Preciosa escrita

José Onofre morreu hoje, 19 de maio de 2009, em Porto Alegre, no Hospital São Francisco, aos 66 anos. Estava na UTI há 45 dias, com diabetes, problemas de coração e outras complicações. Ele foi um tremendo jornalista, dono de rara inteligência, finíssimo humor e preciosa escrita. A troca de emails que lhe serviram como encomenda e o texto abaixo são um feliz exemplo de suas qualidades – principalmente o humor – e foram publicados na edição de setembro de 2007 da Brasileiros.

Entre Buendía e Melquíades
MACONDO É AQUI

From: heliocm@revistabrasileiros.com.br
To: “Jose Onofre”
Sent: Tuesday, August 07, 2007 5:54 PM

Sim, está na hora de outro legítimo José Onofre. Este ano é o ano do aniversário dos Cien años de soledad, do Gabriel Garcia Marquez. Acho que vc poderia trabalhar em cima disso, ou seja, de Macondo, que o tempo transformou em adjetivo, de Gabriel Garcia Marquez, que virou o mestre do realismo fantástico porém cada vez mais um perdedor frente à realidade-realidade.
Tem também alguns detalhes, tipo o amigo dele, um mexicano que esqueci o nome que ficou de fazer a capa da primeira edição mas, como bom mexicano deve ter dito “ahorita viene” e atrasou na entrega e aí tiveram que improvisar uma capa para a primeira edição. A definitiva só chegou para a segunda. Etc,etc,etc,
Que é que vc acha? Abraços, Hélio.

From: “Jose Onofre”
To: heliocm@revistabrasileiros.com.br
Sent: Thursday, August 09, 2007 7:26 AM

De: Buendia
Para: El Cigano

Bueno, necessito leer el señor Marquez. Meu exemplar hoje vive nas estantes de um sebo.
E preciso ler em espanhol. Solução: ou você tem e me empresta (e eu devolvo) ou compramos um na Cultura.

From: heliocm@revistabrasileiros.com.br
To: “Jose Onofre”
Sent: Thursday, August 09, 2007 12:03 PM

Mirá, te estoy mandando los magnetos, perdón, el libro del señor Marquez. Porsupuesto que me lo vas a devolver, até porque é uma edição comemorativa que acabei de comprar. Mando junto os 1500 dobrões devidos do dia 10 – que espero você não os vá derreter em um caldeirão aí no fogão do seu flat.
Ah, me esqueci de informar que a tierra es redonda como una naranja!!!!!!
Abs, José Gitano Arcadia Melchiades Buendia Marquez

From: “Jose Onofre”
To: heliocm@revistabrasileiros.com.br
Sent: Thursday, August 9, 2007 6:47 PM

Hombre! Mas não é que chegaram!?
Os dobrões, o livro e já vou sair as compras. Não nos telefone, nós o chamaremos.

From: heliocm@revistabrasileiros.com.br
To: “Jose Onofre”
Sent: Friday, August 17, 2007 10:54 AM

Buendia,
Cadê os magnetos, imãs, ou melhor cadê o texto?
Era para segunda 13. Estou aqui em macondo, no aguardo
Abs,
Melquíades

From: “Jose Onofre”
To: heliocm@revistabrasileiros.com.br
Sent: Friday, August 17, 2007 3:29 PM

Señor Melquíades, mil perdones. Yo pensava que estavas burlando ao me dar um prazo tan chiquitito. Pero no más lo mando. Aguarde.
Del coronel que no tiene quien lo escriba.

From: “Jose Onofre”
To: heliocm@revistabrasileiros.com.br
Sent: Monday, August 27, 2007 10:54 AM
Subject: buen dia, señor

Helio, eis o bruto. Me diz logo o que achastes. E estarei toda a tarde esperando pelos dobrões.
“Estou sentado sobre minha mala/ no velho bergantin desmantelado”(Mario Quintana).

Abraços.
Melquíades.

Cien años de soledad

Quarenta anos do primeiro sucesso mundial de público e crítica, produzido na América Latina






Por José Onofre

Quarenta anos e 30 milhões de exemplares depois, Cem Anos de Solidão é tudo o que dele se disse e algo mais. Ele é completamente novo na concepção e realização; nada o vincula a qualquer experiência literária anterior. Suas raízes estão nas narrativas dos primeiros navegadores que andaram pela América recém-descoberta e, embriagados com as cores e perfumes novos, contaram o que tinham visto e o que tinham imaginado. O sucesso imediato e surpreendente do romance abriu espaço para a habitual correria da mídia: o romance era o primeiro grande sucesso de público e crítica mundial produzido na América Latina. No vácuo de seu sucesso abria-se um caminho para toda uma literatura que até então, excetuando Jorge Luís Borges, não tinha presença no mundo. O livro era um acontecimento, era notícia importante no mundo literário internacional, porque juntava sua qualidade única a um sucesso comercial pouco visto. Mas não foi apenas um grande momento literário. Uma espécie de febre exibicionista se espalhou por outros escritores, jornalistas culturais e assessorias em geral, desesperados para se vincularem ao fenômeno. O desafio era não deixar Gabriel García Márquez ser interpretado como um caso isolado, e sim como membro fiel de uma confraria literária aguerrida. Criou-se o conceito de “realismo mágico”, que a todos dava a oportunidade de participar de um clube de quem ninguém tinha ouvido falar antes. García Márquez aceitou a manobra, e o “realismo mágico” passou a definir tudo o que a América Latina havia produzido, qualquer forma de arte. O mundo engoliu, e o realismo mágico passou a explicar o inexplicável – alguns autores se especializaram no assunto.

