É inédito. Seis dos onze principais postos da Procuradoria Geral da República estão, desde novembro, ocupados por mulheres. Elas são quatro. Explicando: duas acumulam funções. Começando pela vice-procuradora geral, Deborah Duprat, que, no primeiro semestre, tornou-se a primeira mulher procuradora-geral da República (durante 20 dias, enquanto não saía a nomeação do novo efetivo no cargo, Roberto Gurgel). Outra que acumula cargos é a vice-procuradora geral Eleitoral, a subprocuradora Sandra Cureau. O poder feminino nos mais altos escalões do Ministério Público Federal inclui, ainda, a subprocuradora Ela Wiecko de Castilho, nova corregedora-geral; e a vice-procuradora federal dos Direitos do Cidadão, a subprocuradora Gilda Pereira de Carvalho.
Todas guardiãs das leis e veteranas no serviço público. Deborah, a mais jovem, tem 51 anos. Gilda, 58. Sandra e Ela, colegas de faculdade no Rio Grande do Sul, estão com 62. Juntas, representam mais de um século de experiência no Ministério Público. Claro que, no cotidiano, elas são bem diferentes entre si. A carioca Deborah corre e pratica hipismo todos os dias, antes de enfrentar uma rotina de trabalho de ao menos dez horas, como vice-procuradora geral e como coordenadora da 6a Câmara.
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Gilda, pernambucana “arretada”, que gosta de uma boa briga na defesa dos diretos humanos, é uma workaholic que mora em Brasília, mas mantém a casa no Recife, onde estão filhos e netos, que visita esporadicamente.
Já Ela, a mulher que deixou figurões da política de cabelos em pé em 1995 – quando iniciou as investigações do dossiê elaborado pelo ex-banqueiro Ângelo Calmon de Sá para controlar as doações de campanha que fazia a “políticos amigos” -, reside na Capital Federal desde 1992. É professora na Universidade de Brasília e tenta curtir os três filhos e os dois netos.
Sandra, gaúcha, colega de sala, nos tempos de estudante, em Porto Alegre, de Ellen Gracie, ministra do Supremo Tribunal Federal, gosta de dirigir seu próprio automóvel, dispensando o carro oficial, e atua tanto na área eleitoral, no Tribunal Superior Eleitoral, quanto na coordenação da 4a Câmara da PGR, que faz a defesa do meio ambiente e do patrimônio artístico e cultural.
Todas elas lamentam que o percentual de mulheres nos cargos mais altos da PGR não se reflita em toda a instituição. “Ainda espero o dia em que mais moças façam o concurso e sejam aprovadas”, sonha Deborah.
As mulheres são apenas 17 entre os 61 subprocuradores gerais da República. Há 58 delas em meio aos 211 procuradores regionais e 194 entre os 650 procuradores da República, o que corresponde a perto de 30% do total. O momento atual, espera-se, servirá de estímulo para que mais mulheres ingressem na carreira de procurador.
Deborah, a grande pioneira é campeã de hipismo
No mês passado, aos 51 anos, ela sagrou-se campeã master de hipismo de Brasília. Esta não é a única atividade esportiva praticada por Deborah Duprat, mãe de Pedro, de 21 anos, estudante de Jornalismo, e de Luísa, de 19, estudante de Artes Cênicas. Ela foge ao que se supõe o perfil de um procurador da República. Além de montar seus dois cavalos, por ao menos uma hora, na Hípica de Brasília, Deborah começa o dia às 7 da manhã, correndo de 6 a 9 km no Lago Sul, onde mora. Depois, segue para a sede da PGR em Brasília, onde trabalha muitas vezes até as 22 horas. “Claro que, de uns meses para cá, tem sido mais difícil manter a rotina”, comenta.
O motivo é simples. Depois de ter sido, durante vinte dias, a primeira mulher a assumir o cargo de procuradora-geral da República, Deborah foi surpreendida com o convite feito pelo novo procurador-geral, Roberto Gurgel, para ser a vice-procuradora-geral, o segundo posto na hierarquia da casa. “O trabalho tem sido intenso. Além das atividades do cargo, ainda continuo como coordenadora da 6a Câmara”, conta. Esse órgão trata das questões relativas a povos tradicionais, indígenas, quilombolas e outras minorias. Em suma, a defesa, prevista na Constituição, de quem nem sempre é bem-visto pelos defensores do desenvolvimentismo a todo custo.
