Nesta edição, Miguel Nicolelis, que faz parte do Conselho Editorial da Brasileiros, estreia sua coluna. O olhar inteligente e original sobre nossa cultura e seus personagens de um homem que, mais do que um dos maiores cientistas do mundo, é um brasileiro extraordinário, apaixonado pelo País e dotado de um senso de humor muito acima da média.
Paulistano e palmeirense de nascença, Nicolelis vive em Durham, na Carolina do Norte (EUA), onde é professor titular de Neurobiologia e codiretor do Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke, referência mundial na área. Considerado uma das mentes mais brilhantes deste século, ele desenvolve um trabalho revolucionário sobre o cérebro humano.
Ficou conhecido por fazer com que macacos movessem braços robóticos usando apenas a força do pensamento. Um marco para a ciência que poderá reabilitar pessoas com paralisia corporal e que foi listado pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) como uma das dez tecnologias que podem mudar o mundo.
Suas pesquisas promissoras – com chance de dar ao Brasil um Nobel inédito – o levaram a receber prêmios, como o Pioneiro 2010, o mais prestigiado da área científica oferecido pelo governo americano por meio do Instituto Nacional de Saúde, incluindo US$ 2,5 mil para ser aplicados ao longo de cinco anos em estudos inovadores.
No topo da lista dos nomes mais importantes na área da neurobiologia, publicada pela revista Scientific American, Nicolelis também incentiva a formação de novos cientistas no Brasil. Ele é idealizador e diretor do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (RN) que, desde 2007, atende mais de mil crianças da rede pública de Natal e conta com uma filial em Serrinha (BA) para 400 alunos.
Em Natal, Nicolelis se dedica a um projeto que deve entrar para a história da ciência. O desenvolvimento de uma roupa especial – resultado do consórcio Andar de Novo, formado por Brasil, Suíça, Estados Unidos e Alemanha -, que permitirá que um tetraplégico dê o “pontapé inicial” na abertura da Copa do Brasil, em 2014. Admirável, genial e imprevisível.
Com vocês, Miguel Nicolelis!
BRAVA GENTE BRASILEIRA
O dia em que Canhoto da Paraíba colocou Andrés Segovia no banco
por Miguel Nicolelis
Em tempos normais, eu já não aconselharia ninguém vindo do Brasil a pousar no Aeroporto Internacional Dulles, de Washington, capital dos Estados Unidos, antes das 6 horas da manhã. Na quarta-feira chuvosa de 3 de novembro de 2010, nem pensar. Nas circunstâncias daquela madrugada, entrar em contato com a atual realidade do combalido império do norte sem a preparação adequada, tinha tudo para ser uma experiência traumatizante, capaz de causar nos menos avisados um estado de completa estupefação. Nesse momento, cabe um parêntese. Enquanto os viajantes brasileiros tinham deixado há poucas horas um país tropical ensolarado e radiante, comemorando o resultado alvissareiro de um dos maiores exercícios democráticos da sua história, os seus anfitriões matutinos acabavam de acordar para a dura realidade de um outro pleito. Depois da luta fratricida travada nas trincheiras da desinformação, ignorância e preconceito, os americanos tinham testemunhado, na noite anterior, mais um passo decisivo rumo à desintegração política, econômica e social, que, aparentemente, infecta o proverbial calcanhar de Aquiles de todos os impérios metidos a besta.
Rotineiramente mal-humorados, os oficias da imigração americana pareciam não acreditar que o tratamento para a sua ressaca eleitoral seria processar um Boeing 777 inteiro, cheio de brasileiros alegres e barulhentos, egressos dos agora felizes trópicos. O Brasil, certamente, está na moda, mas a moda ainda não pegou nos famosos guichês do aeroporto Dulles. Ah, como sofreram, naquela manhã cheia de contrastes e ironias históricas, aqueles incautos oficiais da lei, ordem, família e propriedade, na sua missão ingrata (e há muito perdida) de preservar a primeira linha de defesa do famoso, e já tão gasto, “American Way of Life“! Mais que eles, também nós, os passageiros, sofremos com a lentidão, soberba e a incompetência que, sejamos honestos, estendia-se democraticamente a nativos e alienígenas.
Folheando as páginas de passaportes impecáveis, muitos ainda completamente virgens, reproduzindo os mesmos rostos que, ao vivo, comprovavam o rumor de ser o Brasil um dos poucos rincões do planeta onde ainda é possível estampar o otimismo e a alegria, além de uma pequena dose de sarcasmo e ironia, como parte do seu cartão de visita, meus amigos da imigração (passo por lá tão frequentemente que alguns já sabem se o Palmeiras ganhou ou não, pela expressão do meu rosto) pareciam sonhar com emprego pleno, seguro saúde nacional, mais Bolsa Família, reservas estuporantes de petróleo, crescimento da economia de 7% e cantos de passarinhos que gorjeiam por aí, isso mesmo, onde você me lê nesse momento, prezado leitor, mas que há muito já decidiram emigrar de lá, onde estavam a sofrer aqueles oficiais sonolentos.