Cem Anos de Solidão sobreviveu a tudo e a todos. O livro é uma epifania, um momento de iluminação. Mas não pode ser e não é uma rota para o sucesso. Se no seu exemplo surgiram centenas de relatos que buscavam o “realismo mágico”, nenhum foi além da mediocridade e muitos, a maioria, eram bem menos do que isso. Os seguidores e os imitadores que tentavam acompanhar a trilha de García Márquez não produziram sequer um livro que chamasse a atenção, e todos, melhores e piores, morreram na praia.

É possível entender por que os oportunistas se deram mal. A dificuldade é que alguns bons escritores também fracassaram. Não é possível examinar cada livro para saber onde está o fracasso. O correto é voltar a Cem Anos de Solidão e ver se há um caminho de acesso ou se o romance é inescrutável. E ao fazer isso, o mistério, se o há, aumenta. O romance de García Márquez não se disfarça em estruturas difíceis ou linguagem obscura. Ao contrário, o texto é transparente e mesmo os misteriosos produtos ciganos assim o são pelo olhar ingênuo, quase infantil, dos Buendías e outros moradores de Macondo. O exagero do olhar ingênuo, a recuperação dessa inocência que não existe mais é um dos pontos-base da narrativa. A surpresa não está nos objetos; está na surpresa e no encanto de quem os vê pela primeira vez. Uma das solidões de Macondo é a sua inocência. Não há pecado, não há crime, não há certo e errado em Macondo, porque lá é o lugar aonde se vai descobrir e dar nome às coisas. O destino escolhido por José Arcádio e Úrsula é o do progressivo conhecimento, do trocar a ignorância permissiva pelo mundo civilizado dos tabus e das proibições. Seus descendentes terão como herança a maldição especulativa dos Buendías, prisioneiros da imaginação e da fantasia, e o mundo prático e material de Úrsula, a organizadora do mundo. Não é uma herança feliz, pois lhes divide o coração e os força às dolorosas escolhas de todo ser dividido. García Márquez escreveu um livro que, depois, se revelou perfeito. A história dos Buendías não poderia ser outra coisa que não um trabalho da palavra. Não existe nenhuma outra forma de expressão que lhe desse tanta riqueza como a da palavra, porque ela dá o mesmo peso à verdade e à mentira, ao mundo concreto e à fantasia. Partindo do livro já editado é que se percebe essa perfeição. Uma história que só poderia ser contada num romance e um romance que só poderia ser escrito daquela maneira – o ponto quase imperceptível em que as linguagens da ingenuidade e da esperteza se encontram.

O romance foi escrito com o ímpeto de uma ventania e reescrito com paciência de relojoeiro. A força nasce do fato de que García Márquez estendeu a sonda até uma fonte rica e generosa e de que esta, impetuosa, jorrou sobre o papel e deu à narrativa seu coração e sua alma; mas há, num segundo momento, o trabalho meticuloso de limpar o texto de seus excessos sem perder o vigor, a graça e as maravilhas de linguagem que o criaram. Cada obra-prima literária (resultado de um mergulho impulsivo e de uma construção deliberada) terá uma única maneira de ser escrita, e, assim fei- ta, seu molde se desintegrará para sempre. A tarefa de imitadores e seguidores está fadada ao fracasso. Nem o próprio Gabriel García Márquez conseguiu fazer outra obra do mesmo porte. Depois de Cem Anos de Solidão, ele escreveu outros seis romances. Em nenhum reproduziu esse momento especial.

Há romances construídos como as catedrais: suntuosos, cheios de cantos escuros, pretendendo explicar os homens e o mundo, como em Tolstoi, Thomas Mann, Proust. Mas há também romances buliçosos, brincalhões, que não conseguem se levar a sério e aí já é território de Anthony Burgess, do vaudeville e do music hall. García Márquez fez um épico que pertence a esta última linhagem, a do escritor que joga sua linha nas águas mais profundas e o faz sem perder a imensidão lúdica desta ação. Esse tipo de literatura exigia do escritor a capacidade de – na metáfora de Hemingway -, apanhado o peixe, segui-lo por todos os abismos marinhos, os mais assustadores e turbulentos, sem largar a presa. Talvez exista alguém assim. Mas isto é outra história.


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