A palavra aborto no Brasil “peca e sangra”. Habitualmente o tema é discutido em pequenos grupos e, definitivamente, são raras as ocasiões nas quais a sociedade civil, baseada em informações, participa do debate. Apenas para recordar o movimento articulado da mídia nos últimos anos, em 1993 houve grande repercussão o fato de ter sido concedido em São Paulo pelo então juiz e hoje desembargador, dr. Geraldo Pinheiro Franco, um alvará judicial que autorizava a interrupção de uma gravidez em caso de feto portador de anencefalia. A primeira autorização havia sido concedida em Ariquemes, Rondônia, em 1989 e estima-se que milhares de alvarás tenham sido concedidos até 2008 em todo o Brasil. A anencefalia é incompatível com a vida e a maioria dos nascidos com esta anormalidade morre nos primeiros dias de vida. Por inexistir córtex cerebral fala-se nesses casos de uma figura distinta do aborto pois não há vida humana por inexistir, nessa patologia, vida de relação. A sucessão de pedidos de alvarás judiciais desencadeou em 2004 a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) patrocinada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores de Saúde e pela ong ANIS de Brasília coordenada pela antropóloga Débora Diniz. A ADPF foi apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF) e originou uma liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio Mello em 1º de junho de 2004. Entre 1º de junho e 20 de outubro daquele ano várias interrupções de gravidez foram realizadas em casos de anencefalia sem necessidade de alvará judicial. Entretanto, em 20 de outubro de 2004 decidiu o STF cassar essa liminar e levar o tema para decisão no plenário do STF.
Em agosto e setembro de 2008 várias audiências públicas ocorreram no STF nas quais foram ouvidos movimentos sociais representativos das mulheres, entidades médicas, científicas e religiosas, entre as quais: Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, Conselho Federal de Medicina, Sociedade Brasileira de Genética Médica, o deputado federal José Aristodemo Pinotti, Débora Diniz, da ANIS, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, que tivemos a honra de representar. Tiveram voz também representantes das igrejas Católica, Universal do Reino de Deus, Movimento Pró-Vida e o deputado Luiz Bassuma (PT-BA) representando a Frente Parlamentar pela Defesa da Vida. Todas as audiências foram gravadas e serão analisadas por todos os ministros do STF, esperando-se a votação da questão relativa à autorização da interrupção de gravidez em casos de anencefalia em fevereiro de 2009. Note-se que o Brasil é o único país no qual essa patologia fetal foi isoladamente discutida. Em geral, as legislações no mundo desenvolvido prevêem a permissão de interrupção de gravidez em anomalias fetais graves e incuráveis, liberdade concedida às mulheres em 90% dos países que integram esse bloco. O mesmo acontece na Argentina por meio de uma lei específica de 2003, no Irã, em Cuba, na África do Sul e na Cidade do México. É inegável, entretanto, o valor de um amplo debate sobre o assunto que permitiu uma reflexão da população. Vale assinalar também que 80% dos médicos obstetras e ginecologistas ouvidos consideram válido que as mulheres possam optar por manter ou interromper livremente essas gestações. Em termos de direitos humanos baseia-se a ADPF, entre outros argumentos, no fato de não impor tortura às mulheres que, diante do infortúnio de um diagnóstico grave como é a anencefalia, viessem a ser obrigadas a manter a gravidez com possíveis intercorrências graves em seu transcorrer e durante o parto.
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Em 1994 houve a condenação de uma mulher em Jundiaí, interior de São Paulo, que meses antes havia dado entrada em um pronto-socorro com quadro de hemorragia e acabou informando o médico que ela havia recorrido a um aborto. Este decidiu então fazer um Boletim de Ocorrência que resultou em uma ação judicial criminal. Essa mulher era mãe de cinco filhos e a gravidez havia ocorrido acidentalmente. Houve na época uma grande discussão sobre o tema e vários jornais publicaram matérias durante semanas em virtude de sua penalização.
