminar com a munição do seu 32. Calhou que num desses dias, eu tinha ido para uma festa em Ipanema e acabei chegando bem tarde. Para o meu azar, o “Zé” estava na rua, bêbado e com o 32 na mão. Não tinha eu escolha. Tinha de chegar em casa. “Oi, Sr. Zé”, disse eu. “Boa noite”, respondeu ele com a voz embargada de branquinho. “Como vai o Sr.?”, perguntei. “Patrão filho da puta!”, ele gritou. “O filho da puta me deu um vale. Não é um filho da puta, não?” Ia eu discordar? “Com certeza, Seu Zé, um grande filha da puta!”, enquanto eu andava em direção a minha casa. “Não é não!”, afirmou Zé. “Ele falou que não tinha caixa para pagar este mês e que ele tem uma família para sustentar. Não é filho da puta, não. Ele trabalha para burro!” Merda! pensei. “Tá certo seu Zé, deve ser difícil mesmo. Não é filho da puta.” “É sim!”, ele gritou. “Ele acha que eu também não tenho família??!! Eu tenho filhos e sou bem mais pobre que ele, PORRA!” “Que filho da puta!”, eu disse. “Tem razão seu Zé. E é dos grandes!”, acrescentei. Nisso eu vi o portão da minha casa e continuei andando na direção dele. Seu Zé segurou o meu braço e me olhou no rosto. Senti o bafo da branquinha e achei que o meu tempo nesta terra havia terminado. “Não é não, viu? Ele dá um duro desgraçado naquela fábrica, eu sei. Não, ele não é filho da puta!” Continuei andando para minha casa junto com o Zé e alcancei o portão. Havia quatro degraus para chegar no quintal, mas uma vez fechado o portão eu estaria seguro. Zé estava perto, mas já delirando de novo e gritando que o patrão era filho da puta. Abri o portão, desejei uma boa noite ao Zé e entrei. Tranquei a porta e comecei descer os degraus quando ouvi o Zé gritar: “Patrão fiiillhooo de uma puuuuta!”, seguido por estampido de tiro. Senti umas coisas na minha cabeça – eram farpas de madeira do portão. Um pouco mais alto nos degraus e eu já era! É, patrão filho da puta mesmo!

Como curar uma intoxicação alimentar: Você sabia que cachaça também pode curar um piriri? Como disse, eu morava no fundo de uma casa de família. O dono da casa era o Sr. Orestes, a mulher Da. Maria, e a filha de uns onze anos na época, Luci. Eu pagava um aluguel que incluía comida – um prato de feijão e arroz digno de um estivador, pois, segundo Da. Maria, americano é grande e precisa comer muito. Se eu não comia, a Da. Maria ficava com uma cara de triste, pois achava que eu não gostava de comida de pobre. Por outro lado, se comia tudo aquilo, não poderia por as calças em bem pouco tempo. Não me restava alternativa senão jogar fora uma parte do prato. (Não adiantava dizer que queria uma porção menor porque Da. Maria cismava com o meu tamanho. Ela insistia que eu precisava comer muito porque era grande!) Um belo dia, Da. Maria anunciou que havia comprada uma sardinha que fritou e pôs em cima do meu prato de feijão e arroz, só para mim! Ofereci dividir, mas a família se recusou – era só para o gringo. Provei a sardinha e percebi que estava para lá de passada! Como fazer? Dizer para Da. Maria que havia comprada uma sardinha passada? Sabe lá com que amor e sacrifício ela havia comprada aquilo. Tracei! Demorou pouco para ter a maior dor de barriga que um ser humano poderia ter. O banheiro ficava somente a alguns passos da minha cama, mas mesmo assim era sempre um momento de concurso entre a minha velocidade no pé e a velocidade do meu intestino revoltado com a sardinha. Da. Maria disse que ela sabia a razão da minha aflição – eu fiz barba depois de comer! Falou que até conheceu um rapaz que morreu após fazer barba logo depois de comer! Disse que era sorte minha ser americano e bem forte. Senão, teria empacotado logo! Tinha uma farmácia na parte baixa da favela, mas eu não chegava lá, nem querendo, sem algum vexame. Mas o botequim estava perto. Inventei a minha própria receita para a minha aflição: uma garrafa de Praianinha, um pacote de cream cracker, e dois ovos cozidos (aqueles coloridos que tem nos botequins). Calculei que a Praianinha mataria qualquer micróbio e os cream crackers e ovos fariam um “cimento” no meu intestino. Após certificar que não havia mais nada para sair de dentro de mim, fui ao botequim e comprei o “remédio”. Voltei para casa e comecei tomando a Praianinha. Abri o pacote de cream cracker e fui enfiando o conteúdo na boca, seguido pelos dois ovos cozidos. Terminei a garrafa e desmaiei. Acordei no dia seguinte totalmente curado. Eta, mé milagroso! Funciona, viu?

*Jim Wygand é consultor nas áreas de investigação de fraudes e gestão de risco e diretor para o Brasil da empresa norte-americana 1st West Mergers & Acquisitions Llc


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