Uma manhã, Pelão telefonou para o jornalista e pesquisador Lúcio Rangel (1914-1979). Queria encomendar a ele o texto para a contracapa de um disco do trombonista Raul de Barros, que estava produzindo para a gravadora Marcus Pereira.
– Quando você vem ao Rio? – Lúcio perguntou.
[nggallery id=15440]
– Eu estou no Rio – disse Pelão.
– Então venha aqui em minha casa hoje à tarde, lá pelas três horas.
O ano era 1974. Lúcio Rangel morava no Jardim de Alá, divisa entre Ipanema e Leblon. Seu apartamento era no andar térreo de um pequeno edifício, que nem existe mais. Às três da tarde, Pelão tocou a campainha. Ouviu passos e uma voz perguntou:
– O que o senhor deseja?
– Quero falar com Lúcio Rangel.
– Agora não posso atendê-lo. Estou esperando um crioulo chamado Pelão.
– Mas eu sou Pelão!
Não foi nada fácil para João Carlos Botezelli, descendente de italianos pelos lados paterno e materno, 1m87 de altura, barbudo e com uma vasta cabeleira, como era moda na época, convencer Rangel de que era o Pelão, embora não fosse um crioulo. O apelido o acompanha desde os 15 anos, quando estudava numa escola de agricultura em Pirassununga, no interior de São Paulo. E é fácil entender por que o assumiu. João Carlos existem aos montes por aí. Mas Pelão só tem um.
LEIA TAMBÉM:
Históricos sons do Brasil
Ele é um eterno desconhecido para os que são alheios aos bastidores das gravadoras de discos e emissoras de televisão. A esmagadora maioria do público não tem a mínima ideia do que seja e do que faz um produtor musical. No caso de um compositor popular que tenha pouca ou nenhuma experiência como cantor, o trabalho do produtor abrange desde a escolha do repertório e dos músicos acompanhantes até a supervisão dos arranjos e da gravação de cada uma das faixas do disco. Isso significa, por exemplo, ter sensibilidade para determinar quais os instrumentos que deveriam apoiar Nelson Cavaquinho, sem abafar sua voz roufenha, lapidada por incontáveis cachaças, e seu violão, que ele tocava usando apenas dois dedos da mão direita.
Foi o que Pelão fez naquele 28 de agosto de 1973, quando entrou no estúdio da Odeon, em São Paulo, para iniciar a produção do LP Nelson Cavaquinho. Começou ali a sua briga contra o comodismo e a indiferença que nivelavam por baixo a maioria das gravações. Um técnico do estúdio, que se achava muito mais competente do que era, disse a Pelão que já estava tudo acertado: músicos, arranjos, etc, etc.
– E quem são esses músicos?
– Os de sempre – respondeu o técnico, sem procurar disfarçar um tom de descaso.
– E o violão do Nelson?
– Violão? Nem pensar.
Pelão dispensou os palpites do técnico e dirigiu a gravação com os músicos que havia escolhido. Aquele seu primeiro disco se revelou tão bom que a gravadora aceitou bancar em seguida outro LP de um cantor que também não era cantor: Adoniran Barbosa, gravado em janeiro de 1974. Entre suas faixas há uma que é lembrada por Pelão com carinho: “Bom Dia Tristeza”, uma das raras canções românticas de Adoniran, composta em 1958. Sua letra diz coisas assim:
“Se chegue tristeza
Se sente comigo
Aqui, nesta mesa de bar…”
Pelão decidiu-se por um conjunto de cordas, para acompanhar o compositor-cantor nessa música. À frente do conjunto, o violão de Theo de Barros, músico, compositor (“Disparada”, “O menino das laranjas”), arranjador e também produtor musical. Vivia-se o período mais repressivo da ditadura e o censor encarregado de examinar as gravações de Adoniran implicou com duas músicas: o “Samba do Arnesto”, por causa da linguagem chula, e “Um Samba no Bixiga”, lançado nos anos 1950 pelos Demônios da Garoa, porque continha as palavras “polícia” e “sargento”, o que, na opinião do censor, configurava um desrespeito às autoridades. Não havia como recorrer e, assim, as duas músicas ficaram de fora.
Algum tempo depois, Pelão foi chamado pela direção da Odeon.
– Achei que iriam me dar um bilhete azul – ele conta – Mas, em vez disso, encomendaram-me um segundo LP de Adoniran.
