O número 1 da Brasileiros, lançado em julho de 2007, contava a aventura de quatro moças. Com idades entre 20 e 22 anos, elas derrubavam um dos mais tradicionais bastiões masculinos, as academias militares de formação de oficiais. As cadetes Débora Ferreira Monnerat, Neiriani Marcelli da Silva Costa, Marília Landgraff Malta e Déborah de Mendonça Gonçalves estavam na Academia da Força Aérea (AFA) para se transformar em aviadoras militares. Enfrentando a dura rotina e a disciplina militar, em que até o sorriso poderia ser motivo de repreensão e punição – além da concorrência de centenas de rapazes compartilhando do mesmo sonho -, aprendiam a voar e se esforçavam em repetir o sucesso das onze pioneiras, formadas oficiais aviadoras no final de 2006. Cada uma em seu estilo, elas provavam no dia a dia de estudos e treinamentos a mesma capacidade dos homens, com desempenhos elogiados pelos instrutores e colegas. Débora e Marcelli formaram-se oficiais no final de 2007, enquanto Marília Malta, que estava no terceiro ano, concluiu o curso em 2008. Déborah, a mais nova, formou-se no ano passado. São todas oficiais aviadoras.
Brasileiros reencontrou, na Base Aérea de Campo Grande (MS), duas das As Eleitas – título da reportagem original -, já promovidas a segundo-tenente e servindo em uma das unidades de rotina mais intensa da Força Aérea Brasileira (FAB). Com 45 anos de existência, o 2o/10o GAv é o responsável pelos trabalhos de busca e resgate em acidentes aéreos e situações de combate. Em tempos de paz, o trabalho é requisitado em momentos como na queda do Boeing da Gol e do Airbus da Air France, e, também, o naufrágio do veleiro-escola canadense Concordia. Há, ainda, na lista das emergências, o apoio a vítimas de catástrofes naturais, como as enchentes de São Paulo e do Rio de Janeiro.
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Missões tão emergenciais levam o esquadrão a ser diferente de tudo. Seus pilotos precisam estar aptos a voar tanto em helicópteros, como o veterano HU-1H (em breve, o novo EC-735, sucessor do Cougar), quanto no ultramoderno avião de transporte espanhol Casa C-105 – chamado Amazonas na FAB. Essa versatilidade, praticamente inédita na aviação militar mundial, é necessária devido ao número de pilotos. “Precisaríamos ter muito mais pilotos para manter uma escala dupla”, explica o major Potiguara Vieira Campos, comandante do esquadrão. “Uma mesma tripulação na escala diária de alerta pode iniciar a missão em avião ou em helicóptero, de acordo com a necessidade. De qualquer maneira, o sistema adotado tem se mostrado eficiente há mais de 30 anos.” Ele se lembra de que a missão de busca e resgate não tem hora para acabar. Muitas vezes, uma jornada que deveria durar uma semana prolonga-se por um mês ou mais.
A tenente Débora Monnerat, campeã sul-americana de pentatlo militar, foi transferida para essa exigente unidade de elite da FAB, depois de concluir o curso de piloto de helicóptero em 2008, na Base Aérea de Natal (RN). Este ano, foi a vez de Marília Malta – chamada de Malta, como o pai, brigadeiro da FAB -, que completou o mesmo curso na capital potiguar, chegar à base. Ela fará o treinamento como piloto de outros tipos de helicóptero (o curso inicial é realizado nos Esquilos) e de avião, incluindo o Casa C-105. Esse cotidiano difícil, aliado aos constantes cursos de especialização e aos treinamentos, temperado pela disciplina militar, fará sempre parte da vida das pilotos da FAB.
Como conciliar essa rotina de escalas de alerta, de operações de emergência, com a vida pessoal?
Débora Monnerat está casada desde o começo do ano com um colega de turma, o tenente Daniel Amado, piloto de aviões de caça, também locado na base de Campo Grande. Embora trabalhem no mesmo lugar, fases de forçosa separação são frequentes. As missões podem ser realizadas em semanas diferentes, por exemplo. Débora comenta: “Cada vez mais, nos dias de hoje, é comum, pela presença crescente da mulher no mercado de trabalho, marido e mulher ficarem longos períodos longe um do outro. Isso já é normal e não tem diferença entre civil e militar”.
Filha de militar, Malta acostumou-se, ainda criança, a mudar de cidade, estado e até de país. Para ela, essas dificuldades têm de ser absorvidas pelo casal. Malta sabe do que está falando. O noivo, Tiago Junqueira, seu namorado há sete anos, formado na AFA no ano passado – um ano depois dela -, faz agora o curso de piloto de helicóptero em Natal. Em 2009, ele ainda estudava em Pirassununga (SP), enquanto a noiva estava no Rio Grande do Norte. Na prática, serão quase dois anos em que os dois se encontrarão apenas nas folgas. “A gente compensa no celular, usando esses planos em que um fala de graça com o outro”, resigna-se Malta. “Depois que o Tiago terminar o curso e for promovido, deverá servir aqui.” Ela completa, rindo: “E casado comigo”.