A carioca do Leblon veio para Brasília adolescente, acompanhando o pai, que era funcionário da Câmara dos Deputados. Ela lembra: desde quando começou a estudar Direito na Universidade de Brasília já se preocupava com as minorias. “Nunca pensei em me dedicar ou me especializar nas áreas tradicionais. Jamais pretendi fazer algo que me deixasse rica.” Aprovada, em 1987, no concurso para procurador da República, já no ano seguinte estava envolvida de vez com a questão indígena, integrando uma comissão especial na PGR.
“A primeira ação proposta pela comissão, após a promulgação da Constituição em 1988, foi reconhecer o território indígena Ianomâmi. E ganhamos”, lembra. Deborah acredita que é necessária uma profunda reformulação nos cursos de Direito para que a defesa das minorias étnicas e sociais passe a ser prioridade. “O Direito é uma ciência social. É um absurdo que, do currículo das faculdades, constem oito semestres de Direito Civil e só um de Direito Constitucional”, ataca. “Os cursos precisam ter uma orientação holística, serem interdisciplinares. Aliás, não apenas na área do Direito.”
Deborah critica o fato de a maioria dos estudantes ter por objetivo se especializar em ramos que possam dar muito dinheiro, “como o novo queridinho, o Direito Tributário”. Ela lembra, chocada, da ausência de estudantes de advocacia na plateia de um seminário, em Brasília, sobre cultura negra e diversidade, do qual participou como conferencista. “O evento ocorreu numa faculdade de Direito!”, assusta-se. Deborah insiste em que essas distorções devam ser corrigidas. E pergunta: “Em um País como o nosso, a quem interessa direito de herança, a não ser a uma parcela ínfima da sociedade?”.
No Ministério Público Federal, a mudança começa a ser feita no concurso para procuradores da República, considerado dos mais concorridos e difíceis. “Quem iniciou foi o Cláudio Fonteles. Antônio Fernando (procurador geral que saiu no fim do primeiro semestre) continuou”, recorda. “Nas provas, aumentamos o número de questões sobre direitos humanos, indígenas, quilombolas, meio ambiente. Quem não viu esses temas na faculdade, terá de estudar a fundo, senão não será aprovado. As novas turmas de procuradores já têm muita gente com esse tipo de preocupação.”
Gilda, uma motociclista no comando da cidadania
Aos 62 anos, Gilda Pereira de Carvalho, subprocuradora da República, adora andar de motocicleta. “Tenho uma na minha casa no Recife”, conta, rindo. “Mas ainda não criei coragem, nesses 12 anos de Brasília, para dirigir uma moto por aqui. Acho que terei de arrumar uma, senão acabo desaprendendo.”
Motociclista, sim. Mas workaholic. “A função da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão é defender os direitos de qualquer pessoa que esteja sendo desrespeitada pelo Executivo Federal e por órgãos da Administração Pública Federal, direta ou indiretamente. Temos de defender também os direitos dos cidadãos contra permissionários ou concessionários de serviços públicos, como as emissoras de TV, e empresas prestadoras ou fornecedoras de serviços.”
Essa pernambucana de Serra Talhada comanda a PFDC desde 2008 e acredita que a função de “vigiar os poderes” tem sido bem compreendida pela sociedade. Para Gilda, mãe de Vinicius, 30, e Cecília, de 28 anos, e com uma neta e um neto (um de cada filho), sua função vai muito além de uma profissão. “Tenho um senso do dever que extrapola o trabalho”, diz. “Sempre fui assim, desde os tempos em que era procuradora da Fazenda, em Pernambuco. Acho que meus colegas reconhecem essa dedicação, pois, todas as vezes que me candidatei ao Conselho Superior do Ministério Público, fui a mais votada. E por quatro vezes!”, comenta, sorrindo. Além da defesa dos direitos humanos, Gilda atuou muitos anos na 5a Câmara da PGR, que trata do patrimônio público e improbidade administrativa. Em suma, ela fiscalizava se os recursos federais estavam sendo bem gastos.
Gilda tem livre trânsito nas ONGs, entidades sociais e organismos internacionais ligados aos direitos da cidadania. “Muitas vezes, as ONGs pedem informações ao governo e não as recebem”, conta. “Então, me procuram sabendo que vamos entrar na briga. Vem dando certo.” No momento, Gilda tem na mira o Estado do Espírito Santo. Ela defende uma intervenção no sistema carcerário local, onde “há um completo desrespeito aos direitos humanos”. Outra das brigas mais recentes de Gilda tem por adversário as redes de TV. A questão envolve o cumprimento dos horários dos programas, de acordo com as faixas etárias. “Veja só, o Brasil tem três fusos horários que, com o horário de verão, acabam virando quatro”, contabiliza. “As grandes redes colocam no ar a programação em horário único. Isso gera problemas, pois um programa que começa às 9 horas da noite no Rio, é visto às 8 horas no Recife e às 7 em Manaus. A classificação etária vira uma ficção. Isso tem de acabar.”
