O roubo de obras sacras continua assombrando igrejas brasileiras, mas os traficantes, agora, atacam também instituições e museus públicos. Algumas ações, como as do padre que deixa a batina de lado e sai em busca das peças roubadas, mostram-se bem-sucedidas, mas, com a falta de uma legislação adequada e a proibição de que museus comprem peças arqueológicas encontradas em território brasileiro, ainda há muito o que fazer para coibir o tráfico de arte
É comovente a imagem do altar da Igreja de Nossa Senhora das Dores, em Ouro Preto, Minas Gerais. Ali não há imagens: nenhuma peça sacra, estátua de santo nem adorno. Só mesmo um crucifixo de madeira e vasinhos com flores. Tudo ou quase tudo foi furtado e o que não foi, o pároco levou para um lugar seguro. Não faltará muito tempo para que outras igrejas brasileiras fiquem na mesma situação, pois também se revelam rica fonte de butim.
A simonia, tráfico de obras sacras, termo que deriva do mágico bíblico Simão, que teria tentado subornar os apóstolos para obter acesso ao Espírito Santo, não é a única a interessar as quadrilhas que, em sua maioria, agem por encomenda do mercado de arte. Devido à mobilização das principais igrejas para preservar seu acervo com equipamentos de segurança, o alvo dos traficantes volta-se agora para outros celeiros. São museus e instituições federais que tiveram seus acervos dilapidados. Quadros, livros, moedas e mapas históricos dos séculos XVII e XIX; e peças arqueológicas, como as cerâmicas das culturas Marajoara e Santarém. As obras sacras ressurgem depois em antiquários por todo o Brasil, e as cerâmicas têm mercado cativo lá fora.
Achados e perdidos Altar vazio da Igreja de Nossa Senhora das Dores, Ouro Preto |
Os museus alegam dificuldades econômicas para instalar câmeras de vigilância e aumentar o efetivo de segurança. Para reverter tal situação, que atingiu nível preocupante no final da década de 1990, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) na pessoa de seu atual presidente, Luiz Fernando de Almeida, foi mais longe. Levantou um front contra saqueadores e comerciantes desonestos e, somando esforços com o Museu Paraense Emilio Goeldi e a Polícia Federal/Interpol, criou campanhas para inibir o comércio e recuperar nossos bens patrimoniais. O Iphan também começou a catalogar a toque de caixa mais de 500 mil peças (cem mil já foram listadas) de nosso acervo cultural espalhado pelo Brasil. E disponibilizou em seu site www.iphan.gov.br uma relação de bens procurados. Dessa maneira, museólogos, marchands e colecionadores podem se informar, coibir e denunciar o comércio ilegal. Em recente inventário, mais de mil obras de arte do interesse do nosso patrimônio estão desaparecidas; apenas 10% foram recuperadas.
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A legislação brasileira procura adequar-se, mas as providências são lentas e as punições brandas. Além disso, nossas leis impedem os museus brasileiros de comprar peças arqueológicas encontradas em nosso território. Os bens pertencem à União. É aí que reside o perigo, em particular no que diz respeito à nossa arqueologia. Como conscientizar um agricultor, ou fazendeiro, da importância de devolver “graciosamente” as peças que encontra, se uma urna marajoara pode valer até US$ 200 mil no exterior?
Como o mercado de bens arqueológicos opera na clandestinidade, o comércio estimula o saque. Sem a cultura da cidadania, quando se encontra uma peça, a tendência é escarafunchar todo o terreno à procura de outras. E assim um perigo maior se torna realidade para os pesquisadores: se um sítio é pilhado, detalhes essenciais sobre a proveniência de um objeto e seu contexto ficam irremediavelmente perdidos. Outros vestígios desprezados pelos saqueadores – ossadas, cacos de louça, restos orgânicos – privam os antropólogos de informações inestimáveis.
