Largar um emprego estável para viver de literatura parece uma pequena insanidade em um país pouco afeito aos livros, como é o caso do Brasil. Não para Rogério Pereira, fundador e editor do Rascunho, o maior jornal literário do País, que este ano completa uma década. No começo dos anos 2000, ainda com vinte e poucos anos, Pereira, movido pela paixão literária, se lançou em uma aventura despretensiosa, mas que se revelou sem volta.
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Em uma página do Jornal do Estado, um diário que circula em Curitiba, Pereira lançou as bases do jornal que hoje é uma referência do jornalismo voltado aos livros. Com um projeto editorial que destoa do padrão dos cadernos de cultura, o jornal hoje é conhecido pelos textos de fôlego, com pouquíssimas fotos, que são impressas em suas páginas em preto e branco, o que, de certa forma, o aproxima dos antigos suplementos que dominaram o debate literário sobre literatura até os anos 1970 e serviram de plataforma para críticos, como Wilson Martins, Antonio Candido e Otto Maria Carpeaux. O Rascunho também se diferencia por seguir uma pauta própria, não se limitando a reproduzir a agenda e os lançamentos do mercado editorial. Tudo isso, somado à preciosa colaboração de escritores renomados, como José Castello, Raimundo Carrero e Luiz Ruffato, fez com que o rompante de um jovem apaixonado por literatura virasse realidade. Rogério Pereira hoje vive de literatura.
Com o sucesso do jornal, outros projetos foram surgindo. Hoje, além de editar o Rascunho, Pereira faz curadorias (atualmente trabalha na da I Bienal do Livro do Paraná; em 2011, fará a da Bienal do Livro da Bahia), desenvolve o projeto SESI Zoom Cultural (voltado para o público jovem), dá palestras, é sócio do Quintana Café & Restaurante e coedita, junto com o escritor Luís Henrique Pellanda, o site de crônicas Vida Breve (www.vidabreve.com). Nada mal para quem “tinha certeza de que naufragaria em poucos meses”. A seguir, o jornalista fala um pouco sobre os sabores e dissabores de se editar um jornal sobre literatura no Brasil.
Brasileiros – Rogério, depois de dez anos, qual é a sua avaliação da trajetória do jornal? Chegou onde imaginava ou você não tinha muita pretensão quando resolveu criar o jornal ainda no tempo em que era encartado no Jornal do Estado?
Rogério Pereira – Nesses 10 anos, o Rascunho passou por diversas fases – todas marcadas por algumas dificuldades. Na fase inicial (até mais ou menos o segundo ano de vida), a dificuldade principal era de infraestrutura. Não tínhamos escritório, dinheiro, anunciantes, assinantes. Praticamente, não tínhamos nada. O jornal era feito nos fins de semana ou de madrugada na redação do Jornal do Estado, onde era encartado. Era quase uma insanidade. Não ganhava um tostão sequer e, muitas vezes, tinha de tirar dinheiro do bolso para pagar as despesas. Portanto, foi a fase da penúria quase absoluta. A partir do terceiro ano, o Rascunho já conseguia angariar alguns anunciantes (poucos, é claro). Quando completou quatro anos de vida, a parceria com o Jornal do Estado foi finalizada, em comum acordo. Foi o ponto crucial na história do Rascunho, pois era preciso tomar a decisão: continuar por conta e risco ou acabar com a aventura. Resolvi seguir adiante. No fim de 2005, quando o jornal caminhava para os seis anos de vida, tomei a decisão mais importante desses 10 anos: abandonei a estabilidade de empregos com carteira assinada (na época, era chefe de redação da Gazeta do Povo) para me dedicar exclusivamente ao jornal e viver da literatura e seu entorno. Até então, sempre mantive o Rascunho paralelamente a outra atividade profissional. Agora, vejo o jornal completar 10 anos com, acredito, fôlego para mais alguns anos. Como vê, foram fases distintas. Sempre optei por não contar com leis de incentivo à cultura. Com isso, tive de correr atrás de patrocinadores e assinantes para bancar o projeto todo. Mantê-lo vivo é muito difícil. Fechamos 2009 com uma dívida de, mais ou menos, R$ 50 mil. Isso é uma ninharia para uma empresa de comunicação, mas uma fortuna para um jornal independente de literatura. Portanto, nesses 10 anos, o Rascunho passou por fases muito distintas – de um amadorismo puro, no início, para um semiprofissionalismo atual -, mas todas sempre foram bastante complicadas devido às barreiras comerciais que um jornal dedicado à literatura sofre em um país não muito afeito à leitura. Mas acredito que a fase inicial era mais complicada, pois além da penúria, não tínhamos reconhecimento. Agora, a penúria ainda nos ronda, mas temos certo reconhecimento pelo trabalho. No início, não tinha nenhuma pretensão a não ser a grande pretensão de fazer um jornal sobre literatura. Tinha certeza de que naufragaria em poucos meses. Mas os meses se multiplicaram. Só não sei até quando.