Morando em Brasília desde sua promoção para subprocuradora geral, em 1997, Gilda acostumou-se a ter duas casas, uma na Capital Federal e outra no Recife. “Quando vim para cá, me reuni com a família e perguntei quem iria mudar comigo para Brasília. Meus filhos deram força para que eu aceitasse a promoção, se isso iria me fazer feliz. Já estavam grandes e com as vidas encaminhadas. Decidiram ficar em Pernambuco. O então marido também não quis vir. Achei melhor manter minha casa no Recife equipada, até com roupas. Facilitou muito minha vida. Quando viajo, nem preciso levar mala.”
Pra frente com Ela
Ela Wiecko de Castilho, subprocuradora da República, assustou boa parte do Congresso Nacional e, em especial, o clã comandado por Antônio Carlos Magalhães. Isso aconteceu em 1995. O motivo foi um dossiê elaborado pelo baiano Ângelo Calmon de Sá, o então poderoso dono do Banco Econômico. A papelada detalhava as contribuições sigilosas feitas para as campanhas eleitorais de muita gente importante da política brasileira. Curiosamente, o dossiê ficou conhecido como Pasta Rosa, por um motivo prosaico: veio dentro de uma pasta de cartolina dessa cor, daquelas com elástico, vendidas em qualquer papelaria. Se o invólucro era simplório, o conteúdo guardava informações de doações milionárias. O dossiê caiu nas mãos de Ela, já famosa por sua atuação em duas décadas como procuradora e subprocuradora. Decidida, passou a investigar o caso, visando a descobrir se houvera dano ao patrimônio público e social. Uma série de reportagens da jornalista Sonia Filgueiras, na revista ISTOÉ, trouxe ampla divulgação ao dossiê. Mas a investigação emperrou com a decisão do então procurador-geral, Geraldo Brindeiro, nomeado por Fernando Henrique Cardoso, de assumir o caso, tirando-o das mãos de Ela. Assim, a explosiva Pasta Rosa virou um arquivo morto. Para alívio de muita gente.
Ela é uma das subprocuradoras mais experientes e populares. Sobretudo entre as ONGs, movimentos sociais, funcionários do MPF e alunos das universidades onde leciona. Ao completar 62 anos, terá uma missão ainda mais árdua. Escolhida como a nova corregedora-geral do Ministério Público Federal, será a responsável por fiscalizar o trabalho e o desempenho dos colegas procuradores, subprocuradores e procuradores regionais, espalhados por todo o País. Uma função que pode provocar resistência ou antipatia.
“Vamos verificar a regularidade do serviço e a eficiência da atividade dos membros do MPF e das procuradorias regionais e, se preciso, adotar medidas preventivas ou saneadoras”, explica.
Os instrumentos que Ela e sua equipe terão a seu dispor são muitos. Por decisão do Conselho Superior do Ministério Público, Ela poderá recrutar, por meio de voluntariado, subprocuradores e procuradores regionais. Eles farão, daqui em diante, as correições (a palavra jurídica para correções) no Ministério Público Federal em todos os Estados.
“A ideia é termos pelo menos 50 colegas participando, gente suficiente para todos os procedimentos que se mostrarem necessários.” As correições, com duração média de uma semana, serão realizadas ao longo de oito meses por ano, em todo o Brasil. Cada equipe ficará responsável por uma das cinco regiões do território nacional.
A exigência legal é que, em dois anos, todas as instâncias do Ministério Público Federal tenham passado por correições. “Acho que o resultado desse trabalho, que passará a ser rotineiro, será um Ministério Público mais eficiente, atuante, e capaz de corrigir e reparar possíveis erros”, espera.
A nova Corregedoria-Geral vem sendo considerada o posto certo para a pessoa certa. Incluída cinco vezes na lista tríplice para escolha do procurador-geral, como um dos candidatos mais votados, essa curitibana filha de poloneses e criada no Rio Grande do Sul teve de adiar – mais uma vez – os planos de aposentadoria e de passar mais tempo curtindo os filhos Mariana, Carolina e Pedro, e um casal de netos.
“O Manoel (seu marido, o jurista Manoel Castilho, ex-consultor-geral da União e hoje assessor da Presidência do STJ, com quem começou a namorar ainda na Faculdade de Direito) me disse que, se eu considerasse o novo desafio como positivo, tinha de seguir em frente. Pois é, vamos em frente.”
