Independente do resultado das eleições à prefeitura de São Paulo, a cidade terá um desafio: endossar políticas que comprovadamente fazem mal à saúde ou lutar para que iniciativas que aumentem a qualidade de vida de todos – ricos e pobres – sejam implementadas ou melhoradas.
A redução da velocidade e as ciclovias adotadas em SP fazem parte de um modelo de cidade compacta – tímido ainda – respaldado por diretrizes internacionais. São cidades que optaram por um modelo inclusivo e um design que favorece a qualidade de vida.
Esse tipo de cidade luta para diminuir o tempo de viagem de seus cidadãos e encurta distâncias. Também há mais incentivo para transportes alternativos ao carro, que é desestimulado. É consenso internacional, referendado pela Organização Mundial de Saúde, que medidas são mais saudáveis.
O pesquisador Thiago Hérick de Sá, pós-doutorando da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, fez parte de um estudo internacional que avaliou os benefícios à saúde desse modelo de cidade compacta. A pesquisa foi publicada na prestigiada publicação científica Lancet. Além de São Paulo, fizeram parte do estudo pesquisadores das cidades de Boston (Estados Unidos), Copenhague (Dinamarca), Deli (Índia), Londres (Reino Unido) e Melbourne (Austrália).
Para ganhos reais na saúde, os pesquisadores propuseram incremento de 30% na diversidade e densidade do uso do solo. Isso significa, por exemplo, aumentar o número de imóveis destinados a função social -privilegiando, assim, moradias no lugar de estacionamentos.
Outra proposta foi o aumento de 10% na distância percorrida pelo chamado transporte ativo – a pé ou de bicicleta. Isso pode ser conseguido com distâncias mais curtas entre os serviços e a população, além da construção de infraestrutura adequada para outros modais, como as ciclovias.
Para se ter uma ideia do benefício, esse modelo sozinho em São Paulo, segundo o estudo, levou a uma redução aproximada de 7,5% na incidência de doenças do coração e de 5% na prevalência de diabetes tipo 2. As reduções foram estimadas só levando em conta o modelo de cidade compacta – sem mudanças na dieta: diretriz comum para redução da prevalência dessas doenças.
Diante das benesses observadas no estudo, Hérick de Sá diz que a reversão das tímidas medidas implementadas em São Paulo seriam um crime contra a saúde da população, passível de punição. Abaixo, ele explica um pouco mais sobre o modelo de cidade compacta, mostra como São Paulo ainda tem muito o que caminhar e diz que essas questões têm sido tratadas nas eleições de modo “pobre” e “retrógrado”.
Saúde!Brasileiros: O que é uma cidade compacta?
Thiago Hérick de Sá: É uma cidade inclusiva, diversa, segura e boa para se viver. Ela tem um uso misto do solo, possui densidades ótimas e possui distâncias curtas para atividades cotidianas.
Essas cidades têm um design inteligente que favorece hábitos cotidianos saudáveis (como caminhar, pedalar, plantar e passear). Há também um aumento do desejo por viver a cidade: seus cantos, sua gente, seus sistemas, sua cultura e suas possibilidades.
Mas, no estudo, consideramos apenas as alterações na densidade e diversidade de uso do solo, na redução das distâncias e na mudança de modos de transporte a favor da caminhada e da bicicleta.
Como esse tipo de cidade impacta a saúde?
Por muitos caminhos. Desde a convivialidade, o senso de comunidade e pertencimento, e a mobilidade independente de crianças – até impactos em fatores de risco, como atividade física e poluição do ar.
Há também impacto em desfechos mais “duros”, como lesões de trânsito e de doenças crônicas não-transmissíveis.
O estudo analisou cidades com características, acredito, bem diferentes. Como você avalia o modelo de São Paulo em relação a outras cidades no mundo?
É interessante observar que, apesar de diferentes entre si (Copenhague, Londres, Boston, Melbourne, São Paulo e Deli), o modelo de cidades compactas se mostrou benéfico à saúde da população em todas elas, incluindo São Paulo.
Quando levamos em consideração todas essas cidades, apesar do resultado líquido positivo, há que se destacar o aumento no número de lesões de trânsito.
Em São Paulo, nós observamos que a construção de infraestrutura dedicada para caminhada e bicicleta capaz de atender a 5% das viagens seria suficiente para evitar lesões. Já em Londres e Melbourne, seria necessário que a infraestrutura atendesse a 40% das locomoções para se obter o mesmo benefício.
A redução da velocidade contribuiu para que São Paulo fosse considerada uma cidade compacta?
Certamente, a redução de velocidade no trânsito diminui o número de acidentes e a gravidade das lesões. Diminuiu também o número de usuários vulneráveis atingidos, como crianças e idosos. Isso é ponto pacífico no mundo, com evidência consolidada e recomendações internacionais de organismos como a Organização Mundial de Saúde.
Retroceder neste aspecto seria lamentável e passível de punição ao governante que decidisse ir contra uma medida comprovadamente benéfica para a saúde da população.
