Ler quadrinhos está na moda. Quem afirma é o próprio mercado. O segmento editorial, antes restrito a poucos lançamentos, cresceu e apareceu. Está cada vez maior e diverso. O mais recente reflexo dessa guinada é a bem-vinda chegada da nova Editora Nemo, especializada em HQ. O novo selo estreia com nacionais e clássicos de artistas mundialmente consagrados.
O primeiro lançamento é a Coleção Moebius, que resgata toda a obra do artista francês publicada na saudosa Metal Hurlant, revista francesa que revolucionou os quadrinhos durante a década de 1970. Quem abre a série é o inédito por aqui Arzach – já nas livrarias, em edição de luxo com capa dura e no formato europeu original.
Com uma atmosfera psicodélica, sem textos ou balões, a HQ de Jean Giraud, conhecido pelo pseudônimo Moebius, tornou-se um marco divisório no universo dos quadrinhos. “Quando o Arzach foi lançado, teve realmente o efeito de uma bomba”, diz o quadrinista e historiador Wellington Srbek, editor do novo selo. O apuro visual, a qualidade e a originalidade das imagens em cada quadro eram incomuns para a época. “Arzach influenciou e continua influenciando os trabalhos de muitos quadrinistas.”
O segundo título, Pesadelo Branco e Outras Histórias, chega ainda este ano às livrarias. Os outros – O Homem é Bom, Garagem Hermética e As Férias do Major Grubert – serão publicados semestralmente, segundo informou Srbek.
Não menos importante é a série Corto Maltese, do italiano Hugo Pratt, que deve ser lançada ainda no começo deste semestre. A primeira aventura do famoso personagem ganha finalmente uma edição brasileira, em cores e capa dura. “É a aventura na qual ele aparece mais jovem”, observa Srbek. A Nemo informou que negocia, ainda para este ano, trabalhos de Enki Bilal, Guido Crepax e Jacques Tardi.
Nacionais
No cardápio da nova editora, artistas nacionais ganham espaço. Os primeiros são os infanto-juvenis Ciranda Coraci e Senhor das Histórias, ambos de Wellington Srbek e Will, que abrem a série Mitos Recriados em Quadrinhos.
Outro destaque é a Coleção Shakespeare em Quadrinhos, que abre uma janela para talentos emergentes. Clássicos do célebre autor inglês ganham outra roupagem no traço de novos quadrinistas brasileiros.
Ainda este ano será possível conferir Romeu e Julieta, com texto e desenhos de Marcela Godoy e Roberta Pares; Sonho de uma Noite de Verão, por Lillo Parra e Wanderson de Souza; e Otelo, de Jozz e Akira Sanoki.
“A produção nacional está partindo do zero, por isso devem demorar um pouco mais que os estrangeiros”, explica Srbek. Nessa fase inicial de produção está a série História e Quadrinhos, que deve estrear com Guerra dos Palmares e Luta Contra Canudos.
Assim como em outros países, o mercado de quadrinhos no Brasil se segmentou. São várias editoras, pequenas e médias, que lançam diversos gêneros para todo tipo de leitor – que, aliás, também mudou. “Há tempos as HQs deixaram de atender apenas ao público infantil”, analisa Srbek.
Segundo o editor, mercado e sociedade começam a se dar conta do que pesquisadores e autores dizem há décadas: “É uma arte versátil”. Para ele, as mudanças resultam desse amadurecimento editorial e da percepção social dos quadrinhos. “Por isso, hoje é possível ver quadrinhos com destaque nas livrarias, em edições de alta qualidade gráfica.”
Outro que manja do riscado, o jornalista Rogério de Campos, há décadas no mercado editorial, concorda que a vida anda melhor para quem mexe com quadrinhos, mas reclama da falta de liberdade editorial. Hoje à frente da Conrad Editora, Campos passou por muitas fases dos quadrinhos no Brasil, entre elas, a agitada década de 1980, quando lançou uma das melhores revistas de quadrinhos já editada no País, a Animal, que até hoje deixa saudades. “Censura era palavrão”, diz Campos.
O Brasil vivia a alegria de exercer a liberdade de expressão depois de 21 anos de ditadura. “Eu publicava coisas na Animal que hoje não teria chance de publicar”, afirma o diretor da Conrad. Segundo ele, o ambiente atual é muito mais fechado e repressivo. “Antes, era o Estado que fazia a censura. Hoje, é o Judiciário, a rede de distribuição, a grande mídia, a paranoia norte-americana com as crianças e esse exército de advogados destruindo o que podem em nome do direito à privacidade, direito de imagem, copyrights. Antes, a paulada vinha da Direita. Atualmente, o fogo chega por todos os lados”, salienta o editor. “A Esquerda parece se esquecer de que a luta histórica do pensamento libertário sempre foi a mais completa liberdade de expressão, mesmo que para dizer besteiras e mentiras.”
Ele se diz entusiasta dos quadrinhos mundiais, principalmente por uma característica específica dos temos atuais: a variedade. “Houve explosão de vendas no passado, com base em determinados gêneros (super-heróis, terror, etc.) ou personagens (Super-Homem, Tex, Pokémon, etc.). Hoje, os quadrinhos vivem um momento em que os autores são as estrelas.”
Garra Cinzenta
Campos acaba de dar mais uma mostra de sua crença no bom e velho quadrinho com o lançamento de um legítimo clássico, o Garra Cinzenta, primeira grande narrativa policial dos quadrinhos brasileiros.
Publicada em capítulos de uma página cada, entre 1937 e 1939 no pioneiro suplemento A Gazetinha, do jornal paulistano A Gazeta, Garra Cinzenta se tornou cult e, segundo estudiosos, teria influenciado as HQs italianas Diabolic e Satanic e até um famoso personagem da americana Marvel Comics. Apesar de cultuada e influente, permaneceu na obscuridade por décadas.
Garra Cinzenta é inspirada nas pulp magazines norte-americanas das décadas de 1920 e 1930 (publicações baratas, impressas em papel de baixa qualidade, carregada nas cores e no estilo sinistro).
Não por acaso, o ambiente da HQ é a capital paulista da década de 1930, cenário perfeito para uma trama misteriosa que enreda personagens exóticos, como o robô Flag, a sensual Dama de Negro e o aflito inspetor Frederic Higgins, que sapateia nas mãos da gangue semianarquista do Garra Cinzenta.
Como se não bastasse misturar assassinatos, conexões subterrâneas, laboratórios secretos, casas de ópio, uma sociedade secreta do crime e um supervilão esquisitão que desafia a polícia e toda a sociedade, a própria HQ Garra segue envolta em mistérios. Até hoje não se sabe ao certo o motivo de a publicação ter sido interrompida em meio ao sucesso que fazia, muito menos quem seria o até hoje desconhecido Francisco Armond, que escreveu os roteiros desenhados por Renato Silva.
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