Pura Energia

“Agorra estou muito ocupada. Me ligue depois da aberrtura da exposição, ok?”, disse-me ela com forte sotaque, dias antes da mostra Fotografias, na Galeria de Arte do SESI (Serviço Social da Indústria), em São Paulo, que também se tornou um livro.

Maureen Bisilliat, inglesa de ascendência irlandesa, mais brasileira do que muitos, fotógrafa premiada, é puro movimento. Aos 79 anos, dirige o Pavilhão da Criatividade do Memorial da América Latina, acompanha a montagem de suas exposições e livros, produz documentários e sonha com projetos.

Sempre foi assim. Ela nunca parou. Filha de um diplomata e de uma pintora, morou em outros países antes de adotar o Brasil, no final dos anos 1950. Nos ateliês de modelo vivo, ao buscar as nuances do corpo humano, a estudante de arte encontrou a fotografia.

A “cigana irlandesa”, como dizia Guimarães Rosa, misturou em seu caldeirão mágico a literatura de Euclides da Cunha, do próprio Rosa, de Ariano Suassuna, de Jorge Amado e de João Cabral de Melo Neto. Publicou livros com lindas imagens, registrando o universo de cada um deles. Estava revelando, também, a singularidade do povo brasileiro. Uma “antropologia visual”, admirada por Darcy Ribeiro.

Na década de 1970, a pedido dos sertanistas Orlando e Cláudio Villas Bôas, foi ao Xingu. Com saias longas e pés descalços, retratou com rara beleza o cotidiano dos índios. Ali, produziu e dirigiu documentários, como o longa-metragem Xingu/Terra, em parceria com Lúcio Kodato.

“O seu problema é que você não sabe o que quer”, disse-lhe certa vez o marido, Jacques Bisilliat, ao notar que a multiplicidade de projetos se tornava angustiante para Maureen. Quando ela divagava, Jacques a trazia à realidade. “Ele era o chão dela”, sintetiza a atriz e documentarista Sophia Bisilliat, filha do casal. Ao lado de Jacques, Maureen viajou o Brasil por estradas de terra, a bordo de uma perua Kombi, em busca de cerâmica, telhas e tapetes para a galeria de arte popular O Bode. De Belém a São Paulo, certa vez, Jacques chegou a percorrer perto de 14 mil km. Sophia acompanhou os pais em algumas viagens: “Uma vez, a perua Veraneio (que tiveram antes da Kombi) quase caiu de uma ponte. As duas rodas ficaram pra fora e o carro só não virou porque vinha lotado de tapetes”. Salvou-os, portanto, a entusiasmada procura pelo acervo da Galeria, que existiu por 22 anos ao lado da casa da família – e foi o embrião do Pavilhão da Criatividade no Memorial da América Latina.

Sophia lembra-se de outras viagens que fez com a mãe. Na Bahia, ficaram em uma casinha que a água vinha de esguicho e a luz era de lamparina. Ela acredita que o Brasil mostrado a ela na infância pelos pais a ajudou a focar seu trabalho na questão social. O filho de Sophia, Jacques, também acompanhou a avó ao Xingu, quando tinha doze anos.

Apesar da vida profissional agitada, Maureen tinha preo-cupações comuns de toda mãe. Quando Sophia disse, aos 18 anos, que daria aulas de teatro no Presídio do Carandiru, ela se assustou. “Foi o meu pai que a tranquilizou”, lembra Sophia. Dois anos mais tarde, Maureen passou a acompanhá-la e a registrar em fotos e em vídeo a trajetória da filha no presídio. Por fim, as visitas resultaram em um documentário (produzido com Sophia, o jornalista André Caramante e o fotógrafo João Wainer), trazendo depoimentos de detentos.

Quando Jacques faleceu, em 1991, foi um baque para Maureen. “Quando soube que meu pai estava doente, não quis acreditar. Só caiu em si dois meses depois de ele morrer”, lembra Sophia. Em um ano de isolamento, Maureen começou a escrever um diário, uma forma de “conversar” com o marido e elaborar o luto. “Uma escrita quase que automática”, diz.

Na abertura da exposição Fotografias, Maureen estava inquieta como se faltasse algum detalhe para acertar. Toda de preto, mantinha seu modo de vestir simples e despojado: blusa e saia longa e sandálias de dedo.