Esse segundo disco do autor de “Saudosa Maloca” saiu em maio do ano seguinte, com o mesmo acompanhamento do LP anterior e, dessa vez, conseguiu incluir o “Samba do Arnesto”. A explicação é simples: as gravações foram examinadas por outro censor, que tinha seus próprios critérios. Foi Theo de Barros, naquele mesmo ano, quem indicou Pelão a Aluízio Falcão, diretor artístico e sócio da gravadora Marcus Pereira, uma pequena gravadora, nascida de uma agência de publicidade, também pequena, que tinha o nome de seu dono. Em 1967, por sugestão de Aluízio, a Marcus Pereira produziu, para oferecer como brinde de Natal a seus clientes, um LP com músicas de Paulo Vanzolini, Onze Sambas e uma Capoeira, que tinha entre os intérpretes o jovem Chico Buarque. O LP fez tanto sucesso que levou Marcus a lançá-lo comercialmente e, em seguida, a fazer outras incursões no mundo do disco. A mais ambiciosa foi a coleção com seleções da música popular das diversas regiões do País. Pelão participou dos quatro primeiros discos da coleção. Sua participação obrigou-o a se embrenhar nos rincões mais inóspitos para captar os sons primitivos e autênticos de cada região, algumas vezes tendo de enfrentar a má vontade dos locais. Esses discos não tiveram grande sucesso de vendas, embora tenham sido muito elogiados pelos críticos. Foi quando Pelão teve a ideia que resultaria no disco mais bem-sucedido da gravadora.
– Uma noite – ele conta – depois de cumprir o roteiro habitual pelos meus bares preferidos, o Alemão, na Avenida Antártica, e o Bar do Zé, na rua Maria Antônia, fui até o Jogral, que já estava no seu terceiro e último endereço, na Rua Maceió. Nessa altura, você pode imaginar, eu já estava como o diabo gosta. Entrei no Jogral e dei de cara com o Aluízio Falcão, que estava tão bêbado quanto eu. Então me ajoelhei diante dele e implorei: Aluízio, me deixa produzir um disco com o Cartola! Mas Aluízio falou: “Nós dois estamos de cara cheia, não dá para falar de trabalho deste jeito. Amanhã, na Marcus Pereira, a gente conversa”.
No dia seguinte, sóbrios, voltaram ao assunto. Aluízio aprovou a ideia de Pelão, mas aí faltava vencerem uma difícil barreira: o dono da gravadora. Marcus Pereira não queria saber de Cartola. Seu principal argumento, como seria de esperar, é que ele não sabia cantar. E, com a suposta autoridade que lhe dava sua experiência de empresário, acrescentava que Cartola “não tinha interesse comercial”.
– Esse tipo de disco não vende – sentenciou Marcus.
Pelão e Aluízio insistiram. Uma semana, um mês, dois meses. Terminaram vencendo pelo cansaço. Pelão foi para o Rio e, menos de duas semanas depois, trouxe a fita com as gravações de Cartola, feitas no estúdio da RCA Victor, em Copacabana.
Marcus Pereira ouviu e não gostou.
– Que latido de cachorro é esse, aí no fundo?
O “latido de cachorro” era a cuíca de Marçal, que participou de algumas faixas, explica Pelão. Ele admite que poderia desculpar muita coisa, mas considera um insulto pessoal alguém confundir a cuíca de Marçal com um latido de cachorro. Dois meses depois, as gravações de Cartola continuavam na geladeira. Foi quando Pelão se encontrou com o jornalista Maurício Kubrusly, que, na época, trabalhava no Jornal da Tarde.
– O que é que você tem feito? – Maurício perguntou.
Pelão contou sobre o disco de Cartola e acrescentou, desanimado:
– Não faço ideia de quando ele vai sair… se sair.
No dia seguinte, Maurício Kubrusly publicou uma matéria no JT, cujo título dizia, mais ou menos, o seguinte: “Vem aí o melhor disco do ano: o primeiro LP de Cartola”. Ao ler o jornal, Marcus Pereira autorizou de imediato o lançamento. O disco foi eleito pela crítica como o melhor de 1974 e recebeu um monte de prêmios. Nos meses seguintes, Pelão produziu mais uma dúzia de discos para a Marcus Pereira, alguns deles antológicos, como o de Donga, autor de “Pelo Telefone” (o primeiro samba gravado em disco), e o primeiro LP da série História das Escolas de Samba, dedicado à Estação Primeira de Mangueira. Produziu também ótimos discos instrumentais, como Brasil Trombone, de Raul de Barros (com a contracapa assinada por Lúcio Rangel) e Brasil Seresta, do flautista Carlos Poyares.
Tudo faz crer que o interesse de Marcus Pereira pela música popular brasileira era sincero, mas acabava atropelado por sua sufocante vaidade. Ele era uma pessoa de trato difícil, o que tornava cada vez mais complicado o seu convívio profissional com uma pessoa esquentada como Aluízio Falcão. Em fins de 1975, Aluízio rompeu com ele e deixou a gravadora. Sem hesitar, Pelão o acompanhou e, poucos meses depois, desembarcou no Rio, a convite de Augusto César Vannucci (1934-1992), diretor do núcleo de programação musical da TV Globo. O cartunista Borjalo (1925-2004), que também era um dos manda-chuvas da emissora na área de programação artística, acertou os detalhes da contratação de Pelão, que passaria a cuidar dos musicais da Globo, inclusive os inseridos no Fantástico e também da organização de festivais de música popular. Seu salário inicial seria de 5.174 cruzeiros.