Na verdade, existe uma regra determinando que casais de militares devam sempre servir na mesma cidade. No momento, das 14 mulheres pilotos, menos da metade é casada. Quando mulher e marido tripulam aeronaves diferentes, abre-se um potencial de problemas. Como avançar na carreira, se é proibido servir em cidades diferentes? Débora não quer adiantar-se ao dilema: “Acho que, por enquanto, como todos estamos na fase inicial da carreira, mesmo em especializações distintas, vamos ficar alguns anos servindo na mesma base”.
Tanto Débora quanto Malta concordam que, no futuro, caberá à FAB adaptar, por consenso, as normas para permitir que marido e mulher pilotos possam servir, ou não, em bases diferentes. O ideal é que essas bases sejam dotadas, ao mesmo tempo, de aviões de caça, de transporte e helicópteros. Malta acredita que, no seu caso, o fato de ela e o noivo trabalharem na mesma especialidade se tornará uma vantagem para o futuro casal. Será natural que sirvam nos mesmos esquadrões. “Mais tarde, quando formos promovidos a capitão ou major, pode ser que o problema apareça, mas nada incontornável”, avalia.
Por ter se formado em uma turma na frente de Tiago, a piloto Malta será sempre promovida de posto antes do futuro marido – ao menos até a patente de coronel -, o que poderá levá-la a funções de comando antes dele. Mas ela não vê problemas em um possível período em que os dois sirvam em cidades distantes uma da outra. “Ora, na vida civil, existem casais que, por força do trabalho, moram longe um do outro”, comenta. “E as pessoas se adaptam.”
Mais do que eventuais divisões de casais, a possibilidade de uma das pilotos engravidar no começo da carreira é uma questão que preocupa tanto a elas quanto à FAB. Débora e Malta garantem que deixar o nascimento de filhos para depois de completar 30 anos virou uma espécie de “doutrina”, criada informalmente. “Uma gravidez na fase inicial da carreira afeta diretamente o futuro de cada uma de nós como oficiais, como piloto”, explica Débora. “Obrigaria a ficar durante um ano fora das escalas de voo e treinamento.”
Tomemos como exemplo nossas personagens. Débora, depois de um ano de aprendizado na pilotagem do HU-1H, vai passar de copiloto a piloto. Já está fazendo o treinamento para comandar o Casa, sonho de todo aviador de transporte. Um de seus instrutores, aliás, tende ser a tenente Márcia Cardoso, da turma inicial e que deverá ser a primeira mulher instrutora de voo na FAB. Esse processo de aperfeiçoamento dura de dois a três anos na fase inicial e prepara o piloto para missões e exercícios cada vez mais complexos. Uma interrupção significaria atrasar o aperfeiçoamento e estancar o acúmulo de horas de voo. Assim, a piloto corre o risco de ser superada pelos demais. Malta é taxativa: “Não há o que discutir, temos de esperar quando formos capitãs e tivermos de ficar um ano sem voar, cursando a EsAO (Escola de Aperfeiçoamento para Oficiais). As mulheres, hoje, não são como as nossas mães. Esperam mais para ter filhos, exatamente por causa da profissão. Não haveria de ser diferente conosco na FAB”.
Essa valorização da opção profissional, deixando a maternidade para depois, é ainda mais justificável no caso das pilotos. Afinal de contas, elas têm enfrentado (e vencido) desafios e barreiras antes consideradas intransponíveis. Primeiro, a dura rotina de uma academia militar, na qual eram minoria. Passada essa etapa, entraram de vez em uma das profissões mais difíceis e arriscadas do mundo. Ressalve-se que muitas fracassaram. Apenas 11 das 20 cadetes da primeira turma da AFA tornaram-se oficiais. Malta, por exemplo, foi a única de quatro colegas a concluir o curso. Todas admitem que pretendem ser mães, mas em seu devido tempo. Hoje, a satisfação de cumprir uma missão de socorro vem em primeiro lugar. Tal como ocorreu com Débora no começo do ano, quando se viu obrigada a pilotar um helicóptero por sete horas, de Campo Grande até as proximidades do litoral de São Paulo, para ajudar no resgate e na ajuda às vítimas na região de Cunha.
Em suma, se depender da garra das nossas duas eleitas, extensível a todas as demais pilotos mulheres da FAB, dentro de uns 30 anos estarão prontas para ver alguma ou algumas delas alçadas ao posto de brigadeiro. O ícone da FAB, o histórico brigadeiro Eduardo Gomes, certamente nunca pensou nessa hipótese. E que vai se tornar real.
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