Brasileiros – Na história da imprensa paranaense, há exemplos de veículos que marcaram a vida intelectual do Estado e, até, do País. O Rascunho tem alguma coisa a ver com seus precedentes Nicolau e Joaquim?
R.P. – Acho que há características que os aproximam. As duas mais marcantes são: periódicos editados na periferia (culturalmente, o Paraná é uma periferia brasileira); e o núcleo central ser cultural (no caso do Rascunho, exclusivamente literário). No entanto, há diferenças que os distanciam também. A Joaquim foi editada no final da década de 1940. Uma época muito distinta da nossa em todos os aspectos. Além disso, não conheço muito bem a história da publicação. Não sei como se manteve viva. O Nicolau sobreviveu muitos anos (acho que oito) graças às benesses do Estado. Já o Rascunho sobrevive por teimosia.
Brasileiros – Você hoje cuida de outros projetos além do Rascunho. Mas como é sua rotina no jornal? Quanto ele absorve do seu tempo?
R.P. – Minha vida é o Rascunho. Tudo gira em torno do jornal. Não tenho trabalho fixo (aquele com carteira assinada) desde 2005. Além do Rascunho, desenvolvo o projeto Paiol Literário (desde 2006), faço curadorias (atualmente trabalho na da I Bienal do Livro do Paraná; em 2011, farei a da Bienal do Livro da Bahia), desenvolvo o projeto SESI Zoom Cultural (voltado para o público jovem), dou palestras, tenho o Quintana Café & Restaurante e coedito o site de crônicas Vida Breve (www.vidabreve.com). Mas tudo isso segue em paralelo ao Rascunho. Trabalho todos os dias no jornal (inclusive finais de semana). Normalmente, vou para o escritório do Rascunho à tarde (entre 14 horas e 19h30). No entanto, sempre levo trabalho para casa. É muita coisa, pois faço praticamente tudo sozinho (o Luís Henrique Pellanda é subeditor): cuido da pauta, das assinaturas, das finanças do jornal, diagramo, distribuo, etc. É quase uma insanidade.
Brasileiros – Brasil afora, há outras iniciativas voltadas à literatura, como o Suplemento Pernambuco e o Suplemento Literário, do jornal O Estado de Minas, mas ambos mantidos com subsídios governamentais, diferentemente do que ocorre com o Rascunho. Por que o Rascunho nunca procurou lei de incentivo? Uma questão ideológica e editorial?
R.P. – Não gosto de burocracias. Sou uma pessoa muito prática e objetiva. Não me agrada nada a burocracia das leis de incentivo. Além disso, não acho que eu e você devamos patrocinar projetos culturais dos mais duvidosos (como é o caso de muitos que são aprovados). As pessoas se esquecem de que quem paga o projeto cultural da Lei Rouanet é o contribuinte. A empresa simplesmente deixa de pagar impostos para o governo e injeta os valores no projeto cultural. Ou seja, o dinheiro que deveria ir para os cofres públicos (e que deveria ser investido no serviço público) vai para o produtor. Isso realmente não me atrai muito. Agora, parece, estão revendo os critérios da Rouanet. Não acompanho muito este assunto. Se uma empresa quiser apostar e patrocinar o Rascunho, será muito bem-vinda, mas sem qualquer renúncia fiscal.
Brasileiros – Vocês recebem muitos textos, principalmente de estudantes de letras. Como fazem a triagem do material? Deve ser difícil dizer não para tanta gente. Isso já criou embaraço para você, tendo, de repente, de rejeitar textos de gente renomada?
R.P. – Recebemos dezenas de textos todos os meses. Tento ler todos. No entanto, não damos retorno aos autores, pois ficaria só fazendo isso da minha vida. Os textos que considero com qualidade publico no Rascunho. Há textos que chegam com uma pré-leitura de algum colaborador. Isso facilita a minha vida. Intelectualmente, o Rascunho é um trabalho conjunto. Estou há 10 anos fazendo a mesma coisa. Tenho muita experiência para evitar embaraços e controlo muita bem a pressão para a publicação de determinados textos. O editor de jornal ou revista que tem medo de angariar inimigos ou desafetos deve mudar rapidamente de profissão.