– A quanto isso equivale, em moeda de hoje?
– Não faço ideia, mas era uma merreca – diz Pelão em tom debochado.
Assinado o contrato, Borjalo disse que já havia reservado hotel para ele.
– Hotel eu já tenho – falou Pelão -, é o Bragança, na Lapa, onde me hospedo sempre que venho ao Rio.
– Mas aquilo é uma espelunca – Borjalo protestou.
– Até pode ser, mas lá eu conheço todo mundo, do gerente à camareira. É lá que eu quero ficar.
Borjalo fez questão de levá-lo pessoalmente ao Hotel Bragança, na Rua Mem de Sá, bem no coração da Lapa. Pelão morou ali durante quase dois anos. Depois, concluiu que seria mais prático morar mais perto da Globo e então alugou um pequeno apartamento em Ipanema. Sua nova residência tinha sala, quarto e dependências de empregada, que ele transformou em sua adega particular, com prateleiras repletas de garrafas que cobriam do chão ao teto.
– Temos que nos prevenir contra uma lei seca ou um cerco de selvagens abstêmios – explicou a um amigo que o visitou.
O mesmo amigo e o letrista e escritor Aldir Blanc tiveram oportunidade de verificar o quanto era justa a “poupança” de Pelão, numa noite em que foram convidados para um feijão gordo preparado por ele na minúscula cozinha do apartamento. Enquanto o feijão cozinhava, tentaram dar cabo da adega. Fracassaram, é lógico, mas quando o jantar ficou pronto (já passava da meia-noite), os dois já estavam quase de quatro.
Pelão voltou a se mudar em 1979, dessa vez por um motivo mais imperioso. Naquele ano, ele se casou com Cristina e foram morar na Rua Pacheco Leão, no Jardim Botânico, pertinho da Globo. Moravam lá quando nasceu Bartira, sua filha mais velha. No mesmo período ele assumiu a direção musical de uma das casas noturnas mais charmosas que São Paulo já teve, o Ópera Cabaret, no bairro do Bexiga. Uma orquestra de 14 músicos, dirigida pelo maestro Elcio Alvarez, embalava os casais românticos que frequentavam a casa. Completando essa atração, era oferecido um show de um artista famoso (embora em fim de carreira). Entre os que lá se apresentaram, destacavam-se nomes como Dick Farney, Grande Otelo, Isaurinha Garcia, Lúcio Alves e muitos outros.
Mas o Ópera Cabaret teve vida efêmera. Dois anos ou pouco mais. Talvez achando que seus lucros eram insuficientes, o proprietário adotou a pior medida de economia que um empresário da noite pode adotar: demitiu a maioria dos músicos, reduzindo a orquestra a um quinteto. E baixou o nível dos artistas contratados para o show. Não deu outra: a plateia minguou e a casa acabou sendo vendida. Também na mesma época, Pelão organizou um festival de música popular na TV Globo. A era dos festivais já se esgotara e aquele seria o último evento desse gênero apresentado pela televisão brasileira.
Em 1982, voltou para São Paulo. Comprou um apartamento no bairro de Perdizes, onde mora com a família até hoje (sua segunda filha, Marianna, nasceu naquele ano). Nos seis anos seguintes, ele produziu para a Elebra, fabricante no setor de eletrônica, uma série de discos-brindes, intitulada Memória. O sexto e último disco da série, lançado em 1989, era uma homenagem especial ao maestro Radamés Gnattali, falecido no ano anterior, e reuniu também uma seleção de grandes solistas das várias regiões do País. Do que fez nos anos 1990, ele destaca dois discos que produziu para o selo Velas, dos compositores Ivan Lins e Victor Martins. São eles Os Melhores Sambas-Enredo de Todos os Tempos e Maracatu Nação Pernambuco, com o contrabaixista Toinho Alves, fundador e líder do Quinteto Violado, que morreu em 2008. Também foi ele quem produziu o último disco do grande violonista Raphael Rabello, morto aos 32 anos, em 1995. Esse disco foi uma homenagem a outro grande violonista, Dilermando Reis (1916-1977).
Em 2001 e nos anos imediatamente seguintes, Pelão produziu para o Serviço Social do Comércio (Sesc) uma série de cem discos com o áudio do programa Ensaio, criado, produzido e dirigido por Fernando Faro para a TV Cultura, com os personagens mais significativos de nossa música popular. Os que conhecem o Pelão boêmio, segurando o copo de chope entre o polegar e o dedo mínimo, dificilmente imaginam que esse grandalhão irreverente possa ser o profissional sensível e meticuloso que ele é. Talvez até esbocem um riso incrédulo, se você lhes disser que o verdadeiro Pelão, na vida pessoal, é um homem conservador, casado com a mesma mulher há quase 30 anos e amigo caloroso dos amigos que fez ao longo dos seus 67 anos.
Deixe um comentário