Só fui abrir os jornais hoje de manhã depois de terminar de escrever o texto do post anterior sobre minha viagem à Juréia (“Um outro mundo, tão perto daqui”) e não consigo me conformar com o que li a respeito deste inacreditável caso da menina de 9 anos, estuprada pelo padastro, que estava grávida de gêmeos.
Para salvar a vida da menina, os médicos da Maternidade Cisam, da Universidade de Pernambuco, no Recife, fizeram o que deveriam fazer: na quarta-feira, ela foi submetida a aborto para interromper a gravidez.
O diretor médico da maternidade, Sergio Cabral, que foi o responsável pelo procedimento, explicou com todas as letras:
“O risco maior seria a continuidade dessa gravidez. Uma criança de nove anos não tem ainda os orgãos formados. Se tudo correr bem, ela deve ter alta ainda esta semana”.
E não é que um advogado da Arquidiocese de Olinda e Recife, Márcio Miranda, anunciou que vai apresentar uma denúncia de homicídio contra a mãe da vítima por ter autorizado o aborto?
Dá para acreditar num absurdo destes? Como se estivesse falando em nome de Deus, o próprio, o arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, ainda veio a público justificar a ação do advogado:
“Nós, ministros da Igreja Católica, temos obrigação de proclamar a lei de Deus. Nesses casos, os fins não justificam os meios, e a lei humana contraria a lei de Deus, contra a morte”.
Nós, quem, cara pálida? Como católico praticante, batizado, crismado e formado em escola de padres, ex-membro da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, não posso concordar que este bispo fale em meu nome e no da minha Igreja.
Clama aos céus que o que está em jogo não são as leis, nem dos homens nem da Igreja, mas apenas a vida de uma menina indefesa, ainda mais num país em que a legislação autoriza o aborto em vítimas de estupro até a 20ª semana de gravidez, sem autorização judicial.
Como o bispo Sobrinho já excomungou a família toda e meio mundo nesta trágica história, eu pergunto: também não tenho o direito de excomungá-lo da minha igreja?
Quanto mais ele procura defender sua posição, mais o bispo me revolta com o que leio no jornal, chegando a duvidar que as palavras sejam dele mesmo:
“A menina engravidou de maneira totalmente injusta, mas devemos salvar vidas. A Igreja sempre condenou e vai continuar condenando o aborto”.
Engravidou de maneira totalmente injusta? O que é isso? Por acaso existe estupro justo?
Pois se o bispo está mesmo interessado em salvar vidas, deveria dar todo o apoio aos médicos da Maternidade Cisam e à mãe da menina e não ameaçá-los com um processo na Justiça dos homens.
Ou deveria ir conversar com Paula Viana, a coordenadora do Grupo Curumim, organização não-governamental de defesa da mulher, que poderia lhe explicar qual vida precisava ser salva:
“A cada dia que passava, o risco era maior, a menina se sentia mal e já apresentava outras complicações. Tinha que ser feita uma intervenção médica imediata”.
E pensar que esta mesma Arquidiocese de Olinda e Recife já foi ocupada por um homem como meu amigo dom Hélder Câmara, o bispo que nos tempos mais sombrios da ditadura militar, arriscava a própria vida para salvar a vida dos outros.
Tenho certeza de que esta Igreja que dom Sobrinho diz representar não é a minha Igreja e não é a Igreja de dom Hélder. Alguém está na Igreja errada.
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