Qual é a graça de espiar a vida dos outros?

Um espectro ronda o mundo acadêmico e, definitivamente, nada tem a ver com o comunismo, antes fonte de discussões nas universidades. Agora, o que preocupa os estudiosos são as razões dos sucessos dos reality shows, como o BBB 13, em cartaz na TV. No passado, intelectuais tentavam entender o porquê de as pessoas perderem tanto tempo assistindo às novelas. Hoje, se questionam sobre o fenômeno dessas “novelas reais”. Nada demais se, para tanto, não fossem empregados o velho aparato do marxismo, da Escola de Frankfurt, das teorias surradas de comunicação, entre outros “medalhões”, abandonados pela realidade contemporânea. Sem ter o que fazer com esse instrumental, professores usam-no para tentar “entender” um divertimento popular de baixa qualidade.

O fruto mais recente dessa discussão é Rituais de Sofrimento, de Silvia Viana, professora de Sociologia da Fundação Getulio Vargas. O livro analisa os famigerados programas como reflexos do conceito burguês de sacrifício e parte essencial da vida social e profissional. “Apesar da multiplicidade de experimentos forjados pelo espetáculo da realidade, sua questão é única: quanta humilhação e dor as pessoas são capazes de suportar ou infligir? Mesmo em programas a princípio menos cruéis, ela se repete: o que você seria capaz de fazer por dinheiro, fama, improvement, empowerment, enfim, para ser um vencedor? Por isso, o método do teste também é invariável e poderia ser nomeado calvário”, escreve a pesquisadora.

Em resumo, os reality shows dramatizam a tortura da “cultura do trabalho”, cuja meta psicológica seria o sofrimento, mesmo que sem qualquer sentido prático, a não ser a submissão. É o chavão da “mais valia”, da manipulação do homem “ingênuo” pelo capital. Na TV, os “pobres” participantes seriam submetidos aos mesmos rituais para catarse dos espectadores igualmente fustigados no seu cotidiano, mas, naquele momento, transformados em árbitros de outros, alvos de desforra do terror cotidiano de todos nós. Errada ou certa, a teoria é mais uma na cesta forrada de análises sobre o sucesso dos BBBs e Fazendas, entre outros. No passado, era a questão da privacidade, o fascínio pela intimidade invadida, um voyeurismo que fingia acreditar que era realidade a exibição de “autenticidade” de um grupo em condições isoladas e exposto a testes imbecis.

Quem está certo? Bem, usando o velho chavão, para entrar no clima, todos e ninguém. Mas as teorizações valem mais do que as respostas. O que fazem os nossos cientistas sociais? Essa é outra pergunta importante. Será que eles trabalham para entender a nossa sociedade, nos dar o que pensar, ou apenas vivem um círculo vicioso e autorreferente, mais interessados em desfilar o seu conhecimento ou adesão a teorias simpáticas a certo grupo? É terrível ver pessoas ilustradas recusando o real em prol das teorias, incapazes de olhar as pessoas de perto. O popular ora é categoria depreciativa ora é vítima do sistema.

Para parodiar um mau livro, há cinquenta tons de cinza que não permitem leituras “preto no branco” como essas. Em especial, em uma sociedade impactada pelas redes sociais que puseram abaixo conceitos como público e privado ou utopias de que o melhor a se fazer na vida é ser transparente. Os realities são a parte menos voyeurística da contemporaneidade. A promessa de que vamos ver a intimidade, que vamos “espiar” algo que, em condições normais não teríamos acesso, é uma balela em um jogo cujas regras são aceitas pelos dois lados, a edição do programa e o espectador.

O que se pode ver na TV nada tem de especial ou “escabroso”, como prometem os anúncios. É o narcisismo básico, sem nudez, sexo ou opiniões polêmicas. É a exibição da autenticidade falsa que se finge acreditar como realidade. Afinal, que graça tem participar de um jogo ou fantasia se não nos entregamos às mentirinhas? O real é bem mais exibido que o reality. Abrir o Facebook é conhecer os detalhes igualmente sem graça da vida dos outros, igualmente encenados para aparentar uma janela para o privado de cada um. Ou, pelo menos, do que as pessoas gostariam que pensassem. Você não precisa ser amigo de alguém para acessar os posts? Mas, sem ter qualquer relação, pode ver as fotos seminuas de um Carnaval.

No fundo, é uma grande tristeza. O excesso de personalidades expostas parece mais ser a falta geral de qualquer personalidade. Estamos distantes mesmo da velha e boa “persona” criada que fazia a delícia dos terapeutas. Agora, não caem máscaras porque não há nada atrás delas. Claro que os realities são cruéis e vibramos ao ver o sofrimento. Mas não há ingênuos nessa brincadeira sádica e masoquista. O que faz a nossa delícia após o jantar é também a bolsa de ações do participante, que torce para que seu sofrimento renda frutos após sair do show.

É diversão, mas fraca, ruim, enjoativa. Assim, a cada BBB é preciso adicionar “drogas” novas com participantes antigos. Esses, pelo menos, não são anônimos bobocas, como os “calouros”, mas falam bobagens de cátedra. Curiosamente, o que atinge os realities, que se arrastam pelas grades com dificuldade, é o mesmo que se abateu sobre a imprensa. Se essa antes se acreditava capaz de domar o público a seu bel-prazer, agora vemos Boninho tentando inventar fórmulas para readquirir a “mágica” dos primeiros realities, sem sucesso. Ao menos em A Fazenda, os boçais em cativeiro são mais ou menos conhecidos e falam besteiras mais divertidas.

Ficamos, então, com uma televisão mais pobre, com lampejos ocasionais de boas novelas. A análise dita aprofundada desses shows revela a fraqueza geral da nossa cultura, com diversão insossa e falta completa de desafios ou alternativas, sem falar na atenção dispensada pela mídia a essas banalidades como se fossem assuntos sérios. Pobres dos estagiários de jornais e revistas obrigados a ficar na madrugada vendo os realities em pay per views. Mas não sugiro o famoso “desligue a TV e pegue um livro” ou “por que não temos Shakespeare em vez do Pânico?”. Isso é com cada um, bem como as TVs – há coisa boa nos canais a cabo.

O que realmente preocupa é o grupo massivo de pessoas que cria blogs, vota pagando as ligações, dá entrevistas indignadas sobre um ou outro participante, passa o dia só tendo o BBB do dia anterior como assunto. O que, aliás, não é rotina apenas das classes mais populares, embora os mais “brilhantes” neguem. Isso mostra o vazio nacional, com pessoas felizes em viver a vida alheia, ainda que falsa, ou exibir as suas, tão irreais como a dos programas. Para isso só há uma receita, a mesma que se deve usar com a mídia jornalística: usar o bom senso. O Big Brother não olha você, ele nos faz companhia, apenas.


*Jornalista, foi editor do Caderno 2, de O Estado de S. Paulo, e do EU&Fim de Semana, do jornal Valor Econômico. É editor da revista Pesquisa FAPESP


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