Desde o lindo barrigão grávido de Leila Diniz e a famosa tanga de crochê que o hoje deputado federal Fernando Gabeira trajava nos anos 1970 em suas areias, o Posto 9, em Ipanema, é point de lançamento de modas e atitudes de vanguarda, e reconhecido internacionalmente. A beleza desse pedaço de praia, indiscutível cartão-postal do Rio de Janeiro, é retratada por profissionais e amadores em fotos belíssimas espalhadas pelo Brasil e mundo afora. Reza a lenda que foi ali, pela primeira vez na história da humanidade, no final dos anos 1950, que o fotógrafo Carlos Leonam, frequentador da praia na altura da Rua Montenegro (hoje Vinicius de Moraes), com sua patota de amigos, como Jô Soares, Rui Guerra e Gal Costa, puxou o primeiro aplauso à beleza do pôr-do-sol. Gesto este que se tornou um ritual sagrado e vem sendo repetido entusiasticamente, ao longo das gerações, a cada verão.
Ponto de encontro de velhos intelectuais que se misturam a artistas e a uma bela juventude dourada, o espaço democrático sempre foi reduto da esquerda carioca, com direito à bandeira do PT cravada em frente à barraca do uruguaio Milton Gonzalez, nos anos 1990. Hoje, a bandeira vermelha de estrela branca já não mais tremula por ali, mas continua hasteada a do Uruguai. Os frequentadores também não mudaram. Em torno da mesma barraca, no alto verão, dia e noite, aniversários de crianças e adultos são comemorados e muitos réveillons festejados. É um ponto único na famosa praia, imortalizada por Tom Jobim e sua “Garota de Ipanema”. Das areias à calçada do Posto 9 tudo pode rolar. Além de muitos amores e desamores vividos, surgiram blocos de carnaval, como o de Segunda, ali idealizado há 21 anos, embora desfile em Botafogo, ou o Barangal e o Bafafá, sendo que este último desfila literalmente nas areias locais. Antes da saída dos blocos que acontece em Ipanema existe um outro ritual divertido, cumprido pelas mulheres como se estivessem num camarim: abrem sacolas, sacam fantasias, espelhinhos e maquiagem e se preparam ali mesmo.
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Sem falar que todo o folclore local sempre inspirou compositores a criarem sambas sensacionais para os blocos. Foi assim com as latas de maconha que caíram de um navio e vieram dar exatamente no 9. Lenine, que na época já era o genial compositor do Suvaco, o badalado bloco do Jardim Botânico, não perdeu a deixa e, em parceria com Mu Chebabi, mandou o “Samba da Lata”. Ou quando os apitos que a garotada soprava para avisar que a polícia havia chegado, e os “cigarros” deveriam ser apagados, serviram de mote a um samba bem engraçado de João Nogueira intitulado “Apitaço”. E não faltam mesmo histórias, das mais singelas às mais ousadas, a rechear o mito do Posto 9 ao longo de tantos verões. Certa tarde, início dos anos 1990, simpáticas baleias começaram a se exibir pertinho da areia para alegria de todos. Uma jornalista, sempre presente no local, ligou na hora para o Informe JB (época ainda glamorosa do velho Jornal do Brasil), que rapidamente localizou um carro do jornal perto da praia. No dia seguinte, uma bela foto do “show” ilustrava a primeira página do JB.
No calçadão, palco também de históricas manifestações políticas, como a passeata que pediu o impeachment do ex-presidente Collor, ou as bandeiradas nas campanhas de Lula para presidente, a galera costuma encontrar-se no Quase 9. O sininho que badala para saudar a mulher bonita que passa é marca registrada do quiosque, onde, entre chopes e caipivodkas, sempre ao som de uma gostosa trilha sonora que alterna MPB, Beatles ou jazz, os clientes costumam ser bem-humorados. Nessa época, o então ministro da Fazenda, Marcílio Marques Moreira, fazia o seu cooper no fim da tarde quando, ao passar pelo 9, a moçada da esquerda reunida saudou-o em coro: “Ó seu Marcílio, ó seu Marcílio, ai que saudade dos meus tempos de exílio!” A gargalhada foi geral, mas ele não perdeu a pose, também sorriu, acenou e acelerou o passo. Jornalistas mais uma vez em ação e, no dia seguinte, nota na Coluna do Ancelmo, no Globo, narrava divertidamente o fato. Noutro momento, pós ano 2000, período em que o governo César Maia perseguia os barraqueiros, os frequentadores rodearam a barraca do Milton num grande abraço e impediram a aproximação dos fiscais, obrigando-os a irem embora. De quebra, levaram a maior vaia.
