Por que, apesar daquele pequeno detalhe, a gente tem de gostar dele

Diego Maradona é o cara que a gente adora odiar. Tem essa coisa de ele ser argentino, claro – mais que suficiente para fazer regurgitar, em convulsões rancorosas, o baixo ventre de nossa pátria em chuteiras.

O problema é que Maradona foi gênio dos gramados, gênio, sim, o que o torna automaticamente intragável para os fanáticos da claque canarinha, sempre a reivindicar para nosotros o monopólio dos artífices da pelota (só o brasileiro teria, dizem, essa intimidade nata, filogenética, quase erótica, com o esporte que, no entanto, nasceu rude, bretão).

Gênio, repito – Diego Maradona foi um gênio, e é um gênio, dentro e fora das quatro linhas, o que, aliás, haja vista nosso simpático Pelé, são capítulos completamente diferentes. Genial e genioso, da estirpe daquele herói problemático a que se refere Gyorg Lukács, Maradona é o típico personagem da modernidade capitalista, sujeito desajustado, contraditório, inconstante, que encarna, no vigor explosivo da dialética, a essência do herói en conflicto. Risque um fósforo perto dele e a combustão será instantânea.
Mas como raros mestres, ele soube com sua arte produzir tanta beleza.

(Mesmo que ele venha a pensar que Lukács é um antigo zagueiro da Croácia, o fato é que Maradona morou na filosofia, e captou essa história de heroísmo ambíguo, e não tem nenhum constrangimento em se alardear um revolucionário. Marxista, amigo de Fidel e de Chávez, chegou a tatuar um formidável Guevara no braço direito).

Diego Armando foi filho da dificuldade, rebento do subúrbio (Lanús, Grande Buenos Aires), mas são tantos e tantos os mestres da bola que, como ele, procedem da mais sombria periferia, que o background não explica, por si só, o por quê de tantas subidas e descidas no elevador dos sentimentos contraditórios da euforia e da depressão. No caso de Maradona, a droga talvez explique – ou explicite. Chegou a ter seu empresário (nos negócios do futebol) encarcerado no presídio de Villa Devoto (por tráfico de cocaína).

Contra a torcida de quem já preferia arquivá-lo como uma foto do passado – ou tê-lo, no presente, como uma caricatura do que foi -, Dieguito peregrinou por clínicas, driblou a crise e renasceu do abismo dos mortos-vivos. Está limpo e, hoje, à medida que a Copa se aproxima, obriga a gente a ensaiar contra ele, de novo, com angústia de torcedor, todo um repertório de mandingas e sortilégios, aquele vodu misturado com wishful thinking que a gente escuta na voz de comentaristas sabichões: “Não, o Maradona não provou nada como treinador… A Argentina tem um belo time, mas não tem tática…”

Quem dera fosse assim. Gênios dos estádios podem gerar estrategistas medíocres. O próprio Pelé é uma catástrofe em seus prognósticos futebolísticos. Mas Maradona decidiu peitar o mau agouro do mesmo jeito que encarava a chuteira dos brucutus. É homem de coragem e de paixão.

Para quem viu Pelé jogar – desculpem, mas tinha de chegar essa hora -, Maradona fica um degrauzinho abaixo. Habilidade semelhante, talento igual, rapidez e tirocínio de jogo, surpresa mortífera no gingado, fintas infernais, porém, com aquela sua complexão atarracada que lembra um asmático, Dieguito jamais poderia almejar a plenitude plástica do futebol de Pelé, a elasticidade bailarina de pantera faminta de gols do maior de todos os craques. Pelé jogou quatro Copas, ganhou três; Maradona jogou três, ganhou uma (a bem da verdade histórica, teria possivelmente ganho outra, a de 1994, se não tivesse caído na cilada que lhe armaram). Chega em 2010 à sua quarta Copa, agora vestindo o figurino de treinador. Não ficará em casa diante da TV. Alguma vaidade há de influir em uma decisão dessas. Mas não há vaidade que suplante o genuíno destemor de botar à prova tal currículo de vencedor.

Pelé, o brasileirinho cordial, com seu bom senso estudado e sua bonomia promocional; Maradona, o argentino atormentado, em seu estilo tangueiro de paixões exacerbadas e conquistas descabeladas. Comparações sempre haverá, fatalmente, entre os dois. Maradona nos incomodou, em campo, vez e outra (a derrota de 1990 na Itália foi uma delas). Nós nos vingamos dele, outras tantas vezes. Há de se ressalvar que, rivalidade à parte, o Maradona dos gramados jamais se deixou levar, em suas filigranas de ourives da bola, pela tentação do deboche e da humilhação. Nunca se comportou como foquinha amestrada. Futebol, para ele, é coisa séria.

Quando foi para ser retratado no cinema, Maradona ganhou um documentário muito adequadamente assinado por Emir Kusturica, o denso cineasta sérvio (nascido na Bósnia) de Underground – Mentiras da Guerra. Se a literatura se interessasse um dia em fazer de Maradona seu protagonista, imagino que ele teria de cair nas mãos do sul-africano Coetzee ou o japonês Kenzaburo Oe, que parecem escrever com um espinho sob a unha do dedo indicador. Se fosse música, Maradona seria o Nirvana de Kurt Cobain. Se a pintura viesse a retratá-lo, haveriam de ressuscitar o inglês Francis Bacon (a Pelé já está reservada a iconografia tingida de ironia de um Andy Warhol). E dá para dizer que se o Chê ainda estivesse por aí, haveria de, em gratidão recíproca, tatuar no braço direito o rosto de Diego Maradona.

Este texto foi também publicado pela revista FS (Fora de Série), do diário Brasil Econômico.


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