Passada essa barreira, decidi me aboletar na modesta área de espera de um dos portões de embarque e, enquanto minha conexão para Boston não chegava, aproveitei para usar meu laptop e ouvir música da terrinha. A saudade, como os senhores e senhoras podem imaginar, já batia forte. Nessa hora proibitiva para neurocientistas, poucos outros heróis de aeroporto estavam por perto. Ainda assim, sentou-se a meu lado um americano simpático, com cara de professor de Economia da Harvard. Estava eu a curtir o meu som tropical, quando de repente ao mover-me para tentar retirar um livro da mala, o meu fone de ouvido se soltou do computador e o saguão inteiro, com todos os seus gatos pingados, passou a desfrutar de um solo de violão sem igual desse lado da Via Láctea. Sorridente e solícito, o meu anônimo companheiro de espera matutina, não teve dúvida e arriscou um quebra gelo típico de economista neoliberal:
– Que maravilha! Andrés Segovia sempre me fascina.
– Não é Segovia não, meu senhor. – Já fui logo pondo um John Maynard Keynes na sopa do moço, em homenagem a meu grande amigo alviverde, presidente Luiz Gonzaga Belluzzo.
– Trata-se de um quase homônimo. Canhoto da Paraíba é o seu nome do violeiro.
– Mas não pode ser! Soa perfeito. Música dos deuses, como só o incomparável Segovia, de Granada, poderia produzir. Mas em que conservatório estudou esse senhor? Deve ter sido pelo menos aluno do grande mestre, não foi não?
– Acho pouco provável, a não ser que o grande Segovia tivesse aberto uma filial, na sacristia da matriz de Princesa Isabel, sertão da Paraíba, terra natal do menino Canhoto.
– Mas que fenômeno. Posso escutar mais um pouco?
– Como não, abolete-se e desfrute. Sinta-se em casa. Mestre Canhoto ficaria muito lisonjeado com seu interesse por seu violão.
– Paraíba, onde fica isso?
– Nordeste brasileiro, embaixo do Rio Grande do Norte, em cima de Pernambuco.
– Mas deve ser um paraíso essa tal Paraíba, para dar à luz um gênio musical como esse. Nunca ouvi nada igual.
– Realmente, é um paraíso. Lindo de fazer olho marejar. Mas para desfrutar dessa boniteza toda, carece de ter um outro tipo de olho, um outro tipo de ouvido. E definitivamente, precisa ter dedos muito ligeiros, como Canhoto tinha, para contar estórias que vem de lá. O senhor reparou que Canhoto tocava o violão com a mão esquerda e sem trocar a ordem das cordas?
– Não, não é possível! Ainda mais essa? Inacreditável!
– Pois é, meu amigo, o sertão nordestino não produz qualquer caboclo, não. Como toda forma de vida por lá padece muito, aqueles que conseguem vingar são pessoas valentes, destemidas e difíceis de dobrar. Quando menino, bem que tentaram forçar o menino Canhoto a aprender a tocar com a mão direita. Teimoso que nem um pau de Jurema, o moleque não se vergou. Escondido, aprendeu por si só uma forma de extrair o bemol e dó sustenido de ponta cabeça. Isso que é amor pela música. O resto é conversa. E não é que o truque funcionou? Garanto que nem o seu amigo Segovia aprontava uma dessas. Lá no sertão bravo do Nordeste, para vingar de verdade, precisa fazer que nem flor de cacto.
– E cacto lá tem flor? Que história de argentino é essa?
– Se tem, doutor. As danadas ficam escondidas por um bom tempo, protegidas por aqueles espinhos afiados, do tamanho de um prego. Aí, quando começa qualquer chuva miúda, coisa rara no sertão, elas florescem mais rápido do que o Canhoto compunha um choro. Abrem todas as bocas como se fosse um coral silencioso a repetir: “Quem disse que cacto não tem o direito de ser flor?”. E assim, arregaladas, elas aproveitam cada gotinha doce que lhe permita sobreviver mais um dia, até que outra nuvem bendita, perdida naquele céu azulado, decida a chorar de tanta tristeza de ver aquela terra torrada, a caatinga queimada, e a boiada definhando… Canhoto era como flor de cacto. Florescer a qualquer custo, era a razão que lhe fazia dedilhar seu violão invertido até cansar, mesmo quando, lá na sacristia da matriz da valorosa Princesa Isabel, não havia ninguém para escutar quando ele abria a boca, que nem flor, e todo frajola se punha a cantar.
– Coisa muito interessante esse seu país tropical. Brasil, quem diria, o futuro finalmente chegou para vocês. Justo no momento que o nosso parece ter acabado. Aqui no Norte, ninguém acredita no que aconteceu com vocês. Agora, até lá em Harvard eu já vi gente dizer: “Que Obama que nada, manda chamar o tal de Lula, quem sabe ele consegue dar um jeito aqui em cima também”.
Logo a seguir, embarcamos. Meu novo amigo fez questão de sentar-se a meu lado no avião novo em folha. Depois que ele estava bem confortável, pronto para começar a ler o seu Wall Street Journal, eu fiz questão de lhe apontar para o folheto de segurança da aeronave. Nele, podia-se ler claramente: “Embraer, made in Brazil!”. Meu amigo murchou, emudeceu e não falou mais comigo. Constrangido, nem tive coragem de lhe dar a notícia que foi Santos Dumont que inventou o voo controlado, não os irmãos Wright.
Deu até dó. Realmente, aquele não era o dia dos gringos!
|
Deixe um comentário