Sim, o que falar sobre a penalização do aborto diante da realidade sócio-cultural brasileira e dos dados de saúde pública disponíveis? Em 2005 a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SEPM), órgão da Presidência da República, criou uma Comissão Tripartite para rever a legislação punitiva relativa ao aborto. Integravam-na representantes da sociedade civil, da Câmara Federal (na época presidida pelo deputado Severino Cavalcanti) e pelo Senado Federal e do Executivo. Os trabalhos iniciaram-se no começo de maio e foram encerrados com um projeto de lei bastante avançado em 1º de agosto daquele ano. Vale rememorar que no final de maio de 2005 iniciava-se a crise do mensalão. O projeto de lei previa a não penalização do aborto e a assistência às mulheres pelo Sistema Único de Saúde (SUS) quando desejassem interromper a gravidez até as 12 primeiras semanas, mantinha a possibilidade de interrupção já prevista na lei de 1940 nos casos de risco de vida para a gestante e naqueles de violência sexual e previa a permissão de interromper as gestações com anomalias fetais graves e incuráveis até 20 semanas.
O ambiente político por ocasião do encerramento dos trabalhos da Comissão Tripartite permitia prever a impossibilidade de tramitar aquele projeto de lei no Congresso Nacional, o que a história posteriormente comprovou. Vários ensinamentos adquiridos nessas discussões puderam ser de grande valia; um dos quais era a ineficácia, em geral, da penalização do aborto. As avaliações de diversos organismos internacionais, entre os quais o Alan Guttmacher Institute de Nova York, EUA, e a Organização Mundial da Saúde (OMS), estimam a ocorrência no Brasil de cerca de um milhão de abortos inseguros por ano o que torna irreal penalizar criminalmente essas mulheres. Mais ainda quando sabemos que o aborto inseguro é a quarta causa de mortalidade materna no Brasil e uma das principais causas de morbidade das mulheres, incluindo aí infecções, esterilidade, perfurações uterinas e intestinais. A ineficácia da lei também está na incompreensão que muitas correntes conservadoras no Brasil têm em relação aos direitos humanos, sexuais e reprodutivos. A maternidade, assim como a paternidade, é projeto de vida e de responsabilidade em relação a filhas e filhos. Nos dias atuais não é possível, dentro de uma sociedade democrática, laica e plural, pensar-se em impor uma gravidez indesejada a quem quer que seja. É nesse contexto que consideramos assustador o que vem acontecendo neste momento em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Invadiu-se uma clínica e violaram-se dez mil prontuários médicos incriminando as mulheres cujos dados clínicos sugeriam terem elas provocado abortamentos. Cento e cinqüenta delas já foram condenadas e cumprem penas de trabalho comunitário. Trata-se de uma série de violações incluindo o do sigilo médico. Situações assim comprovam a dificuldade que ainda temos de reconhecer a autodeterminação das mulheres e, ao invés de discutirmos a gravidez indesejada aliado ao exercício da sexualidade sem penalização, ainda estamos, nos grupos conservadores da sociedade, empenhados no “vigiar e punir” mulheres, condutas medievais e injustificáveis. Isso é exemplificado também por meio da mulher que foi algemada ao leito hospitalar no Acre no início do ano por ter interrompido uma gravidez.
Temos um longo caminho a percorrer. Matérias como esta devem levar-nos à reflexão. A recente votação pelo Congresso do Uruguai, de um projeto de lei que não penaliza o aborto, vetado pelo presidente Tabaré Vázquez, mostra que poderemos avançar nessa questão através de um debate maduro, realizado pela sociedade civil, levando-se em consideração os valores culturais e religiosos na América Latina. Em geral nossos líderes políticos não respeitam a opinião da população, impondo seus próprios valores, especialmente quando estão neles envolvidos questões religiosas. O que ainda parece muito distante entre nós é a compreensão de que questões de fé são de domínio privado; cada um exerce a sua fé de acordo com seus valores. Questões relativas à razão, estas sim são de domínio público. Embora tenha sido dada pouca divulgação ao fato de o governo Lula ter assinado em novembro de 2008 um “acordo” com o Vaticano, é necessário assinalar que o conceito de Estado laico com clara separação entre Estado e Igreja ainda é pouco incorporado entre nós. Talvez resida aí uma das razões pelas quais tenhamos tanta dificuldade em discutir questões ligadas aos direitos sexuais e reprodutivos, uma delas o aborto.
* Livre-Docente em Genética Médica pela Universidade de São Paulo
Professor Adjunto de Ginecologia da Faculdade de Medicina de Jundiaí
Coordenador do Grupo de Estudos sobre Aborto – GEA
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