Achados e perdidos Cartazes distribuidos pelo Iphan |
A baixa se dá também na subtração e venda ilegal dos fósseis encontrados por aqui, em particular os da Chapada do Araripe, no Ceará. Diante dessa prática a Justiça falha ainda mais, pois não considera especificamente como crime tal tipo de comércio. Isso acontece com peças únicas e valiosas, como o crânio intacto de uma espécie de pterossauro retirado ilegalmente de nosso País que está sendo leiloado impunemente nos Estados Unidos com preço mínimo de US$ 700 mil.
Sem preparo adequado para reconhecer e barrar a saída de nossos objetos pilhados, a Polícia Federal e os agentes alfandegários agem apenas após a denúncia, o que acaba facilitando o contrabando.
Estão levando nossa história
No fascinante universo de objetos históricos e artísticos, o Brasil ocupa lugar de destaque. É o quarto no ranking mundial, depois dos Estados Unidos, França e Iraque, em número de roubos de bens culturais, tanto pela quantidade, quanto qualidade e riqueza dos objetos. “Se não tomarmos jeito, o único exemplar do Brasil pré-colonial que permanecerá em nosso território será a mandioca”, alfineta um arqueólogo paulista.
Quem se lembra do “Mantelete Emplumado Tupinambá” exposto na Exposição Brasil +500, Mostra do Redescobrimento, há oito anos, deve ter sentido orgulho de nossos antepassados indígenas. A majestosa peça feita de plumas em tonalidades vermelha e escarlate era conhecida até pouco tempo antes como o “Manto Cerimonial de Montezuma”, rei dos astecas. Não se poderia imaginar obra de tal delicadeza e refinamento criada pelos nossos bugres. Na redoma de vidro que protegia o mantelete, porém, uma plaquinha dourada fazia rolar por terra nosso amor-próprio. Nela lia-se: “Obra pertencente ao Museu Nacional da Dinamarca, em Copenhague”. Quem a levou? Quando e como saiu do Brasil?
Achados e perdidos Imagem procurada |
Tomou lá, dá cá! Esta é a onda que está invadindo o mundo das artes e fazendo com que governos e museus estrangeiros devolvam aos países e povos aos quais pertencem as peças pilhadas, saqueadas e compradas no mercado negro.
O movimento cresceu exatamente no país que mais abastece suas instituições com peças de procedência duvidosa – os Estados Unidos. Tribos indígenas dos Tinglits, do Alasca, dos Navajos e Hopi, dos Estados Unidos, entraram em pé-de-guerra para que seus objetos sagrados e ritualísticos retornassem às suas comunidades. Como resultado, leis americanas foram timbradas nesse sentido.
O modelo também faz escola fora dos Estados Unidos. O mais recente caso foi a devolução, em 2007, pela Universidade de Yale ao Peru, de quase 400 objetos, de cerca dos 4.900 retirados de Machu Pichu pelo explorador americano Hiram Bingham III, que teria encontrado a cidade perdida dos Incas em 1911. Bingham, depois de vasculhar 170 tumbas, levou todo o material para a universidade a título de empréstimo para estudos e cópias… e nunca as devolveu. As peças só estão sendo restituídas depois que o governo peruano ameaçou ir a um tribunal internacional para reaver o que pegaram fiado e não pagaram. Juntamente com a devolução, a universidade doou um museu que será construído para abrigar essas peças em Cuzco.
Hoje nenhuma instituição quer a pecha de expor obras roubadas, saqueadas ou adquiridas no mercado negro, carimbam os museólogos. De fato, é inconveniente e moralmente indefensável tê-las em seu acervo.
Para dois dos maiores experts do mundo em identificar e reaver peças extraviadas de forma ilícita, o carabinieri Roberto Conforti, da Itália, e o advogado turco, Özgen Acar, que trouxe de volta para seu país obras do Metropolitan de Nova York, a pergunta a ser feita é: “Como esta peça chegou aqui? Não importa se há dez ou 200 anos. Dependendo da resposta, denuncie”. Enfim, lute pelo que é seu.
Ainda vamos ver a hora em que nosso governo, ou, na falta deste, os Tupinambás com pintura de guerra irão bater os pés diante do Museu Nacional de Copenhague para provocar a devolução de um tesouro de seu povo.
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