Sandra, a vigilante do nosso patrimônio
Em 1978, Sandra Cureau pediu transferência para Belo Horizonte, acompanhando o marido. Houve quem imaginasse alguma dificuldade de adaptação. Afinal, Sandra é uma “uma típica gaúcha da Serra”. Loura, tem ascendência francesa, italiana e alemã. Estava à vontade na Procuradoria da República em Porto Alegre. Poucos dias após a mudança para a BH, Sandra viajou para Ouro Preto. A beleza da velha Vila Rica, com o esplendor do barroco mineiro, causou um impacto profundo na jovem procuradora, fazendo com que a defesa do patrimônio cultural, histórico e ambiental passasse a dividir as atenções com sua paixão original no campo jurídico, o Direito Eleitoral. “Foi uma descoberta”, diz. “Toda aquela beleza das casas, das igrejas, a harmonia do barroco, me fez perceber que muitas Ouro Preto ainda deveriam existir pelo País, protegidas ou não. Para quem tinha se criado em Porto Alegre, era um alerta. Já havíamos destruído quase todo o patrimônio histórico da capital gaúcha, trocado por prédios e pela explosão imobiliária.”
O retorno a Porto Alegre aconteceu quatro anos mais tarde, quando foi designada procuradora-geral eleitoral no Rio Grande do Sul, sendo responsável, em 1985, pela fiscalização das primeiras eleições gerais no Brasil, depois do fim do regime militar. “Foi um sentimento de resgate da cidadania, com a responsabilidade de fazer com que a campanha eleitoral e as eleições fossem limpas e democráticas”, relembra. O posto seguinte, no Rio de Janeiro, para o qual foi transferida a pedido em 1988, permitiu a Sandra continuar a atuar na área eleitoral e aproximar-se mais da defesa do patrimônio cultural. “O Rio é diferente”, analisa. “Apesar de todo o crescimento da cidade, ainda mantém preservado um grande patrimônio histórico, artístico e cultural.” Nove anos mais tarde, promovida a subprocuradora, mudou-se para Brasília. Permaneceu na área eleitoral, então como procuradora no Tribunal Superior Eleitoral. Mas a outra paixão continuava viva e, depois de dois anos integrando a 6a Câmara, assumiu a 4a Câmara da PGR, que trata exatamente das questões ambientais e do patrimônio histórico e cultural. Está no cargo há oito anos. “Tenho 25 anos de atuação na defesa do patrimônio histórico e ambiental”, orgulha-se. “Na Câmara, onde deságua todo tipo de processo relativo a esses temas, posso atuar de forma mais incisiva.”
A preocupação com a defesa do patrimônio cultural do Brasil é visível no dia a dia de Sandra, que mora no Lago Sul e dirige o próprio carro todos os dias até as torres de vidro da PGR. Ela olha pela janela do veículo e comenta o excesso de construções na beira do Lago do Paranoá, afirmando que vai convocar o governo local para que apresente planos para a orla do lago. “Já me falaram que existem até projetos de construção de shoppings e de ocupação das margens onde existem córregos”, diz. “É preciso avaliar se a legislação ambiental e patrimonial não está sendo desrespeitada.” Sandra acredita que, nos últimos tempos, o destaque dado às questões ambientais fez com que o trabalho de defesa do patrimônio cultural e histórico ficasse menos visível e mais vulnerável. “Veja, por exemplo, os casos do cururu e o siriri que sua revista apresenta (comenta, enquanto folheia um exemplar de Brasileiros). Já deveriam estar na lista dos patrimônios protegidos. Talvez não estejam ainda porque as autoridades locais não sabem que isso é possível. A PGR pode ter um papel ativo nesse processo.”
Mãe de três moças (Letícia, de 30, Daniela, de 28, e a caçula carioca Paula, de 19, além do filho Lucas, de 24, que mora na França e lhe deu um neto), Sandra garante que a nomeação para subprocuradora geral Eleitoral – que a alçou a uma das quatro mulheres mais poderosas do Ministério Público Federal – tornou possível continuar trabalhando no que gosta. E fez, também, com que voltasse a ter uma convivência profissional quase que diária com uma velha amiga, colega desde os 18 anos de idade, quando foram calouras da Faculdade de Direito em Porto Alegre: a ministra do Supremo Tribunal Federal, Ellen Gracie. “Na nossa turma também estava o Manoel Castilho, que foi consultor-geral da República e é casado com a Ela, nossa caloura”, lembra. “E o Jobim (o ministro da Defesa Nelson Jobim) era nosso veterano”, recorda, rindo. Sandra admite que, durante as sessões do TSE, tem de se controlar quando dialoga com a velha amiga sobre os processos em julgamento. “Sabe que às vezes dá vontade de dar uma risada? Mas nós duas mantemos a postura formal, claro.”
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