Brasileiros – Qual é, para você, a principal contribuição do Rascunho ao longo de sua existência?
R.P. – Talvez a da persistência. A trajetória do Rascunho mostra que é possível fazer um jornal sobre literatura num país muito pouco afeito à leitura. Basta querer e ter um pouco de sorte. Além disso, o Rascunho também provou que é possível editar um jornal literário com independência, sem ser refém do mercado, das grandes editoras, do compadrio que ronda a literatura, etc.
Brasileiros – Um dos primeiros colunistas de renome a aderir ao Rascunho foi José Castello. Que importância teve a adesão do Castello para o jornal em uma época em que o Rascunho ainda não havia se firmado?
R.P. – A generosidade e a coragem do Castello foram (e são) decisivas para a história do Rascunho. Quando ele atrelou seu nome ao Rascunho, o jornal ganhou força e credibilidade no meio literário nacional. A partir daí, outros escritores e intelectuais de renome apostaram no Rascunho. A iniciativa do Castello mostrou que o jornal não era uma brincadeira adolescente. O tempo provou que ele estava certo.
Brasileiros – Você costuma dizer que o Rascunho é feito em um formato semiprofissional porque não remunera seus colaboradores. Você acha que isso pode mudar ou pagar pelas colaborações não é uma preocupação imediata sua? Aliás, se isso acontecesse, faria do Rascunho um jornal melhor?
R.P. – Isso nunca vai acontecer. Quando isso acontecer, o Rascunho deixará de existir. No esquema em que o jornal é feito hoje, é impossível remunerar os colaboradores. Teria de virar uma empresa muito grande. Algo incontrolável. Só uma hipótese de se pagar os colaboradores: eu ficar milionário. Acho que não tenho essa vocação. Infelizmente. Se isso acontecesse, talvez o Rascunho melhorasse um pouco. Não muito. Mas eu poderia contratar mais colaboradores, gente que não escreve de graça (algo com que concordo plenamente).
Brasileiros – Com todo esse debate sobre o fim dos jornais e as tiragens cada vez menores dos impressos, quem você acha que é o leitor do Rascunho, um jornal que prioriza os textos grandes e com poucas fotos? Marçal Aquino costuma dizer que no Brasil os leitores formam uma seita, por serem tão poucos. É essa seita que lê o Rascunho?
R.P. – Sinceramente, não me preocupo com esta discussão sobre o fim dos jornais, tiragens pequenas, etc. Faço o jornal que gostaria de ler. Gosto de ler textos de verdade, textos longos, de fôlego. Então, faço um jornal assim. Se há leitores? Acho que os dez anos do Rascunho provam que sim. Se é uma seita? Concordo. Agora, não sei o tamanho dessa seita. A edição impressa de cinco mil exemplares se esgota rapidamente. Temos leitores muito fiéis. Além disso, o Rascunho acaba de ganhar um edital para a venda de sete mil assinaturas para o Ministério da Cultura. A partir de novembro, a tiragem do jornal passa para 12 mil exemplares. Se levarmos em conta dois leitores por exemplar, teremos cerca de 25 mil leitores. Acho que é uma seita bastante razoável.
Brasileiros – Para os próximos anos, o que você gostaria que mudasse no jornal? Como você vê o Rascunho em um futuro não muito distante?
R.P. – Só penso em uma coisa: na sobrevivência do Rascunho. Então, gostaria que o jornal conseguisse seduzir mais anunciantes, mais empresas que acreditam num projeto como o do Rascunho. Em curto prazo, vou inventar coisas: para 2011, projeto a Semana Rascunho de Literatura e o Prêmio Rascunho de Literatura. Além do projeto Cronistas do Brasil.
Brasileiros – Você disse que o Rascunho é seu projeto de vida, mas se o jornal um dia acabar, como você quer que ele seja lembrado?
R.P. – Não penso muito nisso. Tenho 37 anos. O Rascunho tem dez. Quero que ele seja lembrado agora, em vida. Quero que tenha mais assinantes, mais anunciantes, mais colaboradores, mais leitores. E que o jornal consiga fazer algo importante neste tempo presente, neste momento em que está vivo. Depois de morto (o Rascunho ou eu), tanto faz. Pelos mortos quem se interessa são os vermes, as funerárias e os urubus.
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