Mutante e nômade. Dois predicados que caem como luva para definir a personalidade artística da brasileira Lica Cecato. Nascida em São Paulo, em 1956, aos 23 anos ela partiu para Roma em busca de suas raízes – ela é neta de imigrantes italianos – e também do aprimoramento da carreira de artista gráfica, iniciada aos 17 anos na extinta TV Tupi. A ideia era dar continuidade às linhas e traços, e aprimorar os conhecimentos profissionais em cursos de especialização, mas um desvio de rota, imposto pela necessidade de superar a dificuldade dos primeiros dias no Velho Mundo, colocou a desenhista em um caminho previsível: o da música.
Lica cresceu em ambiente em que acordes, melodias e harmonias eram onipresentes. Ela é neta do maestro Rizzieri Cecato, que foi regente em Jundiaí, cidade próxima à capital paulista, e filha do saxofonista e clarinetista José Cecato, músico da orquestra do maestro Enrico Simonetti, famoso no começo da década de 1960, pelo programa Show do Simonetti da extinta TV Excelsior. Além do pai e do avô, a futura cantora também conviveu desde a infância com outros três tios instrumentistas. Encantado com a voz contralto da filha, que desde a mais tenra idade perseguia as notas do seu sax tenor cantarolando melodias, José decidiu introduzir a menina ao aprendizado de piano quando ela tinha 6 anos.
“Meu pai gostava muito de jazz, samba-canção e músicas românticas e eu procurava combinar minha voz com o saxofone dele. Foi assim que aprendi a cantar. Uma brincadeira, que serviu de escola para mim”, recordou a artista, em entrevista realizada por telefone, no final de maio, horas depois de chegar ao Rio de Janeiro. Radicada em Veneza, na Itália, ela veio ao Brasil para participar do TEDxSãoPauloWoman, versão feminina do evento realizado em diversas cidades do mundo, que reúne personalidades de áreas distintas com o objetivo de contar, em 15 minutos, histórias pessoais inspiradoras – a cantora levou ao encontro uma apresentação intitulada Fronteiras e Como Afrontá-las.
A capacidade de confrontar barreiras, sugerida no título de sua palestra no TEDx, é traço antigo, garante Lica. É o que atesta o relato de que, aos 12 anos, contrariou o desejo do pai e abandonou o curso de piano, desmotivada com o rigor da sua professora. Segundo ela, além de as aulas serem marcadas pela ausência de artifícios lúdicos, a professora possuía o péssimo hábito de reprimir erros com golpes de régua nas mãos. Foi então que ela trocou as teclas pelas seis cordas do violão e começou a escrever suas primeiras composições. Foi também com o novo instrumento que, sem encontrar oportunidades profissionais em Roma, ela uniu o útil e o agradável e superou a pindaíba dos primeiros dias na capital italiana.
“Naquela época, eu fazia macrobiótica e logo que cheguei conheci um bom restaurante vegetariano. Fui convidada para trabalhar lá e dividia meu tempo na cozinha e tocando para os clientes. Três anos depois, em 1981, recebi uma excelente oferta de um cara que era louco por jazz e tinha um clube em Treviso, o Sedanno Alegro. Ele ofereceu um salário cinco vezes maior do que eu ganhava e queria uma pessoa fixa, que não cantasse apenas os chavões da música brasileira. Tive a liberdade de interpretar artistas de que eu gostava muito, como Jards Macalé, Luiz Melodia, Jorge
Mautner e Walter Franco, além de coisas mais desconhecidas do Gil e do Caetano”, recorda.
A experiência em Treviso também aproximou Lica de grandes nomes da música mundial. No Sedanno Alegro, ela teve a oportunidade de abrir shows de Sun Ra, o inventivo líder da Arkestra, morto em 1993, e também da renomada trupe de músicos do Art Ensemble of Chicago, duas instituições do jazz americano de vanguarda. Em 1984, depois de breves passagens por Londres e Paris, as andanças de Lica saíram de terra firme e ganharam novos destinos em alto-mar. Convidada para trabalhar como diretora artística do cruzeiro Orient Express, ela passou a fazer viagens regulares à Grécia, Israel e Turquia. Na sequência, foi escolhida para ser uma das atrações musicais do transatlântico Achille Lauro, que naufragou na costa da Somália em 1994.
Em 1986, Lica atravessou o Oceano Atlântico por um bom motivo: uma bolsa de estudos na renomada escola americana Berklee College of Music, sediada em Boston, Massachusetts. Objeto de desejo de milhares de músicos, o ingresso na instituição não cativou a cantora a ponto de ela se empenhar para concluir os quatro anos de curso. Seis meses depois, convencida de que deveria se impor por seu trabalho autoral e não pelo virtuosismo obsessivo, Lica abriu mão da bolsa e voltou para a Europa. Se o aprendizado musical em Boston foi incipiente, o semestre nos EUA serviu para fortalecer outro grande interesse da cantora, a cultura japonesa. Ela já estudava o idioma, mas, no semestre em que esteve na Berklee, teve a chance de aprimorar seus conhecimentos, com a ajuda de alunos japoneses que estabeleceram com ela um intercâmbio informal. “Eu destrinchava o conteúdo das aulas para eles em inglês e eles me ajudavam a aprimorar o japonês.” O interesse pela cultura oriental levou Lica a viver um breve período em Tóquio e a conhecer a poetisa do século 9 Ono no Komachi. Com base em poemas de Ono, traduzidos por ela e o poeta visual André Vallias, Lica teve aprovado um projeto que, no segundo semestre de 2015, integrará as comemorações aos 120 anos de relações diplomáticas entre Brasil e Japão.
Em 1990, na Bienal de Veneza, a cantora conheceu o pintor brasileiro Antonio Dias e os dois se apaixonaram. Casados naquele mesmo ano, decidiram morar em um lugar desconhecido para os dois. Foram parar em Colônia, na Alemanha, onde permaneceram até 2012, quando veio a separação e Lica voltou a viver em Veneza. Desde 1996, ano de lançamento de seu primeiro álbum Our Favorite Songs, dividido com o violonista italiano Stefano Scutari, a cantora estabeleceu uma carreira que soma outros cinco títulos, o mais recente deles Copacabana, lançado em 2010.
Desconhecida para a maioria dos brasileiros, Lica apresentará o espetáculo Sybabelia, no dia 26 de junho, no Teatro Itália, em São Paulo (saiba mais em teatroitalia.com.br). A apresentação, em parceria com Vallias, reunirá música eletroacústica, canto e poesia visual. Proposta que extrapola as convenções da canção e converge com o espírito inquieto da cantora, que também se expressa por meio da pintura, da fotografia, da dança, sem se preocupar com rótulos. “Essa catalogação sempre fez parte da lógica capitalista em que as coisas têm de ficar em seus devidos compartimentos. Ainda bem que sempre existiram artistas dispostos a quebrar essas regras”, conclui Lica.
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