Estamos em pleno verão. Agora, é só esperar pelas novas histórias que passarão a integrar as memórias do 9.
Do Uruguai para Ipanema
A história do uruguaio Milton Gonzalez confunde-se com a de outros brasileiros que sofreram na pele as consequências da ditadura militar. Fugindo de seus algozes, há 28 anos Milton fincou sua bandeira no Posto 9 de Ipanema, onde possui a sua barraca desde então. Mas até o seu estabelecimento tornar-se ponto de referência entre frequentadores cariocas, ele padeceu muito. Na pele indígena, bronzeada por quase três décadas do sol de Ipanema, muitas cicatrizes contam a sua história. Marcas “tatuadas” pela repressão política na década de 1970 e de facadas que recebeu durante um assalto ao chegar ao Rio de Janeiro. Estas são algumas das inscrições que contam a trajetória deste uruguaio esquerdista, uma das milhares de vítimas da ditadura militar que assolou a América Latina, principalmente nas décadas de 1960 e 1970. No braço esquerdo, a foice e o martelo, com a licença poética da estrela solar. Casado com Glória, pai de Marcelo, Natália e Tânia, Milton encontrou seu destino no Posto 9. Milton conheceu Glória quando trabalhavam num frigorífico em Montevidéu no início da década de 70. Ele com 21 anos e ela com 16. O namoro teve início na mesma época em que Milton começou a frequentar o sindicato da categoria, o que o levou ao Partido Comunista e à luta pela causa do operariado. A bela morena também acompanhava ideologicamente o namorado. Quando a ditadura militar instalou-se, em 1973, liderada por Juan Maria Bordaberry, nasceu Marcelo, o primeiro filho do casal. Uma no depois, chegava Natália. As crianças pouco conviviam com o pai, que volta e meia era preso. As prisões intermitentes chegaram ao fim quando ele foi condenado, em 1976, a oito anos de cárcere, pela acusação de comunista e de atos considerados subversivos. “Fui torturado várias vezes, no pau-de-arara, choque elétrico e outros artifícios empregados em todas as ditaduras da América Latina, já que obedeciam o mesmo modus operandi“, lembra.
Milton cumpriu pena de dois anos e meio. “Não conseguiram provar minhas ligações com o Partido Comunista. Fiquei preso por ser sindicalista.” Mesmo depois de solto, os militares não deixaram de persegui-lo. Por isso, acabou caindo na clandestinidade, no seu próprio país. Foram seis meses se escondendo no norte do Uruguai até resolver pedir asilo na embaixada do México. Não conseguiu. Com documentos falsos em mão, Milton saiu do seu país em agosto de 1980 pela fronteira com o Brasil. Passou pelo Rio Grande do Sul, São Paulo e, em contato com as Nações Unidas, foi enviado para o Rio de Janeiro. A ONU queria que o Brasil fosse só ponto de passagem, prometendo que o ativista se encontraria com a família, que não via a meio ano, na Europa. Tivesse bom senso, o uruguaio teria ouvido as Nações Unidas, pois as boas-vindas que teve ao chegar ao Brasil ele traz até hoje no corpo. “Quando cheguei aqui no Rio fui morar no bairro de Brás de Pina. Poucos dias depois, estava fumando numa passarela de uma estação de trem quando um cara me pediu fogo e eu disse que não tinha. Aí o cara falou, ‘mas você está fumando filho de uma…’ e veio pra cima de mim, me esfaqueando duas vezes no peito e no braço”, lembra.
