Foto: Reprodução
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Em maio de 1964, um mês após o golpe que derrubou do poder o presidente João Goulart, o governo instituído sob a mira de baionetas não pensou duas vezes em desrespeitar a Convenção de Viena para assuntos consulares, assinada um ano antes e ratificada pelo Brasil. É o que revelam documentos localizados no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj) pela Comissão da Verdade do Rio (CEV-Rio). Neles, encontra-se detalhado um mirabolante plano de invasão da embaixada do Uruguai no Rio de Janeiro, para retirar brasileiros que, no desespero de vislumbrarem a ditadura que iniciava, para lá se dirigiram enquanto aguardavam a concessão de asilo político.

Entre os brasileiros que buscaram abrigo na embaixada estava o ex-deputado federal Eloy Dutra, cujos direitos políticos tinham sido cassados por dez anos pelo Ato Institucional no 1, decretado no mês anterior. O político é citado em relatório encaminhado à cúpula da polícia por José Pereira de V’asconcelos, chefe da Secretaria de Atividades Antidemocráticas, da Secretaria de Segurança Pública do Estado da Guanabara. Àquela altura, a ainda incipiente máquina estadual de repressão política cometera uma gafe ao escolher o nome do órgão. O correto seria Secretaria de Combate às Atividades Antidemocráticas. Do jeito como foi batizada, ficou parecendo o que ela realmente foi: uma secretaria de arbitrariedades. 

Ao arquitetar a invasão da embaixada, a Turma de Atividades Antidemocráticas, divisão da secretaria, ignorou solenemente a Convenção de Viena, que classifica representações diplomáticas como lugares invioláveis. De acordo com os documentos localizados no Arquivo Público, um dos investigadores do grupo foi pela primeira vez à rua Arthur Bernardes, no 30, onde ficava a embaixada, no domingo 17 de maio. Lá, constatou a existência de um edifício contíguo à representação diplomática. No dia seguinte, voltou ao mesmo endereço e entrou em contato com um empregado do prédio, de nome João, simulando ser amigo do deputado cassado que se encontrava na embaixada. Em relatório, o investigador reproduziu o diálogo, como transcrito abaixo, de forma literal:

– Sr. João, sou funcionário da Cx. Econômica e amigo de Eloy Dutra, que se encontra exilado aqui ao lado, na Emb. e preciso do seu auxílio para entregar-lhe alguns documentos e dinheiro, o que não é possível fazê-lo através da Embaixada.

– Eu sou novo aqui no prédio e não quero me envolver nessas coisas, porque sei que esse negócio está dando encrenca. O Sr. volte amanhã depois de 7h, que o outro, o Cosmos, estará aqui e pode ser que lhe atenda, pois ele é mais antigo aqui.

– Sr. João, haverá possibilidade de comunicação daqui da embaixada? 

– Sim, aumentaram o muro, mas do 3º andar pode-se falar com os exilados e se o Sr. Quiser, pode ir até lá. 

Na sequência, o investigador relatou ter descartado a possibilidade de entrar na representação diplomática naquele momento, pois não estaria com a “encomenda” em mãos. Contou ainda que, na manhã da terça-feira dia 19 de maio, ele voltou ao edifício, encontrou os dois empregados na garagem, e chamou Cosmos para uma conversa em particular. Ainda de acordo com o relatório, o investigador repetiu o argumento usado no dia anterior. E pediu ajuda ao funcionário:

– Sr. Cosmos, isto é uma agradável coincidência, pois eu também me chamo Cosmos e vim aqui lhe pedir para me quebrar um galho. 

– Depende de uma confirmação que vou ter do Dr. Eloy. Ele conhece o Sr?

– Sim, ele me conhece, pois somos velhos conhecidos lá da Cx. Econômica.

– O Sr. sabe, eu não sei se o Sr. É algum policial, ou…

– Não, não se assuste porque eu tenho responsabilidade e se a minha repartição souber que estou metido nisto, serei irremediavelmente punido. O Sr. Pode me fazer este favor e dizer o preço, que lhe pagarei sem regatear.

– O Sr. Pode vir hoje à noite ou amanhã, que dependendo da confirmação do Dr. Eloy, eu lhe quebro o galho. Mas olhe, meu Sr, só lhe quebro o galho porque sei que o Sr. é pessoa séria e esse pessoal que aí está, não é comunista. 

– É ótimo o seu ponto de vista.

Além desse relatório, o investigador, cuja assinatura parece ser “Lopes”, enviou para seu superior hierárquico um croqui da embaixada e uma descrição de seu entorno. No documento, fez uma observação: “Existe possibilidade de entrar, pulando pelo teto da laje, para o telheiro. Pelos fundos não há acesso”. E seguiu detalhando uma próxima, rua Bento Lisboa, um bar ao lado, as acomodações da embaixada e as ruas próximas de onde seria possível acessar o prédio da embaixada. 

Caso o aparato policial tivesse dado prosseguimento ao plano de invasão à embaixada do Uruguai, teria criado um sério incidente diplomático. Essa é a opinião do advogado Renan Chinaglia, doutorando em Relações Internacionais pela USP e ex-assessor da Comissão da Verdade de São Paulo. Chinaglia classifica o caso como inédito e interessante, porque revela “a tremenda desfaçatez com que determinados agentes públicos agiram logo após o golpe, a ponto de cogitarem e detalharem um plano de invasão e ocupação da embaixada de um país estrangeiro, no caso o Uruguai”. A ação violaria, no seu entender, “todos os tratados internacionais assinados e ratificados pelo Brasil em relação à proteção desses departamentos consulares de países estrangeiros, o que confere certa imunidade. Não só aos profissionais que ali estão como à própria estrutura física desses locais. Isso poderia ter gerado uma crise diplomática sem precedentes, no caso brasileiro. E, pelo que esses documentos indicam, sequer havia um comunicado, ou um pedido, ou algo do tipo, dirigido”.

Chinaglia chama a atenção para outro ponto importante. Segundo ele, “além de violar os direitos internacionais e diplomáticos, os policiais violariam também os direitos humanos. As embaixadas estrangeiras tiveram essa função de territórios neutros durante esses regimes autoritários, para essas pessoas, para que pudessem, em um período de dias, ou até alguns meses, pensar sobre qual seria o seu próximo destino, onde se exilar, ou até mesmo se ficariam no país. Esse caso concentra várias discussões bastante importantes a respeito da ditadura nesse período do Brasil”.

Para ele, trazer esse fato à luz revela algo que diz respeito a todos. Embora localizado no Rio, envolvia todas as questões diplomáticas com os países vizinhos. Um tipo de perturbação dessa ordem, certamente, afetaria não só a relação do Brasil com o Uruguai, como também com todos os países da região, e poderia – do ponto de vista geopolítico – isolar o País. “Teria sido uma medida bastante drástica”, classificou. Ainda bem que o plano não saiu do papel.


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