Prosa de fim de tarde com José Alencar no hospital

O sorriso franco é o mesmo de sempre, e ele já vai logo puxando conversa. Sentado numa poltrona, sozinho no quarto no final da tarde de segunda-feira, de camiseta branca, sueter cinza, bermuda azul e chinelo do hospital, o segundo homem de maior poder no país nem me espera perguntar como está passando.

De nada se queixa, a não ser do frio danado deste inverno paulistano. Foi como se estivesse apenas prosseguindo na nossa prosa de outro dia, no mesmo quarto do Hospital Sírio-Libanês, quando se preparava para a cirurgia anterior, a 13ª, aquela que durou mais de 18 horas.

A familia saiu para comemorar o aniversário de nove anos de um dos seus cinco netos. Ao falar dele, lembra-se da sua própria infância na roça de Muriaé, em Minas, a três léguas da cidade, onde seu pai tinha um armazém que vendia um pouco de tudo, de ferragens a tecidos, além de comida.

Zé nasceu dois anos depois da Grande Depressão de 1929, que quebrou a economia mundial e jogou no chão o preço do café, principal sustento daquela região mineira. Dos seus 15 irmãos, foi o que nasceu na época mais difícil da vida da família.

Lá não tinha energia elétrica e a água era de poço. Não havia escola. Conta que o pai e a mãe o ensinaram a ler e escrever. Aos nove anos, já ajudava a atender a freguesia do pai, seu Antonio, que andava preocupado com as notícias da Segunda Guerra Mundial, lá longe, na Europa.

Nem rádio havia lá. As notícias chegavam a cavalo, com quatro dias de atraso, depois de recolhidas numa jardineira que passava pela sede de uma fazenda próxima.

Seu Antonio assinava o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, e os vizinhos iam à venda à noite para saber o que estava acontecendo no mundo. Era um “jornal falado” lido pelo comerciante à luz de lamparinas de querosene.

“Não me debulha o jornal”, recomendava ele, quando alguém o pedia emprestado. Mais tarde, um casal de vizinhos abriu pequena escola rural para 19 crianças numa casa de taipa. Foi lá que Zé Alencar se lembra de ter aprendido um pouquinho de tudo.

Dessa época, o que mais o marcou foi a tirania de um delegado, em pleno Estado Novo, que não só prendia como humilhava as pessoas. Certa vez, conta Alencar, viu passar em frente ao armazem um homem humilde, de pés descalços, arrastado pelo delegado, com um saco de milho nas costas, obrigado a confessar a quem encontrava pela frente:

“Eu sou ladrão de milho, eu sou o ladrão de milho”.

Até hoje não se conforma com a cena, mas logo volta a sorrir ao confessar uma travessura de menino na época em que ia buscar leite para os irmãos menores numa fazenda vizinha. Como só havia dinheiro para o leite dos pequenos, ele parava numa bica do caminho, tomava um pouco da garrafa e completava com água.

“Acho que eu fui o primeiro a batizar leite com água”.

É impressionante a memória deste homem simples que não virou doutor, capaz de lembrar de nomes, lugares e datas de quase sete décadas atrás, com detalhes de passagens daquela época como se tivessem acontecido ontem.

Dos tempos atuais, não gosta muito de falar. Viu apenas de relance num noticiário da televisão a notícia de que o presidente do Senado, José Sarney, tinha mandado cancelar todos os atos secretos, e queria saber se era verdade.

Logo mudou de assunto para falar das suas campanhas a governador de Minas, em 1994, que perdeu, e quatro anos depois ao Senado, quando ganhou. Já era um grande empresário, dono da tecelagem Coteminas, quando se candidatou pela primeira vez, mas sempre gostou e participou da política mineira.

Adora contar causos de campanhas eleitorais de antigamente em Minas, mas se anima mesmo e seus olhos brilham ao recordar da vitoriosa campanha presidencial de 2002 ao lado de Lula, quando viajamos juntos rodando o país inteiro.

Era disso que estávamos falando quando chegou o médico Raul Cutait, responsável pela cirurgia de emergência da quinta-feira passada em que foram retirados mais dez tumores de seu abdomem.

Mais do que paciente e médico, os dois parecem velhos amigos, tantas já foram as cirurgias de José Alencar, na sua interminável batalha contra o câncer, desde 1994.

Ainda tomando soro e sem poder se alimentar normalmente – nem água pode tomar – o vice-presidente ouve atentamente o médico e só quer saber de uma coisa:

“Quando é que vou poder sair daqui?”

Cutait diz que ele está se recuperando bem, dentro da normalidade, mas ainda vai precisar ficar mais uns dois ou três dias no hospital até poder voltar para seu apartamento paulistano, na alameda Itú.

Em meio à consulta, Adriano Silva, o onipresente e único assessor de Alencar, informa estar na portaria do hospital o apresentador de televisão Raul Gil, que insiste em vê-lo. O recém-operado pensa um pouco e, após breve silêncio, manda o visitante subir.

Muito emocionado, com lágrimas nos olhos, Raul Gil ajoelha-se diante dele e beija-lhe a mão, e começa a falar sem parar da sua admiração pelo vice-presidente. Repete várias vezes a palavra coragem e ameaça se despedir outras tantas vezes, diante do silêncio do médico que apenas assiste à cena.

É hora de irmos todos embora e deixar Alencar descansar um pouco.

A ante-sala do quarto está atulhada de garrafadas (remédios populares feitos de raízes), orações e mensagens, trazidas ou enviadas de várias partes do país por outros admiradores que torcem pela recuperação dele.

Entre estas mensagens, uma chegou aqui ao Balaio, enviada pelo leitor João Luis Fernandes Inácio, que encaminhei a Adriano Silva. Reproduzo-a abaixo porque ela resume a torcida e o sentimento de solidariedade despertado por José Alencar em milhares de brasileiros.

“Caro Kotscho:

Nem sei se você lerá esse e-mail. Imagino que seja impossível responder a todos que frequentam seu Balaio. Confesso que fiquei muito lisonjeado com sua resposta, pois sei quanto seu tempo é precioso.

Só estou novamente te perturbando para te pedir que mande um abraço carinhoso ao Sr. José de Alencar (homem que eu mal conhecia até se tornar vice-presidente, mas que passei a admirar de forma a se tornar exemplo para minha vida).

Há quatro meses sofri uma cirurgia para correção de uma deformidade ortopédica decorrente da paralisia infantil (acho que sou, com meus 41 anos de vida, uma das última vítimas dessa doença, felizmente).

Estou, desde então, com um aparelho na perna (igual àqueles que os motociclistas costumam usar quando sofrem acidente), o que me torna completamente dependente da ajuda alheia para me locomover, pois não posso dirigir e nem mesmo entrar ou sair de dentro de um carro sozinho, dado o peso que ficou minha perna, a qual, com musculatura muito limitada, não suporta o peso.

Pois bem, nem lembro quantas vezes já me lamentei por isso, perdendo mesmo a paciência e até praguejando. Ai vejo o Sr. José de Alencar passar por uma cirurgia de quase 20 horas (fiquei na net acompanhando o tempo todo e torcendo por ele), passar por tratamento alternativo nos EUA, sentir novas dores.

Meu Deus, como me sinto pequeno quando o vejo na televisão com aquele sorriso único e olhar otimista. Ele, mesmo sem premeditar, pois é nitidamente espontâneo, não faz a menor idéia da força que me dá, assim como faz para milhares de outras pessoas com problemas de verdade (sim, porque o meu perto disso não chega a ser um resfriado).

Resumindo, se puder, mesmo que não seja hoje, diga que torço por ele de uma forma absoluta e sei que ele acompanhará as formaturas de seus bisnetos. Ele é uma pessoa única. Faz eu me lembrar do meu avó materno, falecido no ano passado, aos 103 anos, vítima de câncer, no Pernambuco, Estado onde nasci.

Diga-lhe que tenho em mim que ele ultrapassará a marca do meu avô. Abraço fraterno para você a quem admiro e também torço pela saúde (não imagina como vibrei na época que você tentou parar de fumar) e pela ampla recuperação pós-cirurgia.

Ainda me verá muito no seu Balaio, pois realmente estou tentando me aproximar, em todos os sentidos, de pessoas serenas e inteligentes como você. Desculpe a intimidade, se fosse pessoalmente, só o trataria por Sr., pois não consigo tratar de outra forma pessoas um pouco mais velhas do que eu.
Abraços, de um também torcedor do São Paulo.

Dr. João Luis Fernandes Inacio”.


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