Sangrando, o refugiado se desesperou, pois tinha consciência da impossibilidade de procurar um hospital, todos eles com plantão policial. Sem dinheiro, Milton foi a uma farmácia. “Vendi um anel de ouro e paguei as despesas. Tudo dava errado naquele momento, não sabia se seria aceito no Brasil, não conseguia contato com minha família, com amigos e só depois de algum tempo consegui falar com o Partido Comunista.”
As coisas só começaram a melhorar após um ano, quando uma assistente social localizou a família em Montevidéu. “Enviei uma carta com nome falso, combinando a vinda da Glória e das crianças. Demorou um ano e meio até ver minha família, mas valeu a pena. Comecei a sentir que o Brasil seria o meu segundo país.” Depois de muitas tentativas de trabalho para reforçar a pequena quantia que recebia mensalmente pelas Nações Unidas, resolveram ficar de vez. Para poder ficar legalmente no país, o advogado Modesto da Silveira, grande defensor de vítimas da ditadura, apresentou-lhes uma solução: um filho brasileiro. Mesmo em dificuldades financeiras, Milton e Glória aceitaram a sugestão jurídica. Nascia assim, em 1984, Tânia.
Antes da chegada da caçula, o casal passou a vender sanduíches na praia. Daí conseguiu o ponto fixo no Posto 9. “Adoro o Rio de Janeiro. Quando o carioca começou a nos conhecer melhor, foi muito solidário com a gente. Sou urioca, uruguaio\carioca”, diz.
Milton não pestaneja quando perguntado se é comunista. Olha de soslaio para a tatuagem no braço, dá um sorriso, e responde: “Se ser marxista/leninista é ser comunista, eu sou comunista. Veja esta crise do capitalismo, se seguíssemos os preceitos de Marx e de Lenin não estaríamos nestas condições, com estes problemas sociais sérios”.
Cutucar Milton sobre o assunto é pedir para ouvir horas sobre política, para espanto de alguns dos seus clientes da barraca, que costumam ver aquele senhor de 61 anos preparando sanduíches e discursando sobre o momento uruguaio e o brasileiro. “Estou mais otimista com o Uruguai. Tabaré Vasquez mostra que tem condições de governar. Aqui também não dá para ser antiLula. Não posso ser contra um mecânico que chegou a presidente e administra bem melhor o País do que um sociólogo”, afirma.
Assim como explica seu otimismo com os seus dois países, Milton muda de assunto e conta como virou flamenguista: “Quando cheguei no Brasil fui ver o clássico Vasco e Flamengo. Zico não jogou nada, pois apanhou muito. Passei a admirá-lo, pois ele não reagiu e tentou jogar, mesmo sendo agredido em campo o tempo todo. Além disso, a torcida do Flamengo colocou uma faixa “abaixo a ditadura””, diz.
Mas, além da política, do futebol e do samba, Milton gosta mesmo é de trabalhar na sua barraca, olhando as belas mulheres passarem, mesmo sob o risco de um beliscão ou de um grito de Glória. Em seu posto já estiveram personalidades como Chico Buarque, Caetano, Gil, Antônio Pedro, Carlos Minc, Fernando Gabeira, Jaguar….
Leitor viciado, Milton diz que quando está em casa, está lendo. “Leio jornal, livros. Preciso estar bem informado para entender como funciona o mundo. E ter discernimento sobre a forma com que a imprensa trata as notícias”. Por falar em leitura, Milton não deixa de enaltecer o escritor uruguaio Eduardo Galeano. Começa a falar sobre o autor de “As Veias Abertas da América Latina” e lembra que ele já esteve em sua barraca. “Ele é um grande escritor e deve ser uma ótima pessoa. Sabe que as duas ex-mulheres dele já estiveram aqui e que nenhuma das duas fala mal dele?”, diverte-se. Da mesma maneira, ninguém no Posto 9 fala mal de Milton, ao contrário, todos investem algum tempo para conversar com este uruguaio carioca que sempre tem um sorriso no rosto e uma brincadeira a fazer.
*Lidia Pena, jornalista e frequentadora do Posto 9 desde os anos 1970.
Washington Araújo, jornalista
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