Que outras variáveis você acha que podem ser inclusas em nossa cidade para melhor a saúde dos paulistanos?
Muitas outras. O combate efetivo à poluição do ar, com investimento pesado em transporte público, caminhada e bicicleta e regulação de indústrias poluidoras; melhor uso do solo, devolvendo a ele e aos imóveis a função social da propriedade, com diversificação de uso e adensamento sem verticalização.
Ainda, a descentralização de empregos, escolas e serviços e criação de moradias populares em bairros nobres. Ampliação do acesso aos espaços públicos, com a abertura das ruas para as pessoas, desenvolvimento de uma política de agricultura urbana, criação de novos parques e ‘pequenos verdes’, além do apoio a atividades culturais ao ar livre.
Tudo isso e muito mais pode e deve ser feito. Para ontem. Isto se faz com planejamento urbano, ação intersetorial integrada, mobilização popular e vontade política.
O estudo publicado no Lancet propõe aumento de 30% na densidade do uso do solo. O que isso significa?
Isto significa, como disse antes, devolver à terra urbana e aos imóveis a sua função social. É inaceitável que canteiros centrais – entenda-se, flores, árvores, terra – sejam sacrificadas para a bem-vinda construção de ciclovias, enquanto a área dedicada para estacionamentos segue enorme na cidade.
Uma via com estrutura para pedestres, ciclistas, ônibus, carros e motos é muito mais densa e diversa do que uma via apenas para carros e motos, por exemplo.
Outro exemplo são políticas de zoneamento urbano que garantam a existência de pequenos comércios no bairros, sempre ameaçados pela economia de escala e pelas grandes cadeias de supermercados. Isso pode ser, inclusive, um indutor do fortalecimento da cultura local. Em Paris, por exemplo, padarias que seguem receitas tradicionais, traço da cultura francesa, recebem apoio governamental para continuarem existindo – e são vistas por toda parte.
Outra proposta da pesquisa é a redução de 30% das distâncias de viagem. Como elas podem ser reduzidas em SP, por exemplo?
Descentralizando empregos, educação, serviços, oportunidades de lazer, etc. Ao mesmo tempo, colocando as pessoas que moram longe para morarem mais perto do centro da cidade, onde sempre haverá maior oferta de tudo.
Algumas ações práticas neste sentido em São Paulo seriam o fortalecimento das subprefeituras para que não precisemos ir a um único lugar no centro toda vez que precisamos de serviços públicos.
Também a implantação do IPTU progressivo desestimularia a manutenção do imóvel desocupado por muitos anos. Ainda, a construção de mais parques pela cidade. Quantas pessoas você não conhece que se abala de muito longe para ir ao Ibirapuera, por exemplo?
Parte das cidades analisadas são muito motorizadas. Como esse modelo de cidade impacta a saúde?
Sistemas de transporte com uso excessivo do carro são comprovadamente maléficos pois prejudicam a saúde e bem-estar tanto de quem está dentro quanto de quem está fora, enquanto modais mais sustentáveis são muito mais benéficos e se apoiam no favorecimento à caminhada, bicicleta e transporte público.
É importante observar, entretanto, que é impossível construir um sistema de transporte sustentável se o desenho urbano e as condições de vida da população assim não o permitem.
Uma mãe que mora na periferia, trabalha no centro e ainda tem de deixar o filho na escola, o marido no trabalho e fazer compras longe de casa não tem outra alternativa que não usar um veículo – se puder pagar por ele.
Como avalia a discussão sobre essas medidas no cenário eleitoral?
Creio que a discussão tem sido pouco republicana, muito pobre e, por vezes, criminosa. É simplesmente retrógrado e inadmissível que alguém defenda o aumento da velocidade, postergue medidas de combate à poluição do ar ou aja contra políticas de ocupação dos espaços públicos e proteção dos mais vulneráveis – como a construção de infraestrutura para caminhada ou bicicleta.
Isso vai na contramão do modelo de cidade do século XXI e contraria todos os acordos internacionais relacionados ao tema, como os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, os Acordos de Paris e o Habitat-III.
Por que acredita que parte da população é resistente às recentes medidas em São Paulo? O que poderia mudar esse cenário?
É preciso entender que muitas dessas questões têm profunda relação com a cultura de um povo e com suas concepções mentais. A mudança desses paradigmas é um processo histórico. Leva tempo.
Também há uma campanha sistemática daqueles que se beneficiam deste modelo para que nada mude. Há ainda interesses comerciais -legítimos, ressalte-se- de corporações muito poderosas que se beneficiam com este modelo carrocêntrico sedentário e amedrontado de cidade e que se valem da sua força política para evitar ou retardar mudanças, ainda que benéficas à coletividade.
O que poderia mudar este cenário é a mobilização popular a partir do exercício do direito à cidade, e o debate público republicano e democrático. Ações simples e imediatas que demonstrem o benefício – bons exemplos disso são as políticas de Nova York e a Paulista Aberta; e a presença de líderes políticos antenados com o espírito do seu tempo.
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