A tensão só foi quebrada quando viu uma alegre senhora negra chegar com um esfuziante vestido colorido. Era Conceição, uma das modelos das fotos da série Pele Preta, o primeiro trabalho de Maureen, de 1963. Aos 82 anos, hoje morando nos Estados Unidos, ela mantém a postura altiva e o andar saltitante. Conceição apontou para o painel em que uma moça expunha com elegância a nudez. “Essa sou eu. Ah! Esse é meu pai na casa dele, em São José do Rio Pardo.” Os olhos brilhavam. Quando seleciona suas imagens, Maureen não revive o momento fotografado que, para ela, “ficou dentro das névoas do passado”, mas mostrou-se surpresa com a emoção das pessoas que visitaram a exposição, incluindo Assis, que retratou menino, com asas de anjo. O modelo da foto, aos 51 anos, transporta-se para aquele tempo, para a velha casa do avô, com o chão calçado por tijolos e rejuntado por barro. “A Mórrim disse pra eu colocar as asas que ia voar. Aí, eu disse: ‘Mas isso aqui é pena de galinha! Não! Como é que eu vou voar com isso aqui?’.”

Um dos projetos de Maureen é filmar depoimentos de moradores de São Paulo, na movimentada Praça da Sé: “Seriam conversas com os fracos, fortes e ‘fudidos’, indagações acerca da vida, de onde vem e pra onde vai”. Para explicar melhor, Maureen cita uma frase do sociólogo Luiz Eduardo Soares: “Os gregos, na Antiguidade Clássica, consideravam o esquecimento a pior punição, a mais grave das maldades, o pior que se poderia desejar a um ser humano”.

Tal como havíamos combinado, fui ao Pavilhão da Criatividade no Memorial da América Latina, dias depois da abertura da exposição. Maureen estava solar e à vontade em sua longa saia azul marinho e bata branca. Nos pés, as sandálias Havaianas, velhas companheiras. A calma da arquitetura branca e curvilínea de Niemeyer ficara do lado de fora do prédio. No pequeno escritório que adentramos, as cores estavam por toda a parte. Nas paredes, prateleiras lotadas de caixas de arquivos. Nas mesas e no chão, artesanato de diversos materiais. Eram obras vindas de várias partes do Brasil e da América Latina, algumas ainda em embalagens de saco plástico. Um tatu empalhado parecia olhar incrédulo para as cabeças de bonecos de madeira empilhadas na caixa ao lado.

Sob o vidro da mesa de trabalho de Maureen, um caleidoscópio de memórias: fotos de exposições, dos amigos, netos. Em um retrato, ela sorri ao lado do antropólogo Darcy Ribeiro. E, logo abaixo, dois crachás dos criadores do acervo daquele pavilhão: Maureen e Jacques Bisilliat. A aparente balbúrdia não a incomoda. Ela não perde nenhum detalhe ao redor.

O que motiva Maureen, hoje, é o trabalho em grupo, seja na produção de exposições e livros ou no dia a dia do Memorial, ao lado de Adriana Beretta e Carlos Dourado. “Somos uma pequena equipe, dedicada e competente! Durante o dia, é muita energia. À noite, é quando você tem o sofrimento do descobrimento.”

Entre as fotos da exposição, uma me chamou a atenção em especial. A imagem é um detalhe em zoom de outra maior. De forma impressionante, a silhueta do homem surge como estátua das espumas brancas e iluminadas do mar. Um momento imortalizado em um clique. Como ela conseguiu? “É preciso estar envolvido com a cena”, diz. “Mas pegar determinado ângulo também depende de sorte.”

Maureen seleciona fotos com rigorosa autocrítica. “Quando voltei da China, achei que tinha fracassado. Entreguei apenas algumas fotos para a redação e deixei o resto em uma gaveta”, conta. As fotografias, tiradas no final de 1982, para a revista Quatro Rodas, ganharam o prêmio Fotojornalismo Abril, em 1983. Passados muitos anos, ela decidiu abrir a gaveta, olhar o material e viu que tinha coisa boa.

Embora estrangeira, a fotógrafa tem uma relação íntima com a língua portuguesa. “Ela escreve muito bem, com uma sintaxe muito especial, muito poética”, diz a revisora. Segundo Maria Luiza, a única dificuldade foi acompanhar o ritmo de Maureen: “Ela tem a energia do Mick Jagger”.

Assim como o cantor dos Rolling Stones, de 67 anos, seu conterrâneo, Maureen Bisilliat não para quieta.


Comentários

Uma resposta para “Pura Energia”

  1. […] >> perfil resultado da entrevista da Maureen Bisilliat para a Revista